Os povos indígenas das cidades do Rio e São Paulo se reuniram no último final de semana de junho para a primeira Conferência sobre políticas indígenas em São Paulo. A Conferência Nacional de Política Indigenista visa avaliar as políticas de Estado para os indígenas, reafirmar seus direitos e propor diretrizes e estruturas para ações estatais. Surgida a partir da demanda dos povos indígenas, os assentos foram ocupados por seus representantes. Dentre as 131 etapas locais que aconteceram no Brasil entre abril e julho de 2015, São Paulo foi o único local que realizou uma reunião para discutir, exclusivamente, as políticas públicas dos povos indígenas na cidade. A reunião foi um passo em direção ao reconhecimento dos povos indígenas na cidade e a garantia de seus direitos.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tem recolhido dados sobre a população indígena do Brasil desde 1990. Os resultados indicam que o número de pessoas indígenas de auto-identificação tem crescido ao longo dos anos. Em 1991, tínhamos 294.000 índios no Brasil, mas em 2000 o número tinha crescido para 734.000. Hoje, o número está em 896.000, com 36,2% vivendo em área urbana. Há duas razões para isso: a presença indígena nas cidades é resultado, primeiramente, da expansão das cidades que eventualmente chegaram aos territórios indígenas–como o caso da comunidade Guaraní do Jaraguá em São Paulo–e secundariamente, pela imigração da população indígena para os centros urbanos. No estado de São Paulo, temos quase 40.000 índios vivendo fora das aldeias indígenas, e no Rio em torno de 15.000. A maioria imigra em busca de uma vida melhor, para estudar ou trabalhar na cidade. Muitos acabam vivendo nas periferias e favelas da cidade. No entanto, os índios que vivem nas cidades são invisíveis, silenciados e discriminados de várias maneiras. A maioria dos brasileiros não sabem sobre sua existência.
No encontro de São Paulo, estavam presentes 24 diferentes etnias, incluindo quatro representantes do Estado do Rio de Janeiro. Dentre eles dois fazem parte da Associação Aldeia Maracanã. Os participantes elegeram 17 representantes que irão defender as políticas propostas na reunião regional realizada entre julho e setembro de 2015. A Conferência Nacional irá acontecer em Brasília de 17 à 20 de novembro de 2015, com o tema “A relação do Estado Brasileiro com os Povos Indígenas no Brasil sob o paradigma da Constituição de 1988”. A Conferência acontece durante o período de ampla mobilização indígena e persiste contra propostas da lei PEC 215, que irão transferir o poder de demarcação do território indígena do executivo para o legislativo.
Participantes do evento–todos moradores de áreas urbanas–falaram sobre como suas identidades indígenas são repetidamente negadas e silenciadas. Eles expressaram sua indignação com a ideia de que uma vez que mudam para a cidade, seus direitos indígenas não se aplicam mais. De acordo com eles, seus direitos são negados porque índios urbanos geralmente não se encaixam na imagem estereotipada de índio. Em São Paulo por exemplo, muitos indígenas vêm de comunidades do nordeste do Brasil como os Pankararu, Pankaré e Kariri-Xocó. Historicamente, essas comunidades foram profundamente misturadas com escravos africanos e colonizadores europeus, e não falam suas línguas ancestrais ou “não parecem indígenas”. Certas vertentes da academia e do Estado falam que eles não são indígenas porque falam português, vivem fora de suas comunidades, não usam vestimentas tradicionais, são empregados em empregos formais e estudam em escolas regulares.
“As pessoas fazem muitas críticas. Falam que a gente não é mais índio por viver na cidade. Porque tem índio que trabalha, que tem carro, que usa um celular e anda bem vestido”. Nos dizem: “Ah não, lugar de índio é lá no mato, vocês têm que viver cobertos de penas e andar pelado por lá”. Explica Carlos Kajer dos Santos, um Kaingang de Curitiba no recente projeto da Comissão Pró-Índio sobre os povos indígenas da cidade.
