Por mais de dois séculos, autoridades políticas, acadêmicas e culturais ao redor do mundo têm classificado bairros de baixa renda como “slums” (bairros sórdidos). A história deste termo e as comunidades nas quais ele foi imposto se estende para além dos lugares de sua aplicação original–ou seja, os cortiços das cidades industriais britânicas e americanas–para quase exclusivamente denotar uma paisagem urbana característica do Sul Global, como tradução preferida do inglês para “favela” entre os inúmeros outros termos nacionais e locais usados ao redor do mundo para bairros populares e informais.
Em seu novo livro, Slums: The History of a Global Injustice (Slums: A História de Uma Injustiça Global), o historiador australiano Alan Mayne examina a etimologia da palavra “slum” e apresenta o caso para removê-la inteiramente do léxico dos regimes de políticas urbanas. Essa palavra, Alan argumenta, passou a representar um sentido enganoso que ofusca as diversas condições sociais, culturais e econômicas das cidades. Traçando as primeiras aplicações do termo por reformadores e formuladores de políticas no contexto euro-americano até a sua posterior formulação colonial no Sul Global, ele afirma que o histórico da palavra de patologizar e racializar a pobreza, além de privar os moradores de direitos, tornou-o inadequado para uso posterior.
Uma Patologia de Pobreza
A palavra “slum” foi registrada pela primeira vez no início do século XIX em Londres, coincidindo com o rápido crescimento urbano da industrialização britânica. A discussão acerca dos slums, como Alan aponta, não se originou dos moradores, mas sim da elite preocupada com a saúde pública e as implicações da pobreza densamente concentrada. Enquanto discussões centradas na precariedade física desses bairros, que abrigou a maioria da classe crescente de trabalhadores industriais, os discursos emergentes patologizaram a pobreza urbana desde o princípio. Os primeiros reformadores, incluindo aqueles com sinceras intenções de melhorar as condições de vida, focaram a conversa sobre slums em torno do que Alan descreve como “alteridade”–“um imaginário oposto a seus próprios mundos familiares, atividades, sistemas de valores”. Reformadores centraram suas denúncias sobre esses bairros em “cultura de slum” e “hábitos de slum”, sugerindo que o estilo de vida e as escolhas feitas pelos moradores foram responsáveis pelas condições nos cortiços.
O conceito de slums e sua inerente “alteridade” foi subsequentemente transportada através do mundo urbanizado de língua inglesa, notadamente para os Estados Unidos e Austrália, onde passaram a enquadrá-lo em conversações sobre política urbana. Essa tendência se materializou nos Estados Unidos com a cobertura acadêmica e jornalística dos cortiços em Nova York, ambos se baseavam em metáforas e personagens que representavam os moradores como desempregados, irresponsáveis ou desamparados. No centro dessas distorções estava a explícita racialização e orientalização da pobreza urbana. Este foi o caso das cidades britânicas do século XVIII até as cidades americanas do século XX, onde o preconceito racial contra imigrantes e negros apoiou agendas de reformas que promoveram políticas de renovação e remoção. Alan afirma que “enganos sobre slum” faz com que preconceito racial e fracasso pessoal, atribuídos aos moradores, estejam embutidos no termo, argumentando que regimes de planejamento e política que enquadram as discussões usando a palavra “slum” perpetuam ainda mais essas distorções seculares.
Uma Construção Colonial
Embora os enganos sobre os slums façam parte de algumas das intervenções urbanas mais destrutivas em cidades euro-americanas, a contradição que Alan articula ao longo do livro é a do legado colonial da construção de favelas. Agendas de planejamento urbano representavam projetos centrais de regimes coloniais e o termo “slum” e suas prescrições políticas associadas foram exportadas para cidades africanas, asiáticas e latino-americanas durante os séculos XIX e XX. Essa construção colonial não só sobreviveu aos movimentos de independência nessas regiões, mas agora é quase exclusivamente aplicada às cidades do Sul Global. Alan traça a trajetória paradoxal de independência e um enquadramento legislativo que reforça as práticas coloniais de remoção de favelas na Índia, Quênia, Uganda, Cingapura, Hong Kong, entre outros.
Alan encontrou que em muitos desses países, “líderes pós-coloniais, que em vez de rejeitar o rótulo de slum como uma construção estrangeira que havia sido artificialmente imposta pelo colonialismo, adotaram metáforas de slum para encapsular a antiga ordem colonial que afirmavam estar desmantelando por meio da democratização e da modernização”. Esse fenômeno talvez foi melhor ilustrado pela Índia pós-colonial, que se tornou o primeiro país a elevar a remoção de favelas à pauta de planejamento nacional.
Além do governo pós-colonial, o termo foi mantido por agências de desenvolvimento internacional, particularmente as Nações Unidas e o Banco Mundial. Essas organizações continuam a influenciar agendas de planejamento ao redor do mundo, enquanto promovem uma estrutura falaciosa ao considerar a pobreza urbana, um fato sobre o qual Alan particularmente discorda. “Em nenhum lugar o conceito [de slums] era orgânico para os lugares que descrevia, ou aceito sem reservas pelos habitantes desses”, ele escreve. Tal foi o caso em cidades euro-americanas e permanece presente em muitas cidades hoje. No entanto, as organizações de desenvolvimento mais influentes continuam a promover esse termo, juntamente com suas distorções inerentes, apesar da evolução de plataformas políticas. Tanto a ONU como o Banco Mundial têm mudado consideravelmente suas respectivas recomendações políticas para bairros informais, favorecendo iniciativas de melhoria e titulação nos últimos anos em relação a esquemas de remoção elogiados no passado. Tamanha evolução na prescrição política pode garantir um discurso mais diferenciado.
Implicações da Linguagem
Ao longo de seu livro Alan argumenta que a insistência no uso da palavra slum em pautas de política social representa uma injustiça global. A linguagem empregada por autoridades e instituições de língua inglesa tem perpetuado uma “guerra aos slums” que tem perdurado por séculos e se estendeu pelos continentes. Em algumas das primeiras aplicações em cidades britânicas no século XVIII, debates sobre “o problema dos slums” conotou violentas lutas entre “civilização e selvageria”. Mais de um século depois, nos Estados Unidos, a conotação mudou muito pouco, já que mais de um milhão de lares foram removidos de bairros condenados como slums em esforços para combater a praga e as incontáveis patologias sociais associadas com tais ambientes. Esses precedentes refletem experiências de remoção e criminalização que persistem até hoje no Sul Global.