O dia 10 de setembro marcou o início da Primavera Afro e a 6ª edição da Feira Crespa, cujo objetivo é reconhecer o valor da cultura e beleza negra no Rio de Janeiro. O evento ocorreu no Campo de Santana, no Centro do Rio, onde cerca de 150 pessoas se reuniram ao longo do dia. Durante o evento, foram realizados debates sobre racismo institucional e identidade negra, exibição de trabalhos criados por designers negros, prática de capoeira, dança de hip-hop e música brasileira. A programação teve apoio de empresários negros e artistas locais.
O nome do evento “Feira Crespa” reflete o movimento das mulheres negras em todo o Brasil e tem como objetivo aceitar o cabelo crespo natural abraçando os estilos, como tranças e dreads ao invés de alisamento. Em um ato de rejeição aos padrões de beleza da cultura dominante, o objetivo é promover a consciência racial. Embora este movimento não seja totalmente novo no Brasil–nas décadas de 30, 60 e 70 houveram ondas em que o uso o cabelo natural era um meio de declaração política–nos últimos anos têm se tornado mais forte.
O sábado começou com um painel de quatro mulheres negras discutindo o trauma psicológico do racismo que se impõe às meninas negras já a partir do ensino fundamental. Marcela Lisboa, jornalista, ativista e membro da Casa da Juventude afirmou que “[racismo] também é uma violência psicológica. Na verdade, agora, nós usamos o cabelo crespo, do tipo black power muito alto e as tranças, porque estamos nos libertando de uma das imagens da violência psicológica, que faz com que nós nos achemos feias, e nós não somos”.
Um vídeo recente do YouTube intitulado “Preconceito na Escola, Como Lidar?”, criado pela estilista negra Rayaza Nicácio, proporciona uma visão sobre esse tipo de trauma. Ela conversa com a sobrinha de nove anos sobre as dificuldades que ela já sofreu por causa da textura do cabelo.Sua sobrinha fala que não gostava do cabelo, queria alisá-lo, porque os colegas da ecola disseram a ela que seu cabelo era feio. Ela explica, entre acessos de lágrimas, que quando tinha quatro anos usou química para alisar o cabelo, e ele começou a cair anos mais tarde. Ela tomou remédio e começou a deixar o cabelo ficar natural. No final do vídeo, ela afirma que nunca vai alisar seu cabelo de novo, que ela se ama do jeito que é e que, se as pessoas têm problema com isso, elas podem ir embora. Vídeos, clipes, blogs, eventos e marchas encorajando o empoderamento negro e aumentando a consciência sobre o racismo, inerente ao favorecimento dos padrões de beleza eurocêntricos, estão emergindo atualmente em todo o Brasil.
Embora o movimento do cabelo crespo, das roupas no estilo africano e de outras estéticas negras possam ser muito poderosas para algumas mulheres, Leticia Santanna, profissional de turismo internacional, afirmou que há outras maneiras de empoderar mulheres negras além de se vestirem e usarem o estilo de cabelo.
“Precisamos ter cuidado para compreender que uma mulher negra, se ela quer ser feminina, não tem que usar um determinado tipo de roupa e ser totalmente africana, a fim de ser o estereótipo da ativista negra. Ela não precisa ser nada. Ela pode ser o que ela quiser, como uma garota branca. Eu acho que a noção de liberdade que compreendemos é que nós não precisamos nos vestir de forma estereotipada”.
Joice Silva, lutadora olímpica brasileira, que competiu tanto em Londres 2012 como Rio 2016, manifestou sentimentos similares, afirmando que o mais importante é que as mulheres negras sintam-se bem sobre si mesmas. “É verdade que temos liberdade. Nós podemos fazer o que queremos. Faça o que quiser. Querer alisar ou não alisar o cabelo também é lindo. Se você se sentir bonita está tudo bem”.
Os Jogos Olímpicos e as representações das mulheres negras
Na sequência dos recentes Jogos Olímpicos, o painel também discutiu a importância da representação das mulheres negras no esporte e a idéia do Rio como Cidade Olímpica: “Vivemos em uma dicotomia que era o Rio de Janeiro das remoções–uma cidade que está tentando diminuir determinados espaços marginalizados para que os Jogos pudessem acontecer aqui–mas, ao mesmo tempo, alguns de nós realmente queríamos ser felizes com os Jogos. Nós realmente queríamos dar uma boa recepção a todos que vieram”, explica Letícia Santanna.
Joice Silva enfatizou a importância do esporte em dar às pessoas uma oportunidade para viajar e estudar. As mulheres também discutiram a importância das atletas negras que competiram nos Jogos de 2016, como: Gabby Douglas, Rafaela Silva, Simone Biles e Simone Manuel.
Letícia Santanna declarou: “Eu vi uma reportagem muito interessante falando que 70% das crianças dos Estados Unidos não sabem nadar. Crianças negras. Por que? Porque não são impulsionados para competir neste tipo de esporte. Daí a vitória da Simone Manuel, a menina que ganhou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos não era só uma vitória pessoal, mas uma vitória de toda a população negra dos Estados Unidos, que finalmente viu uma pessoa negra na piscina”.
Ao reconhecer as vitórias impactantes desses atletas, os palestrantes fizeram questão de mencionar as pressões e racismo que estes medalhistas sofreram, apesar de terem ganhado o ouro durante os Jogos Olímpicos.
Letícia Santanna disse: “Tem um outro menina, a ginasta Gabby que ganhou duas medalhas de ouro nas Olimpíadas. Porém, as maiores reportagens nos Estados Unidos por incrível que pareça, não eram sobre o fato da menina ter ganhado estas medalhas, mas sim sobre o fato dela estar com cabelo estranho durante a apresentação. Ela é uma campeã e estavam discutindo sobre o cabelo da menina?”.
Rio Pós-Olímpico
A integrante do painel Ana Paula Patrocínio, estudante de produção cultural da UFRJ, fez a seguinte pergunta: “Em que cidade queremos viver?” Ela fez referência ao recente vídeo do Prefeito Eduardo Paes dizendo para uma mulher negra, ao receber sua casa, que ela “vai trepar muito no quartinho”.
“Este é um exemplo da violência contra a população negra neste país”, afirmou Ana Paula Patrocínio. “Então quando você é um mulher, uma mulher preta, você não tem direitos sobre seu corpo. Você tem medo de andar na rua porque é objetificada”. Além disso, Ana Paula Patrocínio afirmou que a falta de transporte público especialmente para aqueles que vivem na Zona Norte e Oeste do Rio intensifica tais situações. “Eu vivo numa cidade em que a mobilidade é péssima”, disse ela.
Ao considerar essas questões, as mulheres no painel ofereceram soluções para os problemas que continuam a afetar as mulheres negras e a comunidade negra no Rio de Janeiro. Marcela Lisboa afirmou que as escolas públicas precisam ter um certo número de professores negros, para que os alunos possam ter uma referência e formar um senso de identidade. Professores brancos precisam ser educados sobre a história africana, para que possam educar adequadamente as crianças negras em sua história, insistiu ela. A cultura afro-brasileira, como a capoeira, deve ser ensinada nas escolas, para que os alunos possam entender sua história e cultura.
No final do evento, um menino negro, com não mais que dez anos, perguntou às quatro debatedoras como elas continuam fortes. Marcela Lisboa respondeu que sua força é “ancestral” e que essa resistência não começou com ela, mas com muitas gerações antes dela, embora seus amigos, familiares e o Candomblé ajudaram também. Ela ainda disse que sua força vem de querer fazer mudanças para seus jovens primos e parentes, para que eles não tenham que suportar o mesmo sofrimento que ela e outras gerações antes dela sofreram.
A Feira Crespa não foi o único evento que visa reforçar a identidade negra acontecendo na última semana. Um festival de comida afro-brasileira e um evento de um dia, em Mesquita, na Baixada Fluminense, o Encrespa Geral, também promoveram a consciência negra e a cultura afro-brasileira. Outros eventos também estão planejados, como a 7ª edição da Feira Crespa, marcada para acontecer no dia 13 de novembro.