No ano de 1991, o então presidente Fernando Collor de Melo enviou para o Congresso Nacional uma proposta do que viria a ser uma política nacional que regulamentasse a gestão do lixo no país. A ideia era apresentar essa política na Eco 92 e mostrar para o mundo que o Brasil, finalmente, estava dando a devida atenção ao meio ambiente urbano no que tange ao cuidado com o lixo gerado nas cidades.
Até então, cada município formulava o seu plano de gestão para o lixo e o executava. Não havia facilidade de financiamento público para o setor e essa consistia apenas no recolhimento do lixo do espaço urbano e sua disposição em lixões localizados nas periferias das cidades. Nesses espaços de descarte se registravam todo o tipo de contaminação ambiental possível. Esses lugares também eram criadouros de vetores nocivos à saúde humana e, não por acaso, doenças como dengue, febre amarela e difteria se tornaram endêmicas a partir de meados dos anos 1980, inicialmente nas grandes cidades.
Nesse cenário degradante e contaminado dos lixões, entre lixo e urubus, havia pessoas que separavam partes do lixo—a parte que poderia ser vendida para as sucatas e, posteriormente, para as indústrias de reciclagem. Com isso, esses trabalhadores até então invisíveis passaram a se ocupar não mais da coleta do lixo mas dos materiais recicláveis, aqueles resíduos que potencialmente poderiam ser reintroduzidos no processo produtivo e por isso são requisitados pela indústria da reciclagem.
Essas pessoas, atuando nos lixões brasileiros desde o final do século XIX, se auto denominavam catadores, vocabulário originário no cenário agrário de onde vinham. Quando migravam do campo para a cidade e não conseguiam obter as mínimas condições de sobrevivência digna, acabavam nos lixões em busca do que pudessem encontrar naqueles lugares. Assim, ao problema da contaminação ambiental se somou a questão social das pessoas que vivem no local e sobrevivem da massa de lixo que diariamente é despejada nos lixões oficiais e clandestinos das cidades brasileiras.
Fruto de intensos debates nos diversos âmbitos da sociedade, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) é só instituída pelo Governo Federal em 2 de agosto de 2010, visando regulamentar as ações do setor dos resíduos sólidos no Brasil. Espera-se dos atores envolvidos—governo nas três escalas, a indústria da reciclagem e a indústria das embalagens, a sociedade e os catadores—articulação de forma que os objetivos e recomendações da política sejam cumpridos.
Em resumo, a PNRS propõe:
- Erradicação dos lixões;
- Incentivo à separação dos resíduos;
- Participação de catadores na coleta seletiva;
- Apoio a estratégias que propiciem a reciclagem; e
- Destino final em aterros sanitários e/ou incineração desde que haja recuperação energética.
Nesse sentido, elementos como a logística reversa (isto é, os meios para a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento ou destinação adequada), acordos setoriais (o contrato entre o poder público e os fabricantes que determina responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos), pagamento aos catadores pelos serviços ambientais prestados à sociedade, construção de aterros sanitários e a coleta seletiva passam a entrar na pauta de debates para a efetivação da PNRS.
As tabelas em seguida oferecem um retrato do período anterior e posterior ao surgimento da PNRS em 2010:
Destino Final dos resíduos sólidos:
Locais de destino final dos resíduos:
Cidades com coleta seletiva:
As cidades tinham quatro anos para atender as recomendações da PNRS. Portanto, esperava-se que a partir de agosto de 2014 todos os lixões, oficiais e clandestinos, tivessem sido erradicados, todas as recomendações da lei tivessem sido atendidas e que não houvessem mais catadores avulsos perambulando nas ruas das cidades brasileiras, tampouco nos lixões atuando em condições de trabalho insalubres. Menos ainda, que os rendimentos conseguidos com o trabalho com os materiais recicláveis não fossem tão baixos para os catadores, que tipicamente ganham menos de um salário mínimo por mês.
No dia 16 de janeiro de 2019 estivemos na Associação de Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho (ACAMJG), localizado em Duque de Caxias, Baixada Fluminense. A associação ficou internacionalmente conhecida devido ao documentário Lixo Extraordinário, que concorreu ao Oscar em 2011. A partir desse contato inicial que mantivemos com a ACAMJG, elencamos alguns aspectos da Política Nacional de Resíduos Sólidos que deveriam estar sendo cumpridos—mas não estão sendo—pela Prefeitura Municipal de Duque de Caxias.
Cuidado com o Meio Ambiente
A PNRS inova por ser uma política que relaciona os aspectos socioeconômicos aos ambientais. A realidade na gestão dos resíduos na cidade deixa a desejar em ambos os quesitos. O rio que passa ao lado da associação de catadores de Jardim Gramacho está assoreado, há descarte clandestino de resíduos de construção civil e de matadouros. Estar perto do rio é sentir o mau cheiro dos dejetos; é sentir o mau cheiro de uma falta de cuidado e respeito com as pessoas e com o meio ambiente.
Logística Reversa
Um dos aspectos importantes da PNRS é a elaboração de um plano de logística reversa que envolva a indústria das embalagens. Para tanto, no ano de 2015 firmou-se um acordo para que as indústrias apoiassem as iniciativas municipais de forma que os custos do manejo das embalagens encontradas no lixo fossem divididos entre as indústrias e as prefeituras. Dessa forma, iria se cumprir um dos objetivos da política nacional que é justamente a divisão na responsabilização sobre a gestão dos resíduos, sendo essa realmente compartilhada entre os órgãos municipais de limpeza pública e a iniciativa privada.
A partir da logística reversa, há, ainda, o cumprimento ético do cuidado com o meio ambiente de tal forma que quem gerou o resíduo assume o compromisso de dar a melhor destinação final a ele.
Os galpões de triagem de resíduos da Associação de Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho faz lembrar o livro Sem Logo de Naomi Klein. Nele, a autora vai relacionando as marcas das grandes indústrias e as diversas infrações econômicas, sociais e ambientais provocadas por essas indústrias nos países asiáticos.
Assim, os resíduos revelam-se de algumas marcas de produtos industriais importantes. Passados mais de três anos, o acordo setorial formalizado entre as municipalidades, governos estaduais, Ministério do Meio Ambiente, indústria de embalagens, indústria da reciclagem e entidades de catadores continua apenas no papel, devidamente formalizado, porém sem funcionamento prático.
Entidades Autogestionárias
Para a PNRS, as entidades de catadores devem ser autogestionárias, ou seja, elas próprias devem se incumbir de todos os elementos da sua gestão. Aspectos como equipamentos de proteção individual (EPIs) não apropriado à atividade dos catadores, péssimos locais de trabalho—inclusive com formação de microclimas de temperatura elevadíssimas—e ausência de máquinas e equipamentos que facilitam o trabalho dos catadores são desafios constantes. Há ainda a necessidade de reforçar a importância de uma cultura de segurança no local de trabalho junto aos catadores.
Reciclagem: Ocupação e Renda
No Brasil, mais de 90% do material a ser reciclado advém do trabalho de coleta de mais de 1 milhão de catadores. Um dos pilares da PNRS é a dinamização da atividade da reciclagem, pois o seu incremento implica na geração de ocupação e renda para os catadores. A reciclagem é um setor industrial que cresce, em média, 12% ao ano. O mercado nesse setor toma forma de oligopsônio, ou seja, poucos grandes compradores e muitos pequenos vendedores.
Portanto, quando as indústrias engrossam o coro que as municipalidades devem pagar sozinhas pelos custos da coleta seletiva, levanta-se o questionamento se isso não seria uma forma velada de socialização dos custos privados da indústria da reciclagem, se não seria uma forma de ambientalismo econômico da reciclagem.
Nova Legislatura e Perspectivas
Inicia-se em 2019 os novos mandatos no Executivo (presidência e governos de estados), no Senado e na Câmara de Deputados. Na reforma ministerial do novo governo, primeiro optou-se por extinguir o Ministério do Meio Ambiente (MMA), alocando as suas atribuições para o Ministério da Agricultura. Em seguida, manteve-se o MMA, porém, muitas das suas atribuições foram distribuídas entre os demais ministérios.
Não está claro as sinalizações no que tange ao setor dos resíduos sólidos. E, dado os cortes que estão sendo realizados nas diversas políticas sociais, das quais os catadores são beneficiários diretos, as perspectivas para o setor não são nada animadoras.
Fábio Fonseca Figueiredo é doutor em Geografia Humana pela Universidade de Barcelona, Espanha, professor do Departamento de Políticas Públicas e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e membro do grupo de pesquisa Socioeconomia do Meio Ambiente e Política Ambiental (SEMAPA) da UFRN.
Valeria Pereira Bastos é doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), professora do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio e membro do Laboratório de Estudos Urbanos e Socioambientais (LEUS).