Os povos indígenas que vivem nos centros urbanos são informados que se tornaram aculturados e assimilados e portanto, não têm o direito de serem tratados de forma diferenciada dos outros cidadãos brasileiros. Esse discurso é ao mesmo tempo um resquício e uma renovação da política de longo prazo do Brasil de integração e assimilação da população indígena para uma “nação mais ampla” ( branco e mista). Esta política remonta ao período colonial, mas se tornou federalizada e encontrou sua expressão moderna no Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que fornece tutela aos povos indígenas. Criado em 1910, durante a Primeira República (1889-1930), o SPI foi encarregado de disciplinar a população indígena transformando-os em camponeses e trabalhadores nacionais através de seu poder sobre eles. O SPI foi transformado na Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 1967, mas a tutela durou até a Constituição de 1988 que reconhece a autonomia indígena. Até então, os povos indígenas foram legalmente subdivididos em várias etapas de integração, tal como definida em 1973 no Estatuto do Índio. Dentro de uma visão evolucionista da cultura, aqueles considerados isolados ou em processo de integração foram “protegidos” pelo Estado e tratados como minorias. Quanto mais integrado estivesse um indígena, menos acesso ele teria aos seus direitos.
Como conseqüência desse discurso, hoje não existem políticas federais destinadas a populações indígenas urbanas. A FUNAI tem até agora se recusado a atender a suas demandas, descrevendo-os como “desaldeados”–como se os seus direitos e identidade indígena fossem limitados de alguma forma ao espaço geográfico da comunidade indígena, em vez de anexada à pessoa indígena. A lógica da tutela, que permitiu ao Estado definir quem conta como indígena e, portanto, quem pode acessar os direitos indígenas está aqui renovada, o que implica uma séria de limitação à autonomia, dignidade e autonomia dos povos indígenas nas cidades brasileiras. Benedito Prezia, ativista de longa duração e membro da Pastoral Indigenista, disse: “É uma consciência que a gente tem que adquirir e levar ao poder público. As políticas públicas são importantes, independentemente de se estar em uma aldeia ou não, o indígena é indígena até se estiver no estrangeiro”.
Os participantes desenvolveram inúmeras propostas políticas, sensíveis às culturas especificas da população indígena. Um certo número de problemas que eles enfrentam também são compartilhados pela população urbana pobre, mas sua diferença cultural exige soluções políticas específicas. Entre as propostas foram demandadas políticas de habitação social, que devem incluir espaços coletivos para rituais e eventos culturais que são cruciais para as formas de vida dos indígenas. Outras demandas falavam dos desafios colocados aos povos indígenas de todo o Brasil, tais como o direito de consulta prévia, conforme prescrito na Convenção 169 da Organização Internacional de Trabalho (OIT). Este direito não é respeitado, por exemplo, na construção de projetos de infraestrutura como a hidrelétrica de Belo Monte, que afeta seriamente a vida da população indígena nas proximidades. Os participantes notaram que o direito também não é respeitado, quando os povos indígenas são expulsos de suas casas em áreas urbanas e realocados para subúrbios distantes sem consulta prévia. Além disso, os representantes estenderam as demandas as questões de saúde, educação, auto-determinação, participação social e o direito à memória e à verdade.
A etapa local foi um primeiro passo para um diálogo com o governo federal e estadual, que até agora não têm ouvido às necessidades da população indígena urbana. Se os desafios já são grandes para as comunidades indígenas do Brasil, para aqueles que vivem na cidade a luta é ainda maior, já que ainda está em estágio inicial. Antes que eles possam defender seus direitos, a sua própria existência requer o reconhecimento. Para os participantes desta fase local, há muitos mais do que 896.000índios no Brasil. Eles argumentam que muitos índios, especialmente na cidade, continuam a não se identificar como tal devido ao discurso assimilacionista já mencionado.
“Existem bem mais indígenas morando nas favelas, nas periferias das grandes cidades do que o IBGE apresenta”, disse Sassá, um representante Potiguara. “O movimento negro tem falado que todo pardo é negro, mas nem todo pardo é negro. Entre a população parda, existem muitos indígenas. A minha família toda é parda e toda a minha família é Tupinambá”. Os participantes revindicaram um censo que conte o número de índios corretamente, um primeiro e indispensável passo para o desenvolvimento de políticas públicas que irão atender com sucesso a verdadeira existência da população indígena. “Os indígenas não-aldeados não são uma ilha, são um grande oceano”, afirmou Zanilda, da etnia Mura, “e juntos vamos conseguir a vitória”.
Nascida e criada no Rio, Désirée Poets está realizando seu doutorado na Universidade de Aberystywh, País de Gales, onde também concluiu seu mestrado em Políticas Pós-Coloniais. Seus interesses são mobilizações políticas urbanas, atualmente com foco em raça e etnia nos espaços urbanos.