Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre justiça ambiental nas favelas fluminenses.
A mobilização de instituições e coletivos ambientalistas e de favela na cidade do Rio de Janeiro nos meses de setembro e outubro, que compreendeu o período eleitoral de 2024 e pré-G20, pediu o fim do que chamaram de caô climático, união em prol da qualidade do ar que vem sendo prejudicada pela empresa Ternium, e, através do Plano Verão de Adaptação, ações práticas a serem adotadas para que se tornar o Grande Rio e suas favelas climaticamente resilientes.
Em Setembro, Sociedade Civil Carioca Pediu o Fim do Caô Climático
Em um primeiro momento, nos dias 20 e 21 de setembro, ocupando a Lapa, no Centro da cidade, os eventos Plante Rio – Que Clima É Esse? 6° edição, da Fundição Progresso, e Marcha pelo Clima, da Coalizão pelo Clima, uniram forças e promoveram uma bateria de ações conjuntas, parte da agenda da Semana Global pelo Clima (22-29 de setembro), que movimentou iniciativas ambientais ao redor do mundo para cobrar das autoridades medidas urgentes quanto às mudanças climáticas. Foram diversas atividades educativas e culturais abordando informações sobre clima e meio ambiente, políticas climáticas, G20 e Agenda 2030, sempre destacando iniciativas de lideranças, coletivos e ativistas da área ambiental.
Estiveram mobilizados pelo fim do Caô Climático as seguintes organizações: Mutirão Agroflorestal, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental, Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul, Associação Touca Brasil, Foucabrasil, Rede Vigilância Popular em Saneamento e Saúde, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), Fundação Henrich Boll, Instituto Emunah, Casa de Artes e Cultura Percília Teles da Silva, Feira da Roça VG, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Plataforma Socioambiental BPC, Grupo Especializado em Desastres Naturais (Geden), Universidade Federal Fluminese (UFF), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Casa da Cidadania Petrópolis, Projeto Esperançar Petrópolis, Instituto Ação Climática e Agrofloresta Sepé.
O Aulão do Clima, por exemplo, foi uma das atividades propostas e proporcionou ao público uma tarde formativa sobre o meio ambiente. Também ocorreram rodas de conversa, como a “Estado da Arte da Questão Climática no Rio de Janeiro”, com coletivos participantes da Articulação Clima e Cidades do Estado do Rio de Janeiro no âmbito do Plante Rio. Além da Marcha pelo Clima, que levou cerca de 2.000 pessoas para a Cinelândia, ocasião que culminou com o lançamento da Campanha “Rio Capital do Caô Climático”, com painel instalado nos Arcos da Lapa, houve a leitura de três cartas, endereçadas às autoridades, construídas por coletivos, entidades e civis afetados pela falta de políticas ambientais efetivas.
Para o ativista climático, coordenador da Coalizão pelo Clima e pesquisador da Fiocruz, Pedro Aranha, falar do clima no Rio de Janeiro é a mesma coisa que pautar a sobrevivência.
“A crise hídrica e o calor extremo sempre foram uma realidade da favela, mas vai piorar. Então, esse aulão é nessa perspectiva de como a gente enfrenta essas crises e a gente já sabe que as articulações populares [sobre esses temas] estão dentro da favela. E, enquanto isso, o governo está construindo um plano de adaptação climática com as empresas e não com as comunidades.” — Pedro Aranha
Segundo Maureen Santos, cientista política e coordenadora de núcleo político da FASE, o aulão tem como objetivo aproveitar a mobilização do Dia Global de Mobilização pelo Clima. Foi um espaço de formação no qual foram reunidos diversos saberes de dos territórios e de processos de resistência em construção.
“Através das ações internacionais da FASE, que acompanha o processo da Cúpula dos Povos rumo à COP30 e da Semana de Mobilização Global sobre financiamento climático e futuro sem combustíveis fósseis, surgiu a possibilidade de se realizarem atividades descentralizadas em vários países e, aqui no Brasil, propomos essa no Rio de Janeiro aproveitando a mobilização da Marcha pelo Clima e a Campanha do Caô Climático. A gente decidiu convergir todas as atividades que estavam espalhadas para fazer em conjunto no mesmo dia.” — Maureen Santos
Uma das vítimas das intensas chuvas ocorridas em Petrópolis em 2022 foi Claudia Severino, moradora do bairro Quitandinha. Atendida pelo projeto Casa da Cidadania Petrópolis, ela conta como ter recebido apoio foi fundamental para recomeçar após a tragédia. Seu relato remarca a importância do Estado no apoio às vítimas com políticas públicas, em primeiro momento de aluguel social, mas depois através de programas de habitação popular e reassentamento em áreas próximas e seguras, resilientes contra eventos climáticos extremos.
“Na época da chuva, [esse tragédia] afetou nosso psicológico… Tem essa roda de conversa que eu participo desde 2022, [que] foi muito bom para nós, [para quem] perdeu parentes, perdeu casas. Eu perdi só minha casa. Agora, tô no aluguel social, esperando pra ver se eles [autoridades] vão arrumar minha casa para eu voltar, se vai fazer o muro de contenção que eu estou esperando. Sou eu e meus três filhos, sou diarista.” — Claudia Severino
Neném Peixoto, membro do Geden, diz que apesar de às vezes não haver como evitar uma tragédia, é preciso criar uma cultura da prevenção.
“Creio que primeiro temos que explicar para a comunidade que estamos vivendo um momento de extremos. Então, a gente tem que criar protocolos para que a gente saiba lidar com isso, por exemplo, protocolos individuais: como eu vou agir sobre isso? Quais protocolos familiares? Por exemplo, já deixo meu material preparado [para evacuação em caso de chuva forte]? Eu conheço minha área? E, da mesma forma, um protocolo comunitário: como posso preparar minha comunidade para essa nova experiência que estamos vivendo? A preparação para desastres tem que estar hoje como meta… é a nova realidade que vamos viver.” — Neném Peixoto
MC Mystika, de Piabetá, bairro do sexto distrito da cidade de Magé, na Baixada Fluminense, abriu o aulão com uma performance de rima. Ela criticou a negligência do Estado e a falta de orçamento para saneamento na região em que mora.
“Lá, muitas pessoas perderam a casa por causa de enchente, porque a prefeitura de Magé nunca limpa os boeiros nem nada. Trazem artistas famosos, mas não resolvem as questões quando tem uma enchente, quando há uma tragédia, quando uma família perde a casa.” — MC Mystika
Cariocas Marcham pelo Clima na Cinelândia: ‘Rio É a Capital do Caô Climático’
A Marcha pelo Clima reuniu diversos coletivos e figuras públicas do Grande Rio em frente a Camara Municipal do Rio de Janeiro, realizando uma caminhada até os Arcos da Lapa, onde foi estendida uma bandeira com o slogan da campanha.
A ocasião também serviu de denúncia por melhoria nas políticas ambientais no Rio. Umas das reinvidicações do evento foi alertar a cidade sobre os altos índices de poluição da empresa Ternium, antiga TKCSA, em Santa Cruz. Instalada em uma área originalmente rural, com crescimento populacional significativo nas últimas décadas, e utilizada pela Prefeitura do Rio como destino para numerosas famílias removidas de suas casas em outras regiões no período pré-olímpico, a empresa está dramaticamente impactando a qualidade do ar e sensação térmica desde sua instalação.
A chegada e atuação da siderúrgica foi denunciada por Martha Trindade, enfermeira, mulher negra e moradora de Santa Cruz que faleceu por problemas respiratórios. Seu ativismo foi homenageado através do Coletivo Martha Trindade, que se propõe a realizar uma vigilância ambiental popular. Atualmente, as siderúrgicas localizadas no Distrito Industrial de Santa Cruz não têm suas emissões de gases de efeito estufa efetivamente contabilizadas. Porém, dados do relatório do Centro de Pesquisa em Energia e Ar Limpo (CREA) apontaram que os microparticulados poluentes, emitidos pela Ternium, que partem da extrema Zona Oeste, atingem todo o Grade Rio e além.
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Beatriz Alves, coordenadora do coletivo, conta que o grupo ainda luta para comprovar os efeitos negativos que a siderúrgica causa na população do entorno.
“Muitas pessoas encaram a luta de Santa Cruz como se fosse unicamente nossa… [No entanto,] os dados divulgados pelo CREA e o que o coletivo produz mostram que não é só nosso. É obvio que é bem fácil para o Prefeito dizer que a cidade é limpa se ele não contabiliza quem mais polui. Então, diante das dificuldades de vigilância imunológica que a gente tem no município—porque nós não temos acesso ao tanto de adoecimento que teve na população desde da instalação da siderúrgica por mais que os moradores relatem uma piora na qualidade do ar, dificuldade pra respirar, problemas respiratórios de crianças, aumento da incidência de câncer no território—não temos acesso a esses dados. Então, para nós, é muito importante ocorrer essa mobilização nessas regiões centrais, com outras pessoas que não são do nosso território, entendendo, participando, descobrindo o que está acontecendo e abraçando a nossa luta!” — Beatriz Alves
A mobilização foi encerrada com a leitura de três cartas na Fundição Progresso: a Carta dos Moradores de Santa Cruz; a Carta Políticas e Ações para a Mitigação e Adptação às Mudanças Climáticas, da Articulação Clima, Floresta, Campo e Cidade do Estado do Rio de Janeiro; e a Carta Política AARJ – Eleições Municipais 2024, elaborada pela Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ). Todas sintetizam propostas coletivas pelo fim do caô climático, por políticas públicas que tornem as periferias e favelas resilientes ao clima. É imperativa a adoção de medidas baseadas em políticas ambientais que ouçam as demandas da população e as particularidades de cada território para uma melhoria efetiva e justa para periferias.
Em Outubro, Plano Verão de Adaptação, Feito por Moradores de Favela, É Lançado na Penha
Pouco mais de um mês após os eventos de ativistas e organizações na Lapa, e antes do início das esperadas tormentas de verão, em 26 de outubro, na Arena Carioca Carlos Roberto de Oliveira, a Arena Dicró, na Penha, Zona Norte do Rio, a Coalizão o Clima É de Mudança, composto de organizações periféricas protagonizando o enfrentamento ao racismo ambiental e pautando a adaptação climática, reuniu cerca de 200 pessoas, entre estudantes, ativistas e instituições ambientais para o lançamento do Plano de Adaptação que Queremos Antes do Próximo Verão. A ocasião comemorou a formatura dos participantes do Ciclo Plano Verão de Adaptação e dos grupos regionais de trabalho, metodologia escolhida para o desenvolvimento do Plano.
O evento contou com o apoio do Fundo Casa Socioambiental, Meu Rio, Visão Coop, Plataforma Cipó, Heinrich Boll Stiftung, Donna Natureza e Observatório de Favelas.
Uma das formandas, Edith Medeiros, 28, moradora do Piscinão de Ramos, diz que falar sobre clima na favela é uma forma de alertar o território.
“A gente tá sentindo, não dá mais para evitar. É mais do que urgente, né? Por isso que falei que é um SOS, um pedido de socorro… entender que a gente tá num lugar totalmente poluído… Se a gente plantasse, se tivesse mais plantas… Então, é importante enxergar essas coisas [soluções práticas] que já existem e contribuir para melhorá-las, para acrescentar às formas de reduzir esses danos [dos eventos climáticos extremos]… Não tem como fugir deles, mas a gente pode evitar que piore.” — Edith Medeiros
Já Matheus Teixeira, 26, morador do Morro da Serrinha, em Madureira, e membro do grupo Jovens Negociadores pelo Clima explica que, para ele, a formação foi uma porta para lutar pelos direitos de sua comunidade.
“Acho que a maior dificuldade que a gente tem lá [na Serrinha] envolve o próprio verão em si. A galera sofre muito com o calor e tem falta de água constante. Inclusive, esse fim de semana, estamos sem água lá. Então, esse é o fator que tem prejudicado muito a região onde moro. A importância desse tema é que, no fim das contas, quem sempre sofre com as chuvas, com o calor e outros eventos que a gente está passando são os pobres, é a galera da favela.” — Matheus Teixeira
Com propostas formuladas pelos alunos do Ciclo Plano Verão de Adaptação, o Plano traz recomendações para os principais problemas do estado do Rio. As soluções são pensadas para serem aplicadas a partir de agora, já. Ele visa estimular a cultura de adaptação, que as autoridades ajam antes do próximo verão, antes das chuvas, para evitar tragédias, e não só no socorro pós-tragédia. O documento também apresenta um levantamento do perfil das ocorrências que mais assolam as favelas, como enchentes e deslizamentos.
O Plano Verão de Adaptação foi estruturado em seis eixos:
- Infraestrutura de Adaptação;
- Conjuntura Política e Climática;
- Mobilização e Incidência Política;
- Justiça Climática e Ambiental;
- Cultura de Risco; e
- O Que Percebemos no Planejamento Público Para Emergência Climática.
Cada um dos eixos contextualiza os principais desafios, causas e caminhos para a ação contra os efeitos devastadores das mudanças climáticas. Entre as sugestões práticas do Plano, voltadas a evitar o enorme custo humano e econômico dos eventos climáticos extremos, estão:
- Preparação para emergências climáticas, com brigadas comunitárias para agir durante e após eventos climáticos;
- Desenvolvimento de mapeamentos de risco e vulnerabilidades em territórios, identificando zonas de alagamento e deslizamento e áreas críticas de risco;
- Infraestrutura de resistência climática, com instalação de sistemas de drenagem urbana sustentável (SUDS), com bacias de retenção, pavimentação permeável e jardins de chuva para permitir a absorção da água e prevenir enchentes, entre outras;
- Resiliência de Infraestruturas Essenciais, como hospitais, escolas, sistemas de transporte e redes de energia para que possam operar em situações de emergência climática;
- Adaptações urgentes em áreas de alta densidade populacional e vulnerabilidade de infraestrutura, com soluções tecnológicas de baixo custo, como sistemas de captação de água da chuva, telhados verdes e sistemas provisórios de barreiras e escoamento, medidas que podem ser aplicadas rapidamente, de baixo custo e com impacto significativo na redução dos riscos.
O documento pede que as favelas sejam priorizadas com urgência, assim reduziremos o número de mortes em decorrência dos eventos climáticos extremos. Em janeiro de 2024, segundo afirma o documento, fortes chuvas assolaram moradores da Região Metropolitana do Rio: cerca de 48.000 pessoas foram afetadas diretamente, mais de 10.000 perderam suas casas e, pelo menos, 12 morreram.
Cansados de ver isso acontecendo cada vez mais com cada começo de ano, a Coalizão O Clima É de Mudança e parceiros lançaram a campanha “O RJ Não é Disney”. Essa é uma expressão usada nas favelas para dizer que a cidade não é fácil, não é um parque de diversões. Ela virou slogan para reivindicar a criação de políticas de resiliência climática para as favelas e periferias. Também foi uma provocação ao Governador Cláudio Castro, que, em janeiro de 2024, passava suas férias na Disney, enquanto dezenas de milhares de cariocas estavam desabrigados.
Ainda de acordo com o Plano Verão de Adaptação, cerca de 94.000 unidades habitacionais foram danificadas por eventos extremos e 887 destruídas entre os anos de 2020 e 2023. O prejuízo é estimado em R$1,1 bilhão. Desse total, R$935 milhões correspondem à Região Metropolitana, área de maior concentração de favelas no estado.
O encontro também serviu para mostrar que as favelas detém soluções para os problemas estruturais da sociedade carioca. No entanto, essas soluções criativas, baratas e reproduzíveis precisam ser inseridas no debate legislativo e na dotação de orçamento público. E, acima de tudo, precisam ser democratizadas, chegar ao conhecimento da maioria dos moradores possível. Este foi um dos pontos que destacou o estudante Vinicius Lopes, 25, cria do Conjunto Esperança, no Complexo da Maré, e membro da Coalizão O Clima É de Mudança e da Plataforma Cipó.
“O principal ponto é a gente conseguir uma atuação maior em rede. Só se a gente constrói uma rede periférica, favelada, é que a gente consegue acessar essas informações. Esse é um ponto muito importante… o governo pode dizer, ‘Ah, a informação tá no site, busca no portal tal, na aba tal’, só que isso não chega na gente. Muitas vezes, chega muita informação para a gente através dos nossos parceiros, organizações, lideranças… mas a gente não acessa e, se não acessa, não participa… e o governo fala que já existe participação [como no G20]. [‘Participação’] entre muitas aspas, né? É tensionar mesmo esses espaços e entender que, muitas vezes, a gente não consegue sozinho, mas consegue de bonde, com um apoiando o outro.” — Vinicius Lopes
Os desafios climáticos impostos às favelas são inúmeros, reflexos do racismo estrutural e ambiental. Refletem um complexo sistema de perpetuação de desigualdades e abandono político. Apesar disso, esses espaços se recusam a aceitar tal realidade e buscam sempre a reinvenção, numa intensa busca pelo direito de viver bem e existir com dignidade. Ao contrário do que acontece hoje, os governantes precisam entender que a solução não partirá de cima, mas das bases, de dentro para fora, com participação coletiva, com generosidade ao ambiente e respeito à natureza e à vida humana, independentemente do CEP.