No Mês da Consciência Negra em 2024, o RioOnWatch exalta dois marcos para a cultura afro-diaspórica: a estreia do breaking nas olimpíadas e a Lei 10.289/2024 que reconhece o passinho como Patrimônio Cultural e Imaterial do Rio de Janeiro. Enquanto o breaking nasce no seio da cultura hip hop, o passinho tem suas raízes fincadas de maneira profunda no funk carioca.
Passinho: Expressão Cultural da Juventude Negra, Patrimônio Carioca
Em pouco mais de duas décadas, o passinho transcendeu as vielas das favelas cariocas, onde nasceu nos fervilhantes bailes funk em meados dos anos 2000, para se tornar um fenômeno global. Essa dança contagiante mescla a energia do breaking com a ginga do funk, a alegria dos passistas do samba, a irreverência do frevo e a força da capoeira. Criações do povo africano em diáspora, expressões culturais que carregam a história, a resistência e a criatividade da população afrodescendente. O passinho, herdeiro dessa rica tradição, a reinventa através de uma dança contemporânea que conquistou o mundo, rompeu barreiras e preconceitos, chegando a palcos consagrados como os da cerimônia de encerramento dos Jogos Paraolímpicos de Londres em 2012 e de abertura das Olimpíadas do Rio em 2016.
Atualmente, o passinho é reconhecido como Patrimônio Cultural e Imaterial do Rio de Janeiro, um marco histórico que celebra a riqueza e a potência da cultura das favelas cariocas. A lei nº 10.289/2024, que consagra o passinho como Patrimônio Cultural Imaterial do Rio de Janeiro, é de autoria da Deputada Estadual Verônica Lima. Em suas redes sociais, a parlamentar celebrou a conquista:
“Transformar o passinho em patrimônio é dar visibilidade a esse movimento cultural tão importante, além de colaborar na descriminalização do funk e das expressões artísticas dos jovens das comunidades, favelas e periferias, fortalecendo a nossa cultura popular. Viva essa manifestação artística tão rica e tão relevante para a vida de tantos jovens periféricos.”
A conquista do título de Patrimônio Cultural e Imaterial é resultado de um longo processo de luta pelo reconhecimento do passinho como cultura, mesmo em meio ao estigma das favelas, que permeia todas suas manifestações culturais. Severo IDD, MC e líder do Bonde Imperadores da Dança, celebrou a cultura da periferia carioca e a força do passinho. Um dos idealizadores do treino do passinho, ele lembra que o evento acontece há dez anos na Praça do Skate do PAC, em Manguinhos, na Zona Norte, e menciona também o “passinho convida”, realizado com alguma frequência no mesmo lugar:
“Que o passinho é cultura todo mundo já sabia, aqui em Manguinhos mesmo, já faz dez anos que a rampa de skate é nosso palco para os treinos de passinho. Para celebrar essa década de dança e cultura, decidimos criar a Batalha Show Break X Passinho.”
Ver esta publicação no Instagram
Outro relíquia do passinho, Cebolinha, uma figura histórica da cultura das favelas, viu o estilo de dança crescer e mudar nos últimos vinte anos, desde seu surgimento:
“O passinho é uma dança nossa, é cultura. Ver ele evoluir e se aprimorar é incrível!”
Acredita-se que o passinho tenha nascido no Jacarezinho, Zona Norte, impulsionado pelo talento e carisma de grupos como o Bonde Imperadores da Dança, liderados pelo icônico Anderson “Baianinho” Santana. Do Jacaré para o mundo: a história dos imperadores dança conquistou o mundo através de vídeos virais e competições eletrizantes, como a Batalha do Passinho. É importante lembrar que Jacarezinho é a favela mais negra da cidade, nascida de um quilombo.
Ao lado de Severo IDD e Isaque IDD, líderes do Bonde Imperadores da Dança, Baianinho é figura emblemática na história do passinho. A Praça de Skate de Manguinhos, palco do evento que celebrou o reconhecimento como patrimônio cultural, também testemunhou a trajetória desses artistas que, desde 2008, levam a dança da favela para os quatro cantos do mundo. “Os Havaianos se intitulavam os reis da dança. Buscamos algo ainda maior e encontramos: imperador. Somos os Imperadores da Dança”, relembra Baianinho, idealizador e membro original do grupo, ao relembrar a origem do nome do grupo que ajudou a fundar.
Outro artista do passinho, cujo sucesso, no entanto, é mais recente, é Pablinho Fantástico, o dançarino e influencer tem mais de 700.000 seguidores nas redes sociais. Ele é reconhecido por arrastar multidões e já rodou o mundo graças ao passinho. Já foi convidado para oferecer oficinas, dar entrevistas e participar de eventos em países como o Marrocos, por exemplo.
“Essa conquista é um marco para todos nós que amamos e vivemos o passinho. É a prova de que nossa cultura tem valor e merece ser reconhecida e celebrada. A molecada que quer dançar tem que se dedicar e se empenhar, porque agora o passinho tem um lugar ainda mais especial na história do Rio de Janeiro.” — Pablinho Fantástico
O reconhecimento do passinho como Patrimônio Cultural impulsionou ainda mais a realização de eventos e batalhas dedicadas a essa dança, como o Passinho Convida x Break em Manguinhos e o Passinho da ZO, que levou a cultura do passinho para diferentes comunidades da Zona Oeste do Rio.
“O treino de Passinho com os Imperadores da Dança na rampa de skate está completando dez anos de existência e é o maior treino gratuito aberto ao público. Aqui recebemos dançarinos de todas as modalidades e do mundo. Daqui saíram dançarinos que hoje compõem grandes companhias de dança. A realização de eventos e batalhas de passinho fortalece a cultura local, comerciantes e incentiva a continuidade do movimento funk.” — Diana Anastácia, produtora cultural e diretora da Braba Produções
O projeto de Manguinhos foi uma realização da Braba Produções e conta com o apoio do Governo Federal, Ministério da Cultura, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e Secretaria Municipal de Cultura, por meio do Edital Ações Locais.
Ver esta publicação no Instagram
Além da Batalha Show, a competição valendo prêmio em dinheiro foi acirrada, mas Coyote, dançarino, 27 anos, membro dos grupos Os Mister Passistas e Grupo Corre, conquistou o primeiro lugar e levou o prêmio de R$500. O momento foi ainda mais especial com o reconhecimento e as dicas valiosas de Jeff Cebolinha, um dos jurados e ícone da História do passinho. Coyote, emocionado, expressou sua gratidão por poder dançar e aprender com seus ídolos, ressaltando a importância da resistência da cultura do passinho. Com os pés no chão e os olhos nas estrelas, Coyote planeja aprimorar suas habilidades, se tornar um dançarino ainda melhor e competir em outras batalhas.
Manguinhos é apenas um exemplo entre muitas favelas em que acontecem batalhas de passinho. Além de serem um espaço de lazer e diversão, as batalhas de passinho também funcionam como veículo de ascensão social para muitos jovens, que encontram na dança uma forma de expressar seus talentos e conquistar reconhecimento. Assim como o funk, o passinho é instrumento humanitário das favelas.
Irmão Mais Velho do Passinho É Modalidade Olímpica
Estreante nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, o breaking é uma das referências do passinho. O estilo de dança urbana que surgiu nos anos 1970 em Nova York foi finalmente reconhecido enquanto esporte e estreou nas olimpíadas na França. A modalidade olímpica é parte da cultura hip hop e, com essa inclusão, o Comitê Olímpico Internacional (COI) busca atrair o público jovem para os jogos. Nenhum atleta brasileiro se classificou para a competição.
No entanto, em outra competição de breaking a nível internacional, o brasileiro Samuel Henrique, conhecido como b-boy Samuka, do Distrito Federal, conquistou o título de campeão no Fujifilm Instax Undisputed, em Tóquio. Por isso, ele fez uma participação especial na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos.
Ver essa foto no Instagram
Samuel Lenister, b-boy, produtor e diretor do Grupo Favela RJ, do Complexo do Alemão, Zona Norte, comemora o reconhecimento do breaking, vendo nessa conquista a abertura de portas para os dançarinos, com perspectivas de carreira e reconhecimento profissional.
“Muitas pessoas hoje vivem do breaking. Tenho amigos que ganham bem com isso. As Olimpíadas são um projeto incrível, não só como projeto de dança e arte, mas para a questão social e a mudança social dessas vidas… Quem dança tem que se preparar fisicamente, tem que ter foco, disciplina. Lá no Grupo Favela buscamos isso, desenvolver ao máximo os alunos, e a molecada tem se preparado, tem muitos que fazem aulas de idioma, através do incentivo agora eles vislumbram um futuro profissional com a dança e isso é incrível.”
Lenister também falou sobre a evolução da dança e a importância do passinho na cultura urbana:
“A dança vem evoluindo com o tempo. E através dessa cultura, hoje a gente conseguiu ter um passinho que é realmente uma dança nossa. Hoje, o passinho foi recebido de braços abertos, então, para a gente, é gratificante conseguir colocar o passinho e o breaking juntos. Eles são duas energias que se misturam, que se transformam e se complementam.”
Completando sua fala sobre a importância da representatividade e do esporte, ele diz:
“Eu gosto muito das Olimpíadas e esse efeito de dar vontade da gente ser atleta é muito bom. Ver essas mulheres negras conquistando o ouro, mostrando a força e o talento da nossa gente, é inspirador para todos nós, especialmente, para os jovens de origem popular. O esporte é uma poderosa ferramenta de transformação social e essas vitórias mostram que o sonho é possível, que podemos chegar lá.”
Ver essa foto no Instagram
Logo após as Olimpíadas, no dia 14 de agosto, foi anunciado que o breaking não fará parte das Olimpíadas de 2028, em Los Angeles. O motivo ainda não foi oficialmente divulgado pelo COI. No entanto, especula-se que a dificuldade em estabelecer critérios claros para a avaliação das performances, aliada à constante renovação da programação olímpica, possam ter influenciado nessa decisão. Após uma apresentação controversa da b-girl australiana Rachael Gunn, que gerou muitas críticas e memes nas redes sociais, a modalidade passou a ser alvo de debates e questionamentos.
Ver essa foto no Instagram
Severo IDD lamenta profundamente que uma dança com mais de 50 anos de tradição não seja mantida nas próximas Olimpíadas. Em suas palavras:
“Para o breaking ficar permanente nas Olimpíadas, ele tem que estar presente em três Jogos Olímpicos consecutivos. Eu acho que eles [o Comitê Olímpico] vão amadurecer a ideia, [seja] pela preocupação com a perda das raízes do breaking, [por] falhas organizacionais ou pode ser também que o país anfitrião [Los Angeles] queira apostar em outros esportes como críquete, flag football, squash, beisebol e lacrossse… A b-girl australiana foi infeliz na performance dela, mas não foi por causa disso que não vai ter breaking na próxima, mas claro que afetou o coletivo, porque as pessoas que não conheciam a cultura hip hop estão julgando.”
Sobre a autora: Juliana Portella é cria da Baixada Fluminense, Jornalista pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Periferias (NEsPE/FEBF-UERJ). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Documentarista, é diretora do filme que conta a história dos bailes de corredor dos anos 1990.