Como legisladores deveriam ver o papel das favelas no desenvolvimento urbano? Que políticas eles podem decretar a fim de melhorá-las?
Essas são as questões centrais da pesquisa de Alexander Monge-Naranjo, Pedro Cavalcanti Ferreira e Luciene Torres de Mello Pereira em seu artigo, Of Cities and Slums (Sobre Cidades e Favelas) para o Human Capital and Economic Opportunity Global Working Group (Grupo de Trabalho Global sobre Capital Humano e Oportunidade Econômica), localizado na Universidade de Chicago. No artigo, os pesquisadores do Federal Reserve Bank of St. Louis e da Washington University in St. Louis, bem como da Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getúlio Vargas (EPGE-FGV), no Rio de Janeiro, fornecem uma análise do desenvolvimento de algumas das maiores cidades do Brasil como uma maneira de compreender os fatores subjacentes à formação das favelas e seu papel no processo de urbanização do país.
Barreiras ou degraus?
Os pesquisadores observam a ascensão das favelas no Brasil dentro do contexto dos maiores processos históricos de urbanização. Eles consideram transformações estruturais e urbanização como elementos fundamentais para o desenvolvimento de um país. De Londres a Nova York, passando por Tóquio, as histórias das maiores metrópoles do mundo incluem grandes, proeminentes “aglomerados” em variados pontos através do tempo. Contudo, no atual ambiente político e midiático, assentamentos informais são altamente estigmatizados e com frequência associados com ilegalidade, drogas e pobreza. Monge-Naranjo et al. discutem a importância de se avaliar a precisão de duas concepções díspares sobre o papel de assentamentos informais: como sendo cruciais, ou prejudiciais, ao crescimento de uma cidade.
Pesquisas anteriores oferecem perspectivas acerca das motivações por trás da migração populacional para as cidades e assentamentos informais. Duarte e Restuccia (2010) descobriram que, na medida em que um país cresce e se industrializa, a maior parte de seu crescimento em produtividade vem de um deslocamento dos recursos humanos do trabalho agrícola para o da manufatura e da mão-de-obra qualificada. Essa mudança ocorre tipicamente durante períodos de migração nacional das áreas rurais para as áreas urbanas. Lall et al. (2009) descobriram que esses movimentos são tipicamente conduzidos por diferenças salariais entre as áreas rurais e urbanas. O Brasil experienciou essa migração durante o século vinte. No entanto, como em muitos países latino-americanos, a maioria dos migrantes foram para a mão-de-obra não qualificada e para setores de serviços, resultando em uma diminuição nos ganhos de produtividade. Os pesquisadores extrapolam esses estudos anteriores a fim de compreender as dinâmicas exatas da migração interna e da formação de assentamentos informais.
Esses pesquisadores objetivam criar um modelo funcional para a compreensão dos processos que contribuem para a migração urbana e os efeitos educacionais, demográficos e de desenvolvimento que podem ser acarretados por essas mudanças. O modelo é intergeracional, facilitando uma compreensão dos impactos das decisões de uma geração específica sobre seus filhos. Depois de construir efetivamente os modelos dos processos de migração rural para o meio urbano no Brasil, o sistema é então usado para comparar políticas contrafactuais. Esses modelos podem ser usados para avaliar as políticas mais benéficas que uma sociedade pode promulgar para melhorar a realização da educação nacional e a produtividade.
O estudo contribui para uma compreensão aprofundada da complexa significância de assentamentos informais e favelas na transformação estrutural de um país. O modelo constata que a ascensão de assentamentos informais é conduzida, principalmente, pelos custos de habitação urbana, também destacando a necessidade de se entender os assentamentos informais em seus contextos nacionais, a fim de avaliar se são um fenômeno positivo ou negativo. A pesquisa mostra que, em relação à cidade, assentamentos informais agem como barreiras para a acumulação de capital humano. Crianças em favelas apresentam, consistentemente, realizações educacionais mais baixas em comparação às crianças vivendo em bairros formais. Quando comparadas às populações rurais, contudo, as favelas na verdade estão muito adiante em termos de níveis educacionais e proventos geracionais. Assim, os pesquisadores descobriram que assentamentos informais podem ter ambos os papéis positivo e negativo para o desenvolvimento de uma sociedade: eles permitem que famílias rurais de baixa qualificação tenham maior acesso à educação e ao trabalho ao mesmo tempo em que possivelmente são um entrave para as conquistas educacionais dos moradores em comparação aos moradores na cidade formal.
Perfil do Brasil
O artigo usa amplos registros para rastrear as mudanças do Brasil em um período de 60 anos. Os pesquisadores usam principalmente dados do censo nacional, que vem sendo conduzido a cada dez anos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde os anos 1950. Eles usam o critério do censo para “aglomerados subnormais”, definido como “cada conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades” com vias de circulação e lotes irregulares ou falta de serviços públicos essenciais, para traçar as populações da favela ao longo do tempo. O Censo Favelas, conduzido pelo governo do Estado do Rio de Janeiro em 2008 e 2009 como parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), oferece um olhar com ainda mais profundidade das estatísticas da vida nas favelas. O censo reúne dados de agregados familiares no Complexo do Alemão, no Complexo de Manguinhos e na Rocinha. Dados sobre as transições intergeracionais de níveis educacionais foram tirados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE. Por fim, dados sobre trabalho vêm do Centro de Crescimento e Desenvolvimento de Groningen.
O processo de transformação estrutural no Brasil está em grande parte de acordo com as tendências gerais de urbanização, ao mesmo tempo em que lança luz sobre o impacto econômico das favelas. O Brasil se urbanizou rapidamente: de 1950 a 2010, o emprego fora da agricultura aumentou de 36% da população para 84% e 40 milhões de pessoas se mudaram para as maiores cidades da nação. Economicamente, o país exibiu um padrão de crescimento de produtividade do trabalho agrícola e não agrícola ao longo dos primeiros 30 anos de dados coletados. Como há maior produtividade vindo do trabalho não agrícola em relação à agricultura, a produtividade crescente, combinada com a rápida urbanização, fortaleceu consideravelmente a economia do país. Essas tendências econômicas mudaram, contudo, depois de 1980. De 1980 a 2010, a produtividade do trabalho fora da agricultura, no país, na verdade declinou de modo consistente. Os pesquisadores identificam este fato como influenciador do crescimento das favelas. Conforme a urbanização continuou, um número crescente de trabalhadores de baixa qualificação e remuneração migrou para trabalhar em cidades, atuando em trabalhos menos produtivos economicamente e buscando moradia em favelas.
Relatórios demográficos sugerem que as favelas cresceram no período que se seguiu à 2ª Guerra Mundial e isso tem persistido ao longo do tempo. Com base nos dados sobre “aglomerados subnormais”, a porção da população do Rio de Janeiro vivendo em favelas aumentou de 7% em 1950 para 22% em 2010. Em São Paulo, esse crescimento aconteceu ainda mais rapidamente, com a população nas favelas mais que dobrando, de 9,2% em 1991 para 23,2% em 2010. As pesquisas também sugerem que, enquanto favelas ainda atraem muitos imigrantes, a maioria dos moradores têm antepassados que viveram nelas por múltiplas gerações.
Impacto da Vida na Favela Sobre Moradores
Os dados indicam claras diferenças nos níveis educacionais entre populações de áreas rurais, favelas e áreas urbanas formais. O Censo do IBGE mostra que 80% dos lares em áreas rurais têm pouca educação—apenas quatro anos ou menos. Populações urbanas demonstram níveis maