Nos dias 30 e 31 de outubro, após mais de seis anos de espera, finalmente, aconteceu o julgamento dos executores da vereadora e defensora de direitos humanos Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, mortos em 14 de março de 2018 em uma emboscada no Estácio, no Centro do Rio de Janeiro.
Em busca de justiça, às 7h da manhã do dia 30, familiares, amigos e ativistas se reuniram em frente ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) no ato “Amanhecer por Marielle e Anderson”. Organizado pelo Instituto Marielle Franco, Comitê de Justiça por Marielle e Anderson, Anistia Brasil, Justiça Global e Terra de Direitos, o ato pediu a responsabilização dos executores e reparação para os familiares e a sociedade.
Flavia Candido, mãe, professora, moradora do Complexo da Maré, coordenadora do Coletivo Maré 0800, defensora de direitos humanos, ex-assessora de Marielle e atual assessora parlamentar da Deputada Estadual Renata Souza (PSOL), coordenou os primeiros atos da manhã. Suas falas foram contundentes sobre o movimento iniciado pela luta de Marielle e de tantas outras mulheres negras.
“Desde o dia 10 de outubro, estamos fazendo Amanhecer por Marielle e Anderson no Brasil inteiro, pedindo justiça por eles. Hoje é um dia que o Estado pode responder às famílias de Marielle e Anderson, mas também a todas essas mães de vítimas do Estado, o que esse ano foi negado muitas vezes… Por isso, o grito por justiça por Marielle e Anderson é um grito que ecoa em resposta a esses familiares de vítimas aqui presentes. Marielle se tornou o símbolo das sementes que hoje estão aí, fortes, vigorosas, mulheres negras que já foram eleitas, mulheres negras que estão em outros pleitos, homens negros que, a partir de Marielle, estão semeando dentro de parlamentos e fora de parlamentos, buscando políticas públicas mais inclusivas e sempre falando por justiça. Quando Mari entra naquela casa [Câmara dos Vereadores] que não foi feita para esses corpos, ela fala uma frase muito significativa: ‘antes de mim veio Jurema Baptista e antes veio Benedita da Silva‘. Após a execução de Mari, conseguimos colocar naquela casa três mulheres negras. Mas não é só sobre estar naquele espaço, é sobre entender que esses corpos não são corpos matáveis, é sobre entender que a abolição precisa realmente existir. Esses corpos que estão aqui não são corpos com alvo, isso que o Estado precisa entender. A execução de Marielle é uma responsabilidade do Estado. Marielle era a relatora da intervenção federal no Rio de Janeiro e isso é fundamental que se entenda.” — Flavia Candido
Socióloga e vereadora eleita em 2016 com 46.502 votos em sua primeira disputa eleitoral, Marielle foi a quinta candidata mais votada do Rio de Janeiro, destacando-se como mulher negra, favelada, LGBTQIAPN+ e defensora dos direitos humanos. Nascida e criada no Complexo da Maré, antes de ser eleita, liderou por quase dez anos a Comissão de Direitos Humanos da ALERJ como assessora de Marcelo Freixo. Após sua eleição, Marielle tornou-se relatora da Intervenção Federal, decretada pelo governo federal na cidade em 2018. Sua atuação era voltada para os direitos das mulheres negras, dos moradores das favelas, contra a violência policial e as milícias e pelo direito à terra dos moradores de favela.
A chegada da família ao Tribunal de Justiça foi marcada por um cortejo de apoio, cuidado e acolhimento com girassóis. Essa flor virou símbolo da campanha de Marielle em 2016. Em seguida, a família deu uma coletiva de imprensa em que expressou suas expectativas para o julgamento.
“Ontem, perguntaram para a gente como que a gente conseguiu chegar até aqui. Quando eu cheguei ali no carro eu lembrei da minha mãe falando que parecia que a gente estava chegando de novo no velório. São quase sete anos de muita dor, de um vazio, de uma mulher que lutava exatamente contra isso e que foi assassinada da maneira que foi. Mas a gente sempre se manteve muito firme mesmo diante das dificuldades, das adversidades. Acho que isso tem muito a dizer da criação que a gente teve tanto pela minha mãe quanto pelo meu pai.
Depois, perguntaram pra gente qual era o maior legado da Marielle e eu acho que o maior legado dela é isso aqui, são as pessoas que entendem e que têm lutado lado a lado conosco. A gente tá hoje um pouco sem palavras, muito mexidos com tudo porque é reviver aqueles momentos. A gente chega no local do crime e encontra Marielle como a gente encontrou, tem ali um momento de reconhecer o corpo da Mari no IML e depois toda essa avalanche que vem e que a gente não deseja a ninguém, a nenhuma família. Se a gente olhar pra trás e pra todas as pessoas que estão conosco, as mães, as filhas, as irmãs, as esposas, os companheiros, que também passaram por isso e ainda passam, então, hoje, o simbolismo da palavra justiça vai muito além do que vai acontecer. A gente já vem falando há um tempo que justiça seria eles estarem aqui. Mas a gente, infelizmente, tá num lugar em uma sociedade, em um país que não está acostumado a ver justiça. Desde a impunidade que meu pai fala, desde a falta de justiça. Quantas mulheres e homens esperam por um momento como esse! E a gente teve que se manter firme. Então, hoje é mais um passo dado, mas a gente espera que seja um passo que fique como exemplo de força, num lugar onde não pode ser normal banalizar assassinar uma mulher com cinco tiros na cabeça. Não é normal a gente estar sete anos esperando, não é normal a gente seguir vendo corpos mortos sendo tombados na volta do trabalho; tomando tiro na cabeça num ônibus dormindo. Não é normal a violência que assola esse país. Enquanto a gente tiver forças, a gente vai lutar não só pela Mari, porque afeta a gente num lugar muito pessoal, mas também para pensar nesse lugar que esses corpos negros são mortos, são atacados, abatidos de qualquer maneira e ficam impunes. A gente lutou muito e vai seguir lutando por todos que virão, pelas minhas filhas, pelas minhas netas e por todas as gerações que estão aí para que a gente tenha um lugar mais seguro.” — Anielle Franco
Uma das falas mais fortes da coletiva de imprensa foi a de Marinete da Silva, mãe de Marielle Franco.
“Hoje é um dia histórico pra gente, pra mim enquanto mãe, pra família, pra vocês que nos acompanham durante esses seis anos e sete meses pra gente ir pra esse júri com muita força, com muita garra, com muita fé e pra dizer o quanto tudo isso é importante hoje que esses homens sejam condenados. Acho que depois de tanto tempo, eu tô vivendo hoje como se fosse o verdadeiro dia que tiraram minha filha de mim, então, eu ver vocês aqui é exatamente isso, a sensação que eu tenho é essa. De estar vivendo aquela dor, mas a gente vai tentar vencer o que é isso depois de tanto tempo. Não tem como não se emocionar, não agradecer a cada um que tem somado conosco nesses anos todos, nós estamos aqui também por vocês, que não largaram em nenhum momento para estarmos juntos. É uma gratidão enorme! A gente vai estar com esses homens que são réus confessos pra dizer que isso não é normal em lugar nenhum, em democracia nenhuma. Fazer o que fizeram com a minha filha e fazem com outros filhos que chegaram antes da minha e depois. Nós vamos estar hoje aqui pra estar com vocês, pra somar. Pra essa família que tem sofrido tanto esses anos todos, é importante sim que esses homens saiam daqui condenados e que não se normalize a morte, que não se banalize vidas como a da minha filha. Eu estou aqui com outras mães, com outras pessoas que também passam pela mesma dor. É muito importante esse apoio que nós estamos recebendo hoje. E vamos sim pra cima com toda garra e toda força, eles precisam sim ser condenados. Precisamos dar uma resposta para o Rio, para o Brasil e para o mundo.” — Marinete da Silva
Após a entrada da família no Tribunal, o ato prosseguiu com uma caminhada até a estátua de Marielle Franco, localizada no Buraco do Lume, tradicional ponto de manifestações sociais na cidade. Para o dia 31 de outubro, foi organizada no Buraco do Lume uma aula pública sobre o caso, abordando seu contexto e impacto para a sociedade.
Do assassinato até o julgamento as investigações foram muitas vezes controversas. Mudanças de delegados e entraves judiciais só revelam ainda mais o poder e o nível de envolvimento de milicianos e de figuras políticas como mandantes do crime. O feminicídio político de Marielle Franco atesta, sobretudo, a infiltração do poder miliciano no Estado. Desde os primeiros anos, a pressão popular e internacional foi intensa, cresceu e se estabeleceu através de manifestações e campanhas exigindo justiça e responsabilização dos assassinos, cúmplices e mandantes.
“A gente tem falado que talvez essa omissão de informações pelo chefe da Polícia Civil na época tenha sido uma das maiores surpresas e, relembrando aquelas imagens do delegado com meus pais, com Ágatha, com todo mundo que falava que fazia questão de resolver o caso. Pra gente foi uma surpresa. A gente sempre entendeu a peculiaridade e complexidade das investigações, mas também reconhece o trabalho feito até aqui, óbvio. Mesmo com as interrupções, mesmo com todas as trocas e mudanças. Agora, entendemos quem são as pessoas ali… A política, o poder, o dinheiro e a certeza da impunidade. Então, ao mesmo tempo que a gente sabe que as investigações caminharam, a gente também sabe que não era fácil chegar onde chegamos. Então, cada passo dado é um passo a mais na certeza do caminho da justiça.” — Anielle Franco
Os ex-policiais militares Ronnie Lessa e Élcio Queiroz são assassinos confessos da Vereadora Marielle Franco e do seu motorista Anderson Gomes, ambos são associados a atividades ilegais, incluindo envolvimento com milícias. Eles foram presos após investigações que levaram à identificação deles a partir do rastreamento da movimentação do carro clonado usado no crime.
Após anos presos, em meados de 2023, fizeram delação premiada para reduzir suas penas. Os acusados Ronnie Lessa e Élcio Queiroz respondem por três crimes: duplo homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, emboscada e recurso que dificultou a defesa das vítimas), tentativa de homicídio contra Fernanda Chaves, assessora de Marielle na época (única pessoa que sobreviveu à emboscada), e receptação do Cobalt prata clonado usado no crime.
Cláudia Alexandre, mãe de vítima da violência letal do Estado três vezes—Cássio Felipe, 14 anos, assassinado por um policial na porta da escola; Alecsandro Alexandre, 15 anos, da mesma forma que o irmão, assassinado por um policial na porta da escola, e Mateus Bruno, assassinado pela polícia enquanto andava na rua, com três tiros de fuzil nas costas—compartilhou suas expectativas sobre o julgamento do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes.
“Minha expectativa pra hoje é que eles sejam condenados. Eles são instruídos, são da milícia. Implantaram essa milícia aqui no estado do Rio de Janeiro, em todos os 92 municípios. E eles são assassinos convictos. Que se faça justiça, que eles continuem presos. A nossa união faz com que a gente se fortaleça e acredite que vá ter justiça mesmo com a morosidade desses seis anos. É isso que o Estado faz, você imagina, é uma morosidade danada para se fazer justiça para irmos para o tribunal e essa família com o psicológico completamente prejudicado, o físico prejudicado e o Estado não se responsabiliza por conta disso. Então, está na hora de parar, está na hora de se fazer justiça e que ela se faça mesmo que após seis anos. Para todos os familiares que estão esperando, que já passaram por isso e estão passando, não desistam. Não tenham medo porque o medo te mata, ele não te deixa encorajado. Então, quando a gente não tem medo, eles que têm que ficar preocupados conosco, que somos lideranças. 70% dos encarcerados são jovens pretos com a faixa etária de 18 a 29 anos e com as mortes é a mesma coisa. O Estado só sabe matar e, quando ele não mata, ele encarcera. Quando ele não encarcera, ele nos deixa com nosso sangue jorrando no chão e isso é muito grave, é muito sério. O Estado precisa se responsabilizar e precisa parar imediatamente porque a dor é imensurável, não tem preço, é uma dor constante. A dor não é na carne, não é no coração, a dor é diretamente na nossa alma e a gente fica doente. O Estado não paga pela saúde, não se responsabiliza pelo enterro, não se responsabiliza pela habitação, não se responsabiliza pela alimentação e, quando ele mata um dos nossos, mata toda uma família em conjunto, deixa todos nós com danos psicológicos permanentes e ele não está nem aí para essas famílias. Então, lutem, não parem de lutar, não cansem, vão em frente, continuem.” — Cláudia Alexandre
Lessa e Queiroz foram ouvidos por videoconferência por mais de três horas, respectivamente, da Penitenciária de Tremembé, em São Paulo, e do Centro de Inclusão e Reabilitação, em Brasília. Nove testemunhas foram convocadas, sendo sete indicadas pelo Ministério Público e duas pela defesa dos réus. Prestaram depoimentos Fernanda Chaves, ex-assessora e sobrevivente do atentado; Marinete Silva, mãe de Marielle; Mônica Benício, viúva de Marielle; e Ágatha Arnaus, viúva de Anderson. O policial civil Carlos Alberto Paúra Júnior e o agente da Polícia Civil Luismar Cortelettili foram testemunhas de acusação. A perita criminal Carolina Rodrigues Linhares não compareceu e um vídeo foi exibido em seu lugar. A defesa de Ronnie Lessa chamou o delegado da Polícia Federal Guilhermo Catramby como primeira testemunha, enquanto o policial federal Marcelo Pasqualetti foi o último a depor.
O júri popular, composto por 21 pessoas, sendo sete homens sorteados no dia do julgamento, decidiu pela culpabilidade dos réus. Na sentença referente aos homicídios de Marielle Franco e Anderson Gomes, foi destacado que o acusado Ronnie, com total ausência de dignidade, silenciou a vítima com disparos na cabeça, evidenciando uma morte dirigida, encomendada e desejada. O réu não se limitou a matar, mas planejou cada etapa do crime com frieza e precisão. Escolheu cuidadosamente a arma, a munição, procurou pelo silenciador para evitar rastreamento de celular e monitorou detalhadamente a rotina da vítima. O acusado decidiu o veículo a ser utilizado, o local e o horário do crime, e arquitetou todo o processo, incluindo o aliciamento de terceiros para o desmonte do carro e descarte das armas. Cada detalhe do crime foi meticulosamente premeditado e calculado, com o objetivo de garantir uma execução sem deixar rastros.
Mesmo condenados à pena máxima, o acordo de delação premiada limita a pena de Élcio Queiroz a 12 anos e a de Ronnie Lessa a 18 anos em regime fechado, considerando o tempo já cumprido de 5 anos e 7 meses. Assim, o tempo de cadeira que cumprirão parece não refletir a gravidade dos crimes cometidos. Ao todo, a pena imposta aos condenados pelo assassinato de Marielle Franco foi de:
- Pensão: Os acusados foram condenados ao pagamento de pensão no valor de 2/3 do salário da vítima (Anderson) até que seus filhos completem 24 anos de idade;
- Indenização por Danos Morais: Os acusados foram condenados a pagar R$ 706.000,00 (setecentos e seis mil reais) para cada uma das vítimas, incluindo a sobrevivente Fernanda, a filha de Marielle (Luyara), a companheira de Marielle (Mônica), a viúva de Anderson (Ágatha), e o filho menor de Anderson (Arthur);
- Custas Processuais: Os acusados também foram condenados ao pagamento das custas processuais, com eventual isenção sendo analisada na fase de execução;
- Prisão Preventiva: Foi negado o direito de recorrer em liberdade aos acusados, com a manutenção da prisão preventiva, em razão da gravidade do crime e das penas impostas, que justificam a custódia durante o processo:
- Ronnie Lessa: 78 anos, 9 meses e 30 dias são as penas fixadas somadas;
- Élcio Queiroz: 59 anos, 8 meses e 10 dias.
Durante a manifestação, Jorge Roberto Lima da Penha, pai do jovem Roberto de Silva de Souza, executado em 2015 com mais de 111 disparos quando saiu para comemorar seu primeiro emprego com outros três outros jovens alvejados, demonstrou seu posicionamento sobre o conceito de justiça e às condenações perpetuadas no sistema judiciário.
“Hoje, estamos aqui na luta buscando uma reparação porque já tem seis anos que estamos esperando o julgamento da Marielle e hoje está sendo marcante. Justiça tardia não é justiça! É uma reparação e nós queremos que o Estado nos dê uma resposta, a todos os familiares e à sociedade, para que isso não fique impune. Para muitos familiares, o julgamento nem chega nessa parte. Tem familiares que o inquérito policial nem sai da delegacia. É isso que nós queremos. Eu espero que o Estado dê uma resposta satisfatória tanto para os familiares, quanto para a sociedade. Que haja uma sentença condenatória para os que executaram a Marielle e o Anderson juntos. Para todos os familiares eu digo que a gente não pode se calar, nós temos que estar na rua nos manifestando o tempo todo porque nós somos a voz dos nossos filhos, nós não podemos parar, temos que lutar sempre!” — Jorge Roberto Lima da Penha