No dia 14 de março fará um ano desde o assassinato da ex-vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em um crime político. Estamos a véspera de 365 dias de uma investigação sigilosa e pouco efetiva.
Eu poderia pautar nesse texto a tessitura dos desdobramentos do caso, do trajeto à arma utilizada, uma submetralhadora HK MP5, utilizada normalmente por forças de elite da polícia do Rio, cujo a munição usada nos disparos é originária de um lote adquirido pela Polícia Federal de Brasília. Mas não! Quero falar sobre como os espaços de poder, principalmente o ambiente político, não conseguem assimilar e lidar com os corpos pretos, com as demandas que lhes atravessam, falando em primeira pessoa. Sobretudo se este for um corpo feminino e periférico.
A dinâmica da política brasileira, com origem no período colonial, é composta majoritariamente por homens brancos interessados em utilizar o patrimônio público como privado, aumentando exponencialmente suas riquezas e usufruindo de privilégios em detrimento da precarização da vida das camadas populares.
Existem salvas exceções, é claro! Marielle, vereadora eleita com 46.000 votos na cidade do Rio de Janeiro, mulher negra, mãe, socióloga, cria do Complexo de Favelas da Maré, foi uma delas. Sua sentença veio justamente por ser ela uma mulher periférica, conhecedora das demandas das classes populares, empenhada em trabalhar por elas dentro de espaços políticos que historicamente falam por nós, mas não suportam nos ouvir falar.
Marielle, sem dúvidas, foi fundamental na contribuição da redução de uma percepção equivocada e de senso comum que aponta os direitos humanos como uma ferramenta para beneficiar bandidos. Se um eixo geográfico da cidade existem corpos lidos como dignos em direitos; em outro existem corpos cuja a sua representação estética já é o suficiente para os tornar criminosos em potencial. Era no direito à humanização desses corpos que consistia a luta da vereadora. Na democratização de um estado de direito para o povo favelado que estava a sua maior causa.
No país da diversidade celebrada e vendida internacionalmente, através de uma perspectiva folclórica, existem limites simbólicos postos subjetivamente sobre quais são os lugares em que corpos pretos podem estar inseridos. Quantas vezes, eu enquanto mulher negra e de favela, ouvi de amigos e familiares que eu era alguém que me posiciona demais, estudava demais, sabia demais, e que deveria mesmo focar tempo e energia para passar num concurso público para trabalhar em algum cargo administrativo.
O silenciamento e apagamento da existência intelectual preta não é acaso, é projeto. Não estudamos as outras Marielles no período escolar, e se não fosse o samba para escancarar, a nível internacional, as histórias propositalmente ocultadas pela elite desse país, estaríamos fadados a morrer fisicamente, intelectualmente, e simbolicamente.
Obrigada Estação Primeira de Mangueira pelo carnaval deste ano!
Nesse mês em que é celebrado o Dia Internacional da Mulher, e quando chegamos a 365 dias sem respostas sobre o assassinato de Marielle e Anderson, se faz importante saudar as mulheres pretas que seguem resistindo diariamente dentro das câmaras; que Taliria Petrone, Renata Souza, Monica Francisco, Benedita da Silva e tantas outras, possam ter força e lucidez para continuarem a ser porta-voz de tantas de nós dentro destes espaços. Ter hoje mulheres negras em espaços de tomadas de decisões políticas, ainda que em percentual ínfimo, é de extrema relevância.
A todas as mulheres eu desejo que não precisemos morrer para germinar! Que essa não seja a única via para termos nossas trajetórias, feitos e falas legitimadas; que tenhamos o reconhecimento justo, na avenida ou na vida, enquanto estivermos vivas e que não nos falte persistência e lucidez para seguir adentrando e ressignificando os espaços que nos foram negados.
Dedico este texto a memória de Marielle Franco, tendo a certeza de que seu nome jamais será apagado da história. E a minha tia Diva, que em meados de 1998 foi assassinada, pelo seu então companheiro, que vive até hoje em liberdade legitimado por um estado ineficaz e conivente em relação às mortes de mulheres negras.
Mayara Ximenes, moradora do Morro do Engenho da Rainha, é estudante de Jornalismo, atua na área de comunicação há cerca de cinco anos, e é idealizadora e produtora de conteúdo do Boca de Favela, um projeto de comunicação que apresenta narrativas plurais, narradas em primeira pessoa, sobre os moradores das favelas do Rio de Janeiro.