A Peneira, uma organização da indústria criativa que atua com intervenções artísticas em espaços públicos, está organizando uma série de debates com candidatos aos cargos de deputado federal e estadual como parte das ações de mobilização da Rio Por Inteiro, movimento suprapartidário para aumentar a participação do cidadão no processo eleitoral. Os debates ocorrem na sala Marielle Franco da Casa de Estudos Urbanos, um espaço de co-working e realização de eventos para debater a produção do espaço urbano.
Os primeiros dois debates, partes do ciclo Cultura em pauta–Debates com candidates ao legislativo, focaram nas políticas de cultura. Essas são frequentemente negligenciadas nas propostas e programas de governo, mas deveriam ser vistas como essenciais não só em termos de lazer, mas também pelo potencial de geração de emprego e renda, valorização dos espaços públicos e promoção da segurança. O símbolo máximo do descaso para com a cultura na política institucional foi o incêndio do Museu Nacional, mas esse fato não foi isolado. Outros exemplos incluem a não valorização e mesmo a tentativa de criminalização da cultura da favela, como quando a prefeitura burocratiza ainda mais o processo de obtenção de licenças para eventos na rua e afirma que não haverá cultura em favelas.
O primeiro debate ocorreu no dia 23 de agosto, com a presença dos candidatos a deputado estadual Dyonne Boy (PSOL), Jaqueline Gomes de Jesus (PT), Iara Roccha (PCdoB), Tainá de Paula (PCdoB) e William Siri (PSOL). Já o segundo, no dia 30 de agosto, teve a presença dos candidatos a deputado federal Reimont (PT), Marcelo Calero (PPS), Mãe Flávia Pinto (PDT) e Anderson Quack (PSOL). David Miranda (PSOL) também foi convidado, mas não pôde comparecer.
É interessante a correlação entre os candidatos que priorizaram a cultura como pauta a ser debatida e defendida, e que portanto estiveram presentes no debate, e o percentual dentre esses que são de favelas. Como apontado em nossa matéria anterior, são de favelas: Tainá de Paula (favela do Loteamento), Mãe Flávia Pinto (Vila Vintém), Anderson Quack (Cidade de Deus) e David Miranda (Jacarezinho).
A questão da favela, portanto, permeou a vivência e a fala de vários dos candidatos, de forma que foi organizado um terceiro debate, intitulado Favela na Alerj, no dia 17 de setembro, por iniciativa da própria Casa de Estudos Urbanos juntamente com a Peneira, para debater o tema com candidatos que fossem de favela. Participaram desse terceiro debate Julio Cesar (PT) da Cidade de Deus, Lourenço Cézar (PSB) do Complexo da Maré, Fernando Ermiro (PMB) da Rocinha, e Dani Monteiro (PSOL) do Complexo do São Carlos. Patricia Honorato (PPL) da Cidade Alta havia confirmado presença, mas não compareceu.
Um exemplo dessa interseção entre pautas de cultura e pautas para a favela pôde ser verificada na recorrência do tema da cultura periférica e da necessidade de fomento para promovê-la. “Eu acredito na obrigatoriedade, na ampliação da territorialização do investimento cultural. Hoje o estado do Rio concentra o investimento público nos centros culturais e teatros. A gente tem que falar de teatro e arte do interior do estado, da Baixada Fluminense. A gente tem que preservar nossa cultura popular e periférica”, disse Tainá de Paula, no primeiro debate. “A gente tem que pensar em um projeto de lei que obrigue o estado a territorializar os seus editais. Os editais são alcançados majoritariamente por grupos da capital, por grandes grupos culturais. A gente quer poeta de vagão ganhando edital, as arteiras de Cabo Frio, o pessoal da ciranda, da roda de coco”, completou ela. Fernando Ermiro fez uma fala semelhante no debate do dia 17 de setembro: “[Vamos parar com o] ‘vamos levar cultura para…’. É redistribuir os editais e deixar o favelado produzir a sua cultura”.
“A cultura afro-brasileira, indígena, de favela, de periferia–esses espaços, esses territórios e esses agentes culturais ficam completamente à margem do sistema”, desabafou Anderson Quack–que é também cineasta–no segundo debate. “É preciso valorizar os pontos de cultura, os territórios e seus agentes. O fomento à cultura está direcionado para o showbusiness. Os editais que temos para o território com recortes raciais são editais vergonhosos”, completou ele, mencionando dificuldades como aportes de baixo valor e uma prestação de contas muito burocrática.
Dani Monteiro, por sua vez, ecoou o ponto de Anderson durante o terceiro debate: “Favelados têm dificuldade de responder a editais. Os bailes que geram emprego e renda na favela não são considerados espaço de cultura, não são fomentados”. Ela ainda lembrou a necessidade de organizadores de eventos nas favelas pedirem permissão à polícia militar para realizá-los. “A PM não entende de cultura. O espaço é público. […] Samba, funk, capoeira não são crimes.” Nesse sentido, Reimont lembrou de sua militância na Câmara Municipal em pautas de cultura, tendo presidido a Comissão Permanente de Cultura e sendo autor de leis como a Lei Gamarra, que instituiu o Programa Municipal de Incentivo, Salvaguarda e Fomento ao Samba Carioca.
“O que sustenta o samba são as rodas de samba na favela. O que sustenta o funk são os bailes funk da comunidade. E quem não circula pela cidade, não consome esse tipo de cultura, não sabe”, disse Mãe Flávia no dia 30. “Quantas vezes a gente não consome [cultura] porque não tem dinheiro para sair da favela? Porque não podemos ir para Lapa? Porque não temos dinheiro pra circular na cidade? É preciso que o povo se divirta e tire um dinheirinho pra sobreviver. É algo que a gente precisa proteger. O direito do favelado se manter de pé. Nós desenvolvemos a cultura como mecanismo de sobrevivência”, completou ela.
Os entraves a essa produção cultural não passam só pelo território onde ocorrem, mas também pelo racismo e pela intolerância religiosa, que em muitos desses casos se somam à discriminação da periferia e da favela. Sobre isso, Mãe Flávia relatou um caso que acompanhou: “[Teve] um caso de um professor que não pôde trabalhar em aula de literatura com Gonzagão e Jorge Armado, porque foram considerados autores do capeta. Inclusive tiveram pais que bateram com a Bíblia na cabeça do professor. Ele foi até ameaçado de morte”.
Para além da questão da cultura, o terceiro debate foi muito permeado por questões de urbanização e segurança fundiária. Quando questionado sobre a regularização e a titulação, Fernando disse: “Para resolver a questão da remoção é preciso fixar o sujeito à terra. O título não impede, mas dificulta a remoção”. Fernando ainda mencionou a necessidade de mecanismos que venham após a titulação para aumentar essa segurança, exemplificando com o Termo Territorial Coletivo.
Para Lourenço, não basta garantir a posse da terra: “Direito à propriedade é a lógica capitalista. A casa na favela não é só moradia, repouso, lazer. É sobrevivência. É onde as pessoas exercem suas atividades profissionais. É o filho construir em cima e continuar contribuindo na renda [da família].” Dani completou: “Não é só passar cimento e colocar relógio, é pensar a urbanização em termos de [distribuição de] equipamentos culturais, é pensar mobilidade, que passa por regulamentar a profissão do mototáxi, é pensar o acesso à água potável. Antes de pensar o direito à propriedade, temos que pensar os outros direitos. Regularização por si só soa como taxação. Não tem como pensar o direito à propriedade em um território onde não foi regulamentado o direito à vida”.
Diante de uma pergunta de um jovem morador da Rocinha que está concluindo o ensino médio aos 27 anos e que não vê oportunidades de capacitação profissional para a sua faixa etária, Dani propôs o fortalecimento do Caminho Melhor Jovem e do Centro de Referência da Juventude. “A juventude negra é tardia. É preciso tornar o terreno da favela produtivo e que valorize a vida do jovem negro”. Fernando também ressaltou a importância da participação política dessa juventude: “Assim que a gente entrar no gabinete metade das vagas têm que ser de gente nova, sem preparo. Não podemos nos eleger para sermos nós mesmos, precisamos formar quadro novo. A gente já viu que dá certo no pré-vestibular comunitário. A gente forma e eles voltam para movimentar a favela.”
Além das temáticas levantadas, a importância desse debate ficou clara no tema transversal de representatividade levantado pelos presentes. “O parlamento não tem a cara do Brasil. A gente mulher, negra é subrepresentada. As pessoas legislam sobre os nossos corpos, mas não têm ideia da nossa vivência. Precisamos da ampliação de uma democracia que ainda não chegou nas favelas. […] É preciso disputar o orçamento da ALERJ para a construção de políticas públicas para os nossos”, disse Dani. Lourenço lembrou ainda da importância de trazer o discurso político para dentro da favela e de não eleger pessoas abertamente contra a favela: “A favela está produzindo conhecimento e esse conhecimento tem que ser transformado em política pública. O Museu da Maré tem feito isso com a memória. A discussão sobre cotas nos pré-vestibulares têm feito isso. Essas coisas precisam virar política pública.”