Esta é a última matéria da Série: Museu Nacional em Chamas, publicada pelo RioOnWatch, sobre o trágico incêndio que destruiu o Museu Nacional. Uma versão reduzida da presente matéria por Tarcyla Fidalgo foi publicada, em inglês, pelo CityLab aqui.
03 de setembro de 2018. Faltavam 4 dias para o aniversário de 196 anos da independência do Brasil. Eis que, em uma noite de domingo, os moradores do Rio de Janeiro–e mais tarde de todo o Brasil e do mundo–são tomados pelas notícias do fogo na Quinta da Boa Vista, grande parque situado na Zona Norte da cidade, conhecido por ter servido de residência da família real portuguesa durante sua estadia no país e, após a independência, da família imperial brasileira. Rapidamente, as dúvidas sobre o local das labaredas, sua intensidade e dimensão, se transformaram na amargura da certeza da perda total do palácio histórico que ali se situava, e quase total do maior acervo de antropologia e história natural da América Latina que se encontrava sob seu teto.
Mas a importância do que foi destruído não estava apenas em sua história e em sua dimensão–embora fossem elementos suficientes para toda a comoção gerada sobre o fato. A Quinta da Boa Vista e o Palácio de São Cristóvão (sede do Museu Nacional) são uma referência de lazer e cultura no subúrbio do Rio de Janeiro. O fato de se situarem na Zona Norte da cidade–habitada em sua maioria por pessoas de classe média e baixa–tendo uma malha viária e ferroviária privilegiada, faz com que estes espaços sejam efetivamente acessados pelas camadas mais pobres da população, ao contrário do que acontece com a maioria dos equipamentos culturais da cidade, concentrados na Zona Sul e com dificuldade de acesso para os menos favorecidos.
Desta forma, o museu abrigado pelo palácio era classicamente um dos primeiros, senão o primeiro (e por vezes o último) contato desta parte da população com a ciência e a história do país. São inúmeros relatos emocionados de quem olhou para o fogo e se viu criança, de mãos dadas com familiares, encantado com os fósseis, os animais empalhados, as múmias, ou qualquer outro item do seu acervo de mais de 20 milhões de itens, ainda que somente uma pequena parte estivesse em exposição ao público.
Era ali que os alunos do ensino público, os moradores de áreas distantes, filhos de pais que não podiam pagar sequer pelo ingresso de outros espaços culturais da cidade, conheciam animais que habitaram nosso país na pré-história, percebiam nossa biodiversidade e se encantavam com esqueletos de grandes mamíferos e dinossauros. Era ali que se orgulhavam do fóssil de Luzia, a mais antiga moradora dessas terras de que se tem notícia e que quebrou paradigmas sobre a história da humanidade. E isso tudo a um preço baixo, de transporte, ingresso e alimentação.
Mas o museu conseguia ir além. Além de sua importância histórica, cultural e social, o museu era uma instituição acadêmica prestigiada, reconhecida no Brasil e internacionalmente pela qualidade de seus cursos e de sua produção científica. E de repente, vimos tudo isso por entre as labaredas, como um pesadelo ou um filme de terror. Atônitos. Incrédulos.
Apesar do choque, nenhum brasileiro poderia alegar surpresa. Vivemos em um país pouco ligado à sua história, com um senso de imediatismo digno de quem ainda não conseguiu superar seu passado de saqueamento e colonização. Também somos pouco preocupados com a formação educacional e cultural dos mais pobres, em um perverso consenso coletivo de que as desigualdades são naturais e que o sucesso deve advir de esforços meritocráticos individuais.
Essa espécie de transe, composto de elementos de uma moralidade colonial e neoliberal, nos leva ao próximo ponto deste texto: por que chegamos até aqui? Por que estamos agora chorando pela destruição de um bem de valor material e imaterial incalculável?
A resposta não pode e nem deve ser simples. Não basta ingressar em um jogo de culpas pessoais ou partidárias. A desvalorização da cultura no Brasil não tem sigla nem rosto, embora possamos identificar pontos de inflexão que contribuíram com as labaredas que não saem de nossa memória. O museu que hoje se converteu em cinzas definhou até ser consumido pelo fogo. Foram décadas de abandono e políticas que subavaliavam suas necessidade e possibilidades, enquanto instrumento cultural e enquanto centro científico.
Neste quesito o museu não está sozinho. Testemunhamos longos anos de sucateamento da educação e cultura nacional em nome da definição de outras prioridades públicas, via de regra ligadas às exigências de ajustamento fiscal, superávit econômico, valorização de capital especulativo e atração de investimentos estrangeiros, impostas por arranjos internacionais e aceita por uma elite imediatista e subalterna. A conta simplesmente não fecha, mas o modelo se mostra vantajoso para poucos em curto prazo. Combinação perfeita com o transe colonial/neoliberal brasileiro.
Apesar deste processo já se arrastar há décadas, e ter sido responsável pelo lento definhamento do museu, não se pode falar das labaredas que lhe tiraram definitivamente a vida sem denunciar o momento atual da política e economia nacional, no qual tivemos uma inserção no texto da Constituição Federal que congela os investimentos públicos durante vinte (!) anos. Ou seja, congelamos o pouco que restava dentro do modelo acima retratado! Com isso, as instituições que dependem basicamente de investimento público, especialmente nas áreas de educação e cultura, acentuam seu processo de declínio até que só restem no seu horizonte labaredas e cinzas.
De fato, a UFRJ, a qual pertence o museu, sofreu 7 incêndios em suas instalações nos últimos 7 anos, 3 apenas em 2018, sendo que o prédio que abriga sua reitoria–de arquitetura premiada–está fechado há mais de 2 anos, aguardando verbas para a recuperação de suas instalações após um incêndio de grandes proporções. Parece que o fogo é o destino eleito pelos governantes brasileiros para as instituições de educação e cultura. Primeiro são décadas assistindo seu declínio, para finalmente as verem consumidas pelo fogo. Trata-se de um projeto em curso, e não de acidentes e fatalidades, como argumentaram certas autoridades brasileiras nos últimos dias.
Fazer ciência e cultura no Brasil é, cada vez mais, ato político e de resistência. É teimar em se opor a este modelo que envolve não só a economia e os governos, mas a ideologia difundida entre as pessoas. É ouvir que você e seu trabalho não são importantes, que é melhor privatizar tudo. É criar força para superar os mais diversos obstáculos: da falta de insumos básicos ao fogo que consome anos de trabalho. É abraçar uma carreira subvalorizada, financeiramente e socialmente.
Mas, sobretudo, é ter esperança e força para lutar por dias melhores. Encontrar no reconhecimento dos pares e na transformação provocada pelo ensino um caminho de vida. Construir, ainda que a passos curtos, uma nova forma de pensar e de lutar coletivamente, para que as labaredas que nos atingem sejam não só caos e destruição, mas sirvam de combustível para a incessante luta por um país que valorize a educação e a ciência como formas de se construir uma sociedade livre, justa e solidária, como previsto em nossa Constituição.
Quanto a esta que lhes escreve, eu fui essa criança moradora da Zona Norte que se encantou com os esqueletos do museu e dizia que queria ser paleontóloga. Eu fui a aluna de escola pública que visitou o museu com sua turma no ensino fundamental. Anos depois, eu fui a aluna da UFRJ que assiste seu declínio e que perdeu o prédio em que tinha aulas para o fogo. Hoje, eu sou esta cientista que tem esperança em dias melhores e que foi para a universidade no dia seguinte ao incêndio, produzir conhecimento e garantir que eles tenham ainda muito mais a queimar antes que tudo se acabe e que o projeto seja bem-sucedido por completo.
Tarcyla Fidalgo é candidata a doutora em planejamento urbano e regional pelo IPPUR-UFRJ, mestra em direito da cidade pela UERJ, e estudante do sistema público de educação desde o início da vida escolar (Colégio Pedro II).