Em 2013, as luzes foram apagadas na Vila Hípica, uma comunidade estabelecida no Alto da Boa Vista no Parque Nacional da Tijuca do Rio de Janeiro. Hoje, cinco anos depois, os moradores continuam sem eletricidade. A eletricidade é atualmente fornecida aos estabelecimentos e restaurantes no parque ao redor, mas é seletivamente negada aos moradores da Vila Hípica, no que pode ser considerada uma estratégia para remover ‘passivamente’ as famílias que restam. Num ato de resistência, uma moradora, Maria Haydée Alves da Silva Teruz, conhecida como Haydée, recentemente viajou para Brasília com uma delegação do Conselho Popular para apelar às autoridades federais. Na ocasião, o fornecimento de eletricidade foi prometida, mas até hoje ainda não voltou.
A história da Vila Hípica antecede o estabelecimento oficial do Parque Nacional da Tijuca. Agricultores estabeleceram-se na região do Alto da Boa Vista nos anos 1800. Hoje em dia, os visitantes podem conhecer a “Rota dos Escravos“—uma visita guiada às ruínas de plantações onde o café era cultivado com mão de obra escrava. Foi somente na década de 1940 que o nome Hípica começou a ser usado, quando a Sociedade Hípica Brasileira começou a usar a área, e os empregados da associação gradualmente mudaram-se para lá a fim de estarem mais perto do seu local de trabalho. Haydée lembra-se de ter se mudado para a Hípica na década de 1940 quando o seu pai trabalhava com cavalos. “Quando eu vim pra cá eu tinha dois anos.” Havia até uma escola pública perto da Vila Hípica, agora localizada em terras federais, frequentada pelas crianças da região. “Eu estudei aqui, eu e meus vizinhos, todo mundo.”
A história do Parque Nacional da Tijuca é complicada. De acordo com o site do Parque, é um dos parques nacionais mais antigos do mundo. O Imperador Dom Pedro II declarou a Floresta da Tijuca uma área protegida em 1861—mesmo antes do estabelecimento do Parque Nacional de Yellowstone nos Estados Unidos (em 1872). Entretanto, a terra não foi oficialmente demarcada na época e assim o desenvolvimento por agricultores e trabalhadores prosseguiu. Enquanto esforços de reflorestamento em grande e pequena escala foram feitos durante este tempo, o Parque Nacional da Tijuca somente foi oficialmente criado em 1961–um século depois. Ao longo dos anos, o parque mudou o seu controle entre municipal, estadual e federal, com diferentes órgãos responsáveis por sua proteção–o Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal (IBDF) deu lugar ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), e atualmente a jurisdição pertence ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), um ramo do Ministério do Meio Ambiente. Ao longo das décadas, enquanto a administração do parque e as políticas de conservação mudavam, os descendentes dos primeiros moradores da Vila Hípica lá se mantiveram.
“Não havia mais escola aqui. Depois que o IBDF entrou, acabou a escola. A gente continuou a estudar, trabalhar, descer, subir, e continuar morando. Depois não poderia ter animais domésticos, e aí tiraram os cavalos. Meu pai ficou trabalhando aqui. Meu pai faleceu, e meu irmão continuou trabalhando. Quando [as autoridades] do parque chegaram, eles não entendiam nada do parque, pediram para a gente ajudar fazendo trabalho voluntário. Tudo isso a gente fez. Nem conhecimento da área eles tinham.”
Assim como outras comunidades em todo o Rio, os moradores da Vila Hípica têm sido estigmatizados como invasores e poluidores. Mas pelo contrário, através de décadas vivendo na floresta, os moradores cultivaram um conhecimento ímpar das práticas sustentáveis. Quando a terra foi eventualmente entregue ao governo federal, novos regulamentos foram criados–inclusive a proibição de residências individuais, pois os parques nacionais são classificados como áreas de domínio público e Unidades de Conservação de Proteção Integral.
Foi a partir daí que a situação ficou complicada para os moradores. Após décadas vivendo na floresta, o governo federal queria tira-los da Vila Hípica. Em 2013, o ano que Haydée faz referência como sendo de tentativa de remoção “passiva”, os representantes do parque cortaram a eletricidade. “Em 2013, foi feito um cabeamento subterrâneo de luz, e a gente não pôde mais utilizar a luz. Porque simplesmente eles não querem nos dar energia.” Os moradores da Vila Hípica, de repente, foram cortados da rede, apesar de terem pago pela eletricidade durante décadas. E o pior é que os cabos e geradores elétricos que fornecem energia aos estabelecimentos vizinhos podem ser vistos da Vila Hípica, mas as famílias não podem ter acesso a eles.
A vida sem eletricidade é difícil. A comunidade, outrora composta por dez famílias, ficou reduzida a três. As condições de saúde dos moradores idosos têm sofrido um grande impacto: uma moradora culpa a falta de eletricidade pela morte prematura do seu pai. Agora impedidas de transportar materiais de construção para a comunidade, as casas na Vila Hípica têm se deteriorado aos poucos. Tendo somente geradores para utilizar aparelhos domésticos a gás, os moradores pagam contas altas de gás e dizem que estão poluindo mais o ambiente no qual têm vivido em harmonia durante tantos anos. A mãe de Haydée há alguns anos sofreu uma queda no escuro na sua casa e teve uma lesão permanente. Agora com Alzheimer, ela está acamada com a saúde deteriorada.
Haydée descreve os desafios enfrentados pelos moradores: “Nós tínhamos um tipo de colchão de massagear para circulação, minha mãe não pode mais utilizar. Todos os aparelhos que era pra ela usar com eletricidade ela não pode usar. Nebulização, ela não pode fazer. Nossa dia a dia é complicado, principalmente para ela que é idosa e que necessita de geladeira, de um aquecedor, de medicamentos na geladeira, aparelhos para circulação e para fazer uma fisioterapia melhor. É difícil cuidar [dos filhos]. Como fica uma criança de oito anos sem energia [elétrica]? Não pode ver uma televisão, não pode ver nada. Muito difícil, muito difícil. Nem uma limpeza você pode fazer no escuro. Tem como você fazer alimento com gás, mas não tem geladeira. É muito triste a nossa situação, em pleno século 21. Em que mundo é esse que a gente está vivendo?”
Durante os últimos anos, com a ajuda da Pastoral de Favelas e o Conselho Popular, a comunidade realizou protestos e reuniões com representantes públicos. Uma reunião com representantes do parque em março de 2017 resultou em mais do que frustração. De acordo com os moradores, um representante do ICMBio teria dito que estava apenas esperando que a mãe de Haydée morresse para poder removê-los. Nenhuma opção alternativa de habitação foi oferecida, e os moradores temem que serão removidos para longe da Vila Hípica. Confirmando estes temores, um morador removido foi deslocado para uma favela em Jacarepaguá, na Zona Oeste.
Haydée, no entanto, não tem ficado em silêncio. Recentemente ela viajou para encontrar-se com representantes federais em Brasília, onde um representante do ICMBio prometeu religar a eletricidade. Entretanto, nada foi feito até agora. “Agora tá muito difícil resolver a situação. Inclusive, quando a gente foi para Brasília, foi conversado de religar a luz, e o coordenador do ICMBio disse que ia ligar. Depois ele disse que estava tentando e não conseguiu”. As autoridades então propuseram religar as luzes, mas somente se os moradores concordassem em sair das suas casas. “A gente não aceitou essa ideia deles, ninguém vai aceitar. A gente vai ver o que vai acontecer. Todo mundo vive em suspense. Como se pode viver numa situação como a nossa?” Haydée perguntou.
Enquanto os moradores da Vila Hípica continuam vivendo na incerteza, devemos nos perguntar: removê-los não estaria indo contra o próprio objetivo de proteger o parque e preservar a história da região? Não assegurar os seus direitos à terra faz sentido para a comunidade e a floresta? Outrora guardiãs da floresta, estas famílias agora são condenadas à escuridão, forçadas a abdicar da eletricidade. Ao ver de seus moradores, a sua história e também a história do parque estão sendo sistematicamente apagadas. “O Parque não ‘cresceu’—ao contrário, as pessoas foram saindo. Todos temos uma história”, diz Haydée. Enquanto o caso da Vila Hípica está amarrado nos tribunais federais, há esperança que as ações recentes tomadas pelo Conselho Popular possam ajudar. Por enquanto, os moradores da Vila Hípica permanecem no escuro.