O RioOnWatch estará publicando, no decorrer desta semana, uma série de notas sobre o trágico incêndio que destruiu o Museu Nacional neste domingo. A presente nota foi postada, em inglês, no Facebook por Léo Custódio.
Estávamos em Magé, minha cidade natal na Baixada Fluminense, fazendo um churrasco sossegado e com a normal alegria do domingo quando uma amiga correu para a garagem: “O Museu Nacional tá pegando fogo!”, ela avisou repetidas vezes. Ao invés da serenidade típica, seus olhos estavam horrorizados. Seu sorriso também tinha sumido.
A preocupação se espalhou entre nós enquanto as chamas queimavam alguns dos maiores registros da história do Brasil. Em mim, parecia que as chamas queimavam memórias da vida toda e também planos recentes.
Deixa eu descrever um pouco de um contexto que o noticiário provavelmente não vai enfatizar. Uma descrição do que o incêndio significa para pessoas que cresceram na Zona Norte e na Baixada Fluminense, áreas predominantemente negras e mestiças na periferia da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
O Museu ficava em São Cristóvão. O bairro fica ao norte da cidade. A maioria das pessoas morando por ali são trabalhadores de baixa renda. Pela negligência histórica da Zona Norte, a área não é geralmente considerada segura para quem quer passear e dar voltas por ali. Por esse motivo, a Quinta da Boa Vista–parque onde ficava o Museu–é um dos poucos espaços públicos restantes onde pessoas de baixa renda das periferias tendem a se sentir genuinamente confortáveis sem aquela senso de não-pertencimento como muitos sentem nas áreas mais nobres das praias da Zona Sul.
Assim, não é uma surpresa que na maioria das vezes em que passei tardes na Quinta, eu estava predominantemente rodeado por pessoas negras e mestiças. Famílias fazendo piqueniques no parque ou visitando o zoológico; crianças correndo livres e sorrindo na grama; jovens em uniforme de escolas públicas passando o tempo livre…
Assim, sem muita surpresa também, eu ousaria dizer que o Museu Nacional era o mais acessível (em todos os sentidos) para famílias negras e mestiças de baixa renda. Pelo menos eu nunca vi tantas pessoas como eu em nenhum outro museu como eu via no Museu Nacional. Era muito confortável estar no Museu mesmo que algumas das salas fossem desconfortáveis por causa do calor.
Tudo isso para dizer que, além da perda histórica horrível, o fogo é mais um golpe mortal na vida cultural da Zona Norte e de quem sai da Baixada Fluminense para o Rio. Há cada vez menos espaços públicos para trabalhadores de baixa renda com o passar dos anos.
Tenho pensado muito no meu sobrinho (de 10 anos) e no quanto é triste que muitas das atividades culturais gratuitas e baratas que eu tinha na minha infância não estarão mais disponíveis para ele. Alguns adultos em Magé vinham planejando um passeio com as crianças na Quinta da Boa Vista. Esse passeio incluiria uma visita ao Museu. Passeio como aqueles que outros adultos organizavam para nos levar.
A negligência governamental de décadas causou o incêndio. Não só a já reconhecida negligência brasileira por cultura e história, mas especificamente uma certa negligência deliberada aos espaços públicos onde trabalhadores de baixa renda se sintam bem.
Dr. Leonardo Custódio é pesquisador na Universidade de Tampere, na Finlândia, e originalmente de Magé, município da região metropolitana do Rio de Janeiro (@_LeoCustodio_).