Ainda Ameaçada de Remoção, Comissão de Rio das Pedras Amplia o Foco e Oferece Serviços Básicos

Onde a Prefeitura Falha #JuntosSomosMaisFortes

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Durante uma aparição em 13 de fevereiro na TV Globo, foi pedido ao Prefeito Marcelo Crivella que comentasse a situação de Rio das Pedras, uma comunidade na Zona Oeste que estava entre os muitos bairros do Rio de Janeiro atingidos por uma tempestade devastadora na semana anterior. Seus pensamentos para o futuro da comunidade provocaram indignação entre os moradores, reacendendo temores de remoção, a qual a comunidade havia se mobilizado para pôr um fim no final de 2017. Os comentários do prefeito não foram apenas ofensivos para muitos moradores, mas também enganosos. Na entrevista televisionada, Crivella declarou:

Rio das Pedras me preocupa muito. Foi o primeiro projeto que levei na época do Presidente Temer. Infelizmente havia ali um grupo de milícia muito forte. Acho que a população do Rio de Janeiro acompanhou isso. E houve uma reação por parte daquele grupo, que agora sei que foi todo preso, e nós podemos retomar o projeto. O problema de Rio das Pedras, são dezenas de milhares de pessoas—quase cem mil pessoas que têm todo dia, vamos dizer assim, o esgoto lançado na lagoa da Barra da Tijuca. É um problema sério, não há como a gente fazer a retirada daquele esgoto ali normalmente porque o solo é muito fraco. A tubulação, que já foi tentada diversas vezes, ela rompe. As bombas elevatórias para chegar até a CEDAE… não funcionam.”

Crivella continuou avaliando a situação de segurança pública em Rio das Pedras:

Já temos um projeto para fazer mais ou menos 11.000 casas, e aí começar agora, já que a polícia interviu. Já que agora temos segurança lá, já não há mais um grupo de milícia dominando a comunidade. Podemos iniciar essas obras, que não sei se concluo no meu governo, mas que vão ficar, vamos dizer assim como uma ‘redenção’ de tantos anos de abandono, para a cidade do Rio de Janeiro.”

Os membros da Comissão de Moradores de Rio das Pedras ficaram indignados, vendo os comentários do prefeito como um desdém de seu esforço de mobilização, que interrompeu seu projeto de ir adiante. A Comissão tinha isto a dizer em seu grupo do Facebook:

“É triste ver como o repertório dos políticos é infindável no que toca a criar desculpas para minimizar a má administração e a governança apática dos últimos tempos.

Já ouvimos que não se pode realizar ou manter um projeto por falta de recursos, já ouvimos que a culpa é da administração anterior.

Porém, o que vimos hoje foi a acusação de que os cidadãos de bem, que bravamente lutaram pela manutenção do pouco que possuem, serem acusados de ser miliciano e serem os verdadeiros responsáveis pela ausência de investimentos do poder público na comunidade que estes mesmos moradores defenderam com unhas e dentes contra a remoção pretendida pelo prefeito.”

Outro morador foi rápido em apontar que a presença da milícia em Rio das Pedras não havia sido eliminada, como sugerido por Crivella. O morador escreveu: “Não há mais uma presença de milícia no Rio das Pedras—quem pode dizer? No mundo religioso de Crivella, mentir não é pecado?”

Uma multidão de moradores se ofendeu com as observações do prefeito—em parte por causa de sua insistência em concluir um projeto que já havia sido derrotado, mas também por sua disposição de comparecer perante o público e fazer declarações falsas sobre sua comunidade. Enquanto Crivella estimou a população em 100.000, segundo a Comissão de Rio das Pedras, mais de 180.000 pessoas vivem na comunidade. O plano do prefeito de construir 11.000 casas adicionais não contempla as dezenas de milhares de pessoas que serão deslocadas por seu plano de remanejamento da comunidade. Além disso, citando dificuldades técnicas na implementação de um sistema de saneamento básico na comunidade, Crivella descartou rapidamente o projeto de infraestrutura de R$64,7 milhões realizado em Rio das Pedras pela Secretaria Estadual de Habitação, construído por mais de 200 técnicos e trabalhadores durante um período de dezoito meses de planejamento e construção. Concluído em 2015, o projeto deveria fornecer para mais de 30.000 pessoas saneamento básico e incluir a pavimentação de uma grande parte das estradas da comunidade para facilitar as necessidades de transporte. No entanto, os moradores testemunham que as bombas simplesmente nunca foram ligadas. Seus comentários sobre a inviabilidade dos aprimoramentos da infraestrutura levantam a questão: por que o prefeito quer simplesmente gastar milhões de reais em projetos que já geraram gastos públicos e que foram concluídos há menos de uma década?

A entrevista se concentrou fortemente nas enchentes vividas em Rio das Pedras depois das fortes chuvas no início de fevereiro. Localizado em uma área baixa, Rio das Pedras, de fato, sofre rotineiramente com inundações. No entanto, o prefeito também afirmou que seu antigo bairro Lagoa, na Zona Sul do Rio, foi atingido pelas chuvas. Isso toca em um fator importante no debate: a inundação é um risco não apenas nas favelas do Rio, mas também em áreas ricas da cidade localizadas em áreas de mananciais. (Coincidentemente, ou talvez não, a residência atual do prefeito está localizada do outro lado de um pequeno lago que dá em Rio das Pedras.) Ao examinar o mapa do solo da cidade, fica claro que o solo de Rio das Pedras é exatamente do mesmo tipo que o solo da maior parte da Barra da Tijuca, e compartilha um solo semelhante com locais como o Shopping Metropolitano e o complexo da Vila Pan-Americana (usado para hospedar atletas durante o megaevento e depois vendidos como apartamentos de luxo). Um mapa oficial da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) mostra a proximidade entre Rio das Pedras (retângulo preto), Vila Pan-Americana (estrela de cinco pontas) e o Shopping Metropolitano (estrela de quatro pontas); coloração cinza indica áreas urbanizadas.

Geógrafos da Universidade Federal Fluminense (UFF) observam que os riscos de enchentes foram exacerbados em toda a cidade devido à má gestão ao longo das décadas, como a implementação de estratégias como a canalização em vez de estratégias de resiliência urbana de longo prazo. Isso é particularmente preocupante, uma vez que o Rio é previsto para ser a cidade mais afetada pelas mudanças climáticas na América Latina. Os geógrafos da UFF relatam: “Estas obras mal planejados são reflexos da falta de um planejamento urbano adequado, que leve em consideração as condições topográficas do relevo, assim como um sistema eficiente de drenagem urbana. A cidade do Rio de Janeiro apesar de possuir em teoria um plano de manejo das águas pluviais, aplica muito pouco na prática as devidas medidas de prevenção às enchentes, inundações e alagamentos”.

A área ao redor de Rio das Pedras era rotineiramente sujeita a projetos de canalização implementados no início do século XIX, quando esta era uma região de cultivo de café. Na década de 1950, o Departamento Nacional de Obras e Saneamento realizou grandes projetos na área, como escavar o canal principal na comunidade, em um esforço para drenar e maximizar a terra utilizável. Segundo os geógrafos da UFF, este projeto não levou em consideração o nível máximo de inundação que o canal poderia suportar ou a impermeabilidade do solo da região. No entanto, ao contrário da alegação do prefeito de que a comunidade está situada em uma área “de risco”, em avaliações de risco ambiental conduzidas sob a administração do ex-prefeito Eduardo Paes em 2013, apenas cinquenta casas—todas nas margens da Vila Pinheiro, perto dos morros—encontrava-se em risco a ponto de precisarem ser removidas. Em vez de recomendar a remoção, as avaliações concluíram que a titulação das terras, limitando certos desenvolvimentos, definindo áreas de zoneamento e criando um plano de transporte para a comunidade deveria ser priorizada.

Desconstruindo a narrativa

A Comissão de Rio das Pedras tem uma visão muito diferente da comunidade e do seu futuro do que a preconizada pelo prefeito. Trabalhar para mobilizar a comunidade durante a luta contra as remoções em 2017 reuniu o grupo e colocou-os em contato com milhares de moradores. Eles experimentaram em primeira mão as dificuldades enfrentadas pelos moradores, mas também as histórias notáveis e inspiradoras trazidas à vida por eles. Andreia Ferreira, membro da Comissão, lembrou que jornalistas e políticos raramente visitam Rio das Pedras e, quando o fazem, é para relatar os aspectos negativos da comunidade, assim como Crivella fez em seus comentários na TV. Andreia refletiu:

É como se a comunidade só tivesse coisas ruins, mas é muito pelo contrário. Quando a comunidade tem tráfico, a aparência que dá na mídia e que só existem traficantes na comunidade. E não é assim, é minoria! E deve até parecer que é maioria, porque tudo empurra para isso. Pessoas lutam contra, lutam para ser uma pessoa do bem, e só toma porrada todo dia. A comunidade deveria ser exaltada diariamente nos noticiários porque são pessoas tentando vencer a injustiça que é imposta às pessoas mais pobres, pessoas que têm tudo para ser os piores seres humanos no mundo e são os melhores.”

Apesar da infundada narrativa negativa da mídia em torno de Rio das Pedras, ao final da luta da comunidade contra as remoções em 2017, a Comissão de Moradores de Rio das Pedras ganhou um enorme número de seguidores: um grupo no Facebook com mais de 17.000 membros e uma base de fãs ainda maior em Rio das Pedras em si. Dois dos membros mais expressivos do grupo, Lorena Carvalho e Andreia Ferreira, perceberam que mudaram o feitio da comunidade através de seus esforços de mobilização por um ano. Elas mal conseguiam passar um dia sem serem procuradas, e então decidiram usar este alcance para o bem.

Andreia reflete:

Ao longo desses anos a gente foi percebendo que quando chega o tempo das eleições, o político aparece, faz uma maquiagem, e some. Fora isso, nunca aparece ninguém dentro da comunidade. Hoje, Rio das Pedras, como sempre foi, está abandonada. A gente viu que conseguimos resolver alguns problemas juntos, nunca sozinho. Dentro de Rio das Pedras existem pessoas que passam fome. Quem ajuda essas pessoas? Ninguém. Percebemos que se a gente não erguer as mangas e trabalhar e ir atrás, essas crianças vão perecer. Lógico, deveria ser diferente, mas infelizmente não acontece. Então, além de pagar nossos impostos, a gente tem que trabalhar para fazer o que o governo não faz”.

Em 2018, a Comissão mudou oficialmente seu foco para atender às necessidades da comunidade de forma mais ampla. Usando a hashtag #JuntosSomosMaisFortes, amplamente usada em todo o esforço de resistência de 2017, o grupo—liderado por Andreia e Lorena—trabalha para atender às necessidades básicas da comunidade e fornecer uma rede de segurança onde o governo a negligenciou. Nas palavras de Lorena, “a gente se sente bem em ver as pessoas bem”.

Projetos

Depois de ver o enorme impacto da Comissão na comunidade de Rio das Pedras, a Associação de Moradores decidiu abrir um espaço em seu prédio para o grupo trabalhar, e pediu que eles assumissem seus dois projetos existentes: aulas de reforço escolar e aulas de balé. O programa de reforço escolar tem como objetivo fornecer apoio educacional adicional para crianças que estão com dificuldades—um projeto muito necessário e utilizado, dada a histórica negligência pública nas escolas de Rio das Pedras.

Com a ajuda de outros membros da comunidade, Andreia e Lorena têm trabalhado arduamente para oferecer o máximo possível aos moradores de Rio das Pedras. Vários projetos importantes decolaram, muitas aulas adicionais foram lançadas e eventos em toda a comunidade atraíram milhares de pessoas. Segue-se uma lista de atividades e projetos sociais organizados pela Comissão em 2018:

  • Alfabetização de Adultos: A Comissão notou, ao longo de seus esforços de mobilização, que muitos membros da comunidade eram incapazes de ler documentos ou assinar seus nomes. O grupo lançou aulas gratuitas de alfabetização de adultos, ministradas por um profissional voluntário.
  • Abrace um Idoso: Este projeto pede que voluntários da comunidade visitem e ofereçam apoio a moradores idosos de Rio das Pedras—quer isso signifique oferecer um corte de cabelo, fazer um telefonema necessário ou simplesmente passar para uma visita.
  • Clube de Futebol: O projeto mais recente foi o lançamento de uma equipe de futebol juvenil. Jovens meninos e meninas tiveram a oportunidade de se inscrever e o grupo conseguiu coletar mais de cem camisetas doadas.
  • Bazar Solidário: Um bazar local foi iniciado onde os membros da comunidade podem doar itens usados como roupas e brinquedos. Os itens são entregues aos que precisam.
  • Canais de Emprego: Este projeto conecta os empregadores locais com os trabalhadores que precisam de emprego. O grupo recolhe currículos de moradores e os distribui para empresas locais que se inscrevem para o projeto.
  • Consultas: O grupo já recebeu vários eventos onde os moradores podem se inscrever para consultas no local com profissionais médicos e jurídicos.
  • Eventos: O grupo organizou uma noite de cinema em toda a comunidade e distribuiu 700 cestas básicas e 1.000 brinquedos para o Natal.
  • Aulas Gratuitas: Além do balé, o grupo agora organiza aulas de hip hop, capoeira e três aulas diferentes de autodefesa, todas gratuitas e conduzidas por professores voluntários.

Reflexões

As vitórias e melhorias alcançadas pela Comissão atestam o poder de mobilização e o uso estratégico de recursos escassos para beneficiar a comunidade como um todo, especialmente em face da crescente pressão do governo. Todo o seu trabalho é possível graças a doações e voluntários que não são financeiramente compensados. Contudo, estes sucessos são também um testemunho da força dos esforços de resistência liderados pela Comissão em 2017. Quando perguntada sobre como a Comissão conseguiu obter voluntários, donativos e recursos, Andreia respondeu: “É simples: é acesso à informação. As pessoas da comunidade não têm acesso à informação… Quando apareceu a Comissão, a Comissão foi na Defensoria Pública, na Câmara de Vereadores, na Vila Autódromo (para aprender com seus esforços de resistência). A Comissão buscou informações que esses moradores não tinham. A partir desse momento, a comunidade criou uma confiança muito grande na gente. E ao longo desse caminho a gente também aprendeu muito junto com a comunidade, e uma das coisas que a gente mais aprendeu foi em relação a união da comunidade. Tudo que a gente pensa em fazer, a gente pensa em todos juntos. A gente viu a força que a gente tem juntos.”

O trabalho da Comissão de Moradores de Rio das Pedras exemplifica o poder da organização comunitária e o impacto que os moradores podem ter quando se ajudam mutuamente na ausência de apoio do governo—assim como o poder da informação. Em 2017, eles procuraram a verdade por trás do projeto de verticalização planejado por Crivella. O que foi apresentado como um projeto de melhoria multimilionária para a comunidade provavelmente resultaria na remoção de muitos moradores—mas não foi adiante, pois os moradores se mobilizaram e descobriram essa informação. Posteriormente, a Comissão organizou caravanas de moradores para ocupar as audiências da prefeitura sobre o projeto, em um esforço para educar o público. Agora é bastante óbvio que a informação estava sendo propositalmente retida ou mal interpretada, na esperança de aprovar rapidamente um projeto que teria causado danos substanciais a milhares de moradores do Rio das Pedras. “O poder público quer cada vez mais pessoas ignorantes, que não possam lutar pelo seu direito”, afirmou Lorena.

Isso não ficou perdido em Andreia e Lorena. De fato, elas reconhecem que, embora seus projetos ajudem imensamente aqueles que precisam urgentemente, a comunidade realmente precisa de desenvolvimento e investimento do governo, especificamente nas áreas de saúde e educação. A própria mãe de Andreia, que tem uma condição de saúde grave, está em uma lista de espera de emergência para consultar um médico há mais de um ano, para depois fazer uma operação ou receber uma receita médica. Ela também é incapaz de viajar para fora da comunidade. Andreia refletiu sobre a situação dos moradores em circunstâncias semelhantes: “Você não consegue ser atendida no hospital. Você não consegue direito à educação. As coisas só vão mudar quando as pessoas tiverem acesso à educação, quando as pessoas tiverem oportunidade. E saúde é prioridade, ninguém faz nada sem saúde. Qualquer governante tem que partir de dois princípios: saúde e educação. São duas coisas que eu não vejo ao longo dos meus 36 anos, nunca vieram fazer. E nunca vi nada mudar porque as coisas só vão mudar, quando isso mudar”.

Apesar das ameaças renovadas, a Comissão já está trabalhando duro na promoção de seus projetos em 2019. Eles planejam manter um olhar atento sobre os planos do governo para a comunidade e estão prontos a qualquer momento para voltar à ação. Este ano, eles esperam adicionar mais projetos sociais a serem oferecidos.