A Rede Favela Sustentável (RFS) é um projeto da Comunidades Catalisadoras (ComCat)* desenhado para construir redes de solidariedade, dar visibilidade, e desenvolver ações conjuntas que apoiem a expansão de iniciativas comunitárias que fortalecem a sustentabilidade ambiental e resiliência social em favelas de toda a região metropolitana do Rio de Janeiro. O projeto começou em 2012 com a produção do filme Favela como Modelo Sustentável. Em 2017 foram mapeadas 111 iniciativas sustentáveis e foi publicado um relatório final que analisa o processo do mapeamento de 2017.
Em 2018 o projeto realizou uma série de intercâmbios extensivos entre oito das mais duradouras e estabelecidas iniciativas mapeadas, que culminou em um intercâmbio intensivo com todas as 111 iniciativas em 10 de novembro. Entre as oito estão seis organizações comunitárias: a Cooperativa Vale Encantado no Alto da Boa Vista, Ecco Vida em Honório Gurgel, Verdejar no Engenho da Rainha e Complexo do Alemão, Quilombo do Camorim em Jacarepaguá, ReciclAção no Morro dos Prazeres, e a Eco Rede do Alfazendo na Cidade de Deus. Os intercâmbios também incluíram a visita a duas iniciativas com foco além das favelas, sendo elas a Onda Verde em Nova Iguaçu e o Ecomuseu de Sepetiba. Os intercâmbios têm apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil.
Os intercâmbios têm a intenção de conectar diversos projetos de base comunitária que trabalham em questões socioambientais, apoiar o compartilhamento de conhecimento de experiências entre os membros dos projetos, e identificar novas oportunidades conjuntas para promover sustentabilidade nas favelas do Rio. As extensas visitas foram realizadas aos sábados durante os meses de setembro e outubro e culminaram em um evento aberto a todas as 111 iniciativas mapeadas pela RFS no dia 10 de novembro.
A Tarde do Terceiro Intercâmbio: EccoVida em Honório Gurgel
“Quem joga dinheiro fora?” Edson Freitas, fundador da ONG EccoVida, perguntou ao grupo de integrantes da Rede Favela Sustentável (RFS) reunidos na sede da entidade, no bairro de Honório Gurgel, na Zona Norte do Rio de Janeiro, no sábado, 13 de outubro.
Os membros do grupo riram nervosamente, esperando para ver se alguém levantaria a mão. Em uma cidade que recicla menos de 2% de seus resíduos, para Edson, todo mundo é responsável por jogar dinheiro fora na porta de casa: “O que as pessoas pensam que é lixo, para mim é dinheiro”.
O histórico de negligência na parte do governo e degradação ambiental da Zona Norte faz com que o trabalho de organizações comunitárias promovendo a sustentabilidade nessa região seja ainda mais fundamental. Os participantes do intercâmbio testemunharam um lado desta história pela manhã, percorrendo as trilhas da Serra da Misericórdia e aprendendo sobre a prática de agrofloresta com a Verdejar no Engenho da Rainha. Durante a segunda metade do terceiro dia de intercâmbio, o grupo da RFS descobriu outro componente importante do movimento de sustentabilidade da região: o centro de reciclagem da EccoVida, onde a organização executa o projeto EccoPonto Brasil Sustentável. Nas palavras de Edson: “Aqui é coleta de [lixo], aqui é beneficiamento, aqui é reciclagem, aqui é transformação”.
Do Local ao Global e Vice-versa
Edson fundou a EccoVida em 1999 como um meio de coletar materiais recicláveis em sua comunidade Morro Jorge Turco e nos arredores da Zona Norte. Dirigindo pelas ruas com um sistema de alto-falantes acoplado ao seu carro, na época ele readaptou a letra do funk popular ‘Rap das Armas’, para encorajar os moradores a reciclarem materiais domésticos. Ouça aqui:
“Todos os moradores podem colaborar, separando o lixo para reciclar. Então, eu vou te ensinar como reciclar, separando em cada saco, o que eu vou ditar. Têm plástico, vidro e metal, papel e papelão. O AutoPET passa e vai recolher no seu portão. Com essa atitude, todos vão nos ajudar, reduzir o lixo e com as enchentes acabar. Recicle essa ideia, meu amigo e meu irmão. Ouça essa mensagem que vem do coração. Ajude a preservar o meio ambiente. Juntos viver um futuro mais contente. Cata, catar, catar para preservar.”
A EccoVida trabalha para mobilizar comunidades em torno do “conceito de que o lixo não existe”, com foco na organização de cooperativas de catadores e centros para separar materiais recicláveis, além de educação ambiental para escolas e empresas, consultoria ambiental, participação na iniciativa Lixo Zero do Rio e organização de passeios pela natureza. A EccoVida foi até mesmo a parceira de reciclagem oficial da prefeitura do Rio durante os Jogos Olímpicos de 2016: 32 cooperativas e 220 coletores de lixo na rede da EccoVida obtiveram, em cerca de um mês de trabalho durante as Olimpíadas, entre R$4.000 e R$7.000 cada um—gerando benefícios financeiros e ambientais que representam o modelo mais amplo da EccoVida.
Edson explicou que quando criou a EccoVida, sua compreensão de sustentabilidade centrou-se em torno de suas necessidades e de suas próprias experiências. Com o tempo, no entanto, Edson aprendeu que as questões ambientais se estendem para além de sua casa, sua rua e até mesmo seu país. Ele acredita agora que proteger o meio ambiente é uma questão global.
Edson disse aos membros da RFS que se apaixonou pelo trabalho em parte por causa de seu potencial para fornecer meios de subsistência, apontando para sua própria família como exemplo. Ele conseguiu sustentar seus três filhos durante a faculdade devido ao seu trabalho na EccoVida: todos os três concentraram-se em algum tipo de estudo ambiental. Agora, a EccoVida emprega permanentemente 32 pessoas, mantém centros de coleta seletiva em comunidades em toda a cidade, incluindo uma parceria com a iniciativa ReciclAção, também da RFS, no Morro dos Prazeres, na Zona Central do Rio de Janeiro.
Traduzindo Consciência em Ação
Apesar do potencial da reciclagem para transformar os meios de subsistência e o ambiente natural, Edson culpa a corrupção e políticas públicas pobres pela falta de popularidade do assunto—e a falta de pressão pública para mudar essas políticas. “A gente tem hoje uma omissão muito grande da sociedade em si, principalmente a sociedade organizada, que fala muito em fazer a sustentabilidade, mas na prática não faz nada”, disse Edson ao grupo da RFS.
Quando Edson “foi criando modelos do conceito” sobre o meio ambiente, descobriu que a educação não era o que faltava: “Eu vi que faltavam opções para as pessoas”.
Ele explicou que a prefeitura e os sistemas fiscais incentivam a degradação ambiental mais do que incentivam a proteção, dizendo: “Eles me consideram pior do que aquele cara que corta árvores”. Apesar de anos de lobby por políticas de promoção da reciclagem, Edson há muito tempo vê sua causa negligenciada pelas autoridades públicas. “A quem interessa não preservar? A quem interessa não gerar renda? A quem não interessa que aconteça isso?” Edson perguntou, apontando aos interesses especiais que mantêm os aterros do Rio. “Eles sabem que a gente existe, mas fecham os olhos… Eles não querem que a gente entre para formalização, porque as pessoas vão ter mais consciência [dos benefícios da reciclagem] e aí vai mudar o mercado”, disse ele. Citando exemplos de taxas de impostos injustos aplicados a cooperativas de reciclagem, Edson explicou: “Por isso que eu falo que a sociedade tem que participar. Por isso que eu falo do mandato participativo”.
Os desafios da EccoVida não param nas políticas públicas ineficazes. As novas tecnologias tornaram a coleta e a triagem de materiais recicláveis cada vez mais eficientes, uma faca de dois gumes que levou a uma redução nos empregos da EccoVida, especialmente quando se trata de seu produto mais lucrativo: garrafas plásticas. “O que eu fazia em um mês, ela [a máquina] faz em menos de uma semana”, explicou Edson, um tipo de desenvolvimento que o levou a lamentar dizendo que “o mercado capitalista é cruel”.
Visitando as Instalações, Trocando Ideias
Depois de conhecerem a criação e a missão da EccoVida, os participantes do intercâmbio da RFS percorreram a sede da organização, visitando o ponto de entrada de materiais recicláveis e os espaços abertos onde tudo, desde garrafas plásticas até papelão, é separado em sacos, e cada um destes sacos cheios de materiais, pode ser trocado por até R$1500. “Quando a embalagem chega no consumidor, ele tem uma decisão a tomar“, disse Edson. “Eu vou jogar no lixão, ou eu vou continuar o ciclo de vida dessa embalagem, preservando o meio ambiente? Só que quando [a pessoa] tem a atitude de desperdiçar esse dinheiro e essa matéria prima, ela não gera emprega e renda. Mas ela vai gerar o que? Despesa e poluição.”
Enquanto o grupo testemunhava a transformação que ocorreu no centro da EccoVida, os participantes compartilharam histórias e perguntas relacionadas à reciclagem. Por exemplo, o fundador da Onda Verde, Hélio Vanderlei, disse aos membros da RFS que em Volta Redonda, um município localizado a aproximadamente 128 quilômetros de distância, o governo local paga R$625 por tonelada de materiais reciclados. Edson expressou descrença porque a taxa de pagamento excede em muito a oferecida pela cidade do Rio. Em Volta Redonda, no entanto, as cooperativas de catadores de materiais recicláveis enfrentam um conjunto diferente de desafios: elas não são capazes de coletar tantas toneladas de materiais quanto poderiam, devido à falta de treinamento e recursos necessários para mobilizar efetivamente, Vanderlei explicou.
Observando a pura quantidade de materiais recicláveis somente na sede da EccoVida, vários membros da RFS ficaram animados com o potencial de trazer empregos sustentáveis para suas comunidades. Representantes do Ecomuseu de Sepetiba, por exemplo, perguntaram a Edson como eles poderiam começar cooperativas de reciclagem, discutindo como poderiam coletar e transportar materiais e quem de sua rede estaria interessado em participar. O terceiro intercâmbio da Rede Favela Sustentável foi concluído, e esses momentos garantiram que os materiais da EccoVida não foram as únicas coisas reaproveitadas do dia.
Veja nossas fotos da visita à EccoVida (ou clique aqui para o álbum):
Leia sobre todos os intercâmbios da Rede Favela Sustentável aqui.
*RioOnWatch é um projeto da ONG Comunidades Catalisadoras.