“A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares. Estamos presos em uma rede inescapável de mutualidade, atados em um único laço do destino. Algo que aja sobre alguém diretamente age sobre todos indiretamente.” ― Martin Luther King Jr., Carta de Uma Prisão em Birmingham
Cinquenta anos separam os assassinatos do grande defensor dos direitos civis dos Estados Unidos, Martin Luther King Jr., e da vereadora do Rio, Marielle Franco. No entanto, a discussão do racismo nunca foi tão primordial para o povo do Rio de Janeiro. No dia 5 de abril, um evento organizado pelo movimento de juventude RUA em parceria com o Teatro do Oprimido, conduziu uma discussão inspiradora no Centro de Teatro do Oprimido no Centro do Rio. O painel contou com Ronilso Pacheco, integrante do grupo de estudantes negros do Coletivo Nuvem Negra, da PUC Rio; Daniella Monteiro, membro do RUA e do Movimento Negro Unificado (MNU); e Wesley Teixeira, também do RUA e do Pré-Vestibular Popular + NÓS. A noite também incluiu uma gama de talentos musicais em homenagem a Marielle Franco, incluindo o Grupo Maracatu Baques do Pina, Banda XIX, e Supremacia Records, entre muitos outros.
Ronilso Pacheco, membro do Coletivo Nuvem Negra da PUC, abriu o debate apresentando inúmeras razões pelas quais o racismo é tão persistente no Brasil. Um de seus pontos foi a singularidade do racismo aqui em comparação com os Estados Unidos, e como é necessário desenvolver uma discussão comparativa. Historicamente, o racismo não tem sido confrontado da mesma forma que nos EUA, onde a discriminação explícita pelas leis de Jim Crow e a segregação racial levaram a uma intensa e organizada luta pelos direitos civis, na qual Martin Luther King Jr. desempenhou um papel integral. A falta desse confronto, raciocinou Ronilso, permitiu que a questão do racismo fosse descartada do debate moderno no Brasil em torno de temas aos quais está altamente relacionado, como segurança pública, saúde e educação. Nas palavras de Ronilso, essas condições criaram uma “eficiência do racismo” em toda a história do país. O evitamento “estratégico” do racismo, consequentemente, atribui à desigualdade apenas as razões sociais, quando, de fato, argumentou, classe e raça estão intimamente interligadas no Brasil.
A “peculiaridade do racismo” do Brasil, como Ronilso descreveu, é exacerbada pelo papel que a raça desempenha na violência policial. Ele destacou que os EUA apresentam casos de opressão por forças policiais locais predominantemente brancas contra comunidades negras. No entanto, no Brasil, uma grande parte da polícia é negra, o que convenientemente obscurece o aspecto racial do argumento, já que os autores e vítimas da violência policial frequentemente vêm do mesmo grupo racial. Ronilso também enfatizou a natureza institucionalizada do racismo no Brasil e como a eficiência do racismo é promovida pelos “professores de nossas universidades” que “continuam sendo os brancos”. Ele referiu-se como a “produção e capacidade criativa” dos negros é habitualmente “gentrificada”.
A questão da desigualdade que decorre do racismo institucionalizado também foi abordada por Wesley Teixeira: “nosso país tem muitas riquezas, e nunca desfrutamos dessas riquezas”. Segundo a Oxfam, atualmente os seis homens mais ricos do Brasil detêm a riqueza equivalente a dos 50% mais pobres. O racismo “rouba” o povo negro do Brasil, argumentou o ativista do RUA. Ele também destacou a falta de mudanças recentes na sociedade brasileira, já que a “elite sempre fez transições lentas e graduais”. Ele contrastou isso com o “senso de urgência” de Martin Luther King Jr. por mudança através de resistência pacífica, e apontou para a necessidade de replicar isso na sociedade brasileira. Wesley enfatizou que, assim como Marielle e Martin, “não podemos escolher outro caminho”, já que suas ações “dão significado para nossa vida”.
A ativista do RUA Daniella Monteiro ofereceu uma imagem poderosa de mulheres negras que estão na “base da pirâmide social” e “não se reconhecem” na sociedade. Ela atribuiu essa desigualdade social à falta de representação de mulheres negras no governo, lembrando ao público que a última vereadora negra da cidade antes de Marielle, esteve no cargo há mais de uma década. Marielle Franco, mestre em administração pública, vereadora e coordenadora da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio, foi um claro exemplo de superação pessoal, que depois se dedicou a trabalhar para derrubar essas barreiras raciais estruturais. Daniella pediu às pessoas que usem o legado de Marielle Franco e emulem seu persistente desafio às expectativas sociais ao longo de sua carreira para combater o racismo sistêmico.
À medida que a noite se aproximava do fim, a discussão mudou para possíveis futuras respostas à desigualdade racial da geração mais jovem. Refletindo sobre o tempo que Marielle passou combatendo questões específicas como a violência de gênero e a intervenção militar federal, membros do grupo presentes sugeriram a necessidade de “movimentos de massa” e resistência persistente ao Estado. Wesley apresentou o exemplo do papel de Rosa Parks na organização e desencadeamento do boicote aos ônibus de Montgomery nos anos 50, descrevendo o boicote como uma forma de “arte”, a partir da qual podemos ganhar “aprendizagens práticas”. Ronilso recorreu a um exemplo institucional positivo nos Estados Unidos, onde há universidades historicamente negras que produziram “intelectuais e revolucionários”. A replicação de tais idéias e estratégias permitiria a construção de “caminhos alternativos” para jovens negros brasileiros, disse ele.
Assim como Malcolm X e Martin Luther King Jr. tinham estratégias diferentes no movimento dos direitos civis dos EUA, alguns membros da audiência questionaram se o tipo de tática pacífica empregada por Martin Luther King Jr. é suficiente para desmantelar o racismo. Em resposta às opiniões divergentes entre os participantes do grupo, os participantes do painel enfatizaram a importância do debate e da abertura à variação na estratégia. À medida que a juventude negra do Brasil olha cada vez mais para o legado de figuras como Martin Luther King Jr., Malcolm X e agora Marielle Franco, o provérbio: “Eles tentaram nos enterrar, mas não sabiam que éramos sementes”, ressoa ainda mais poderosamente. Combinando lutas contra o racismo em todo o mundo, concluiu Ronilso, “estamos enfrentando um racismo e… lutando por um sonho”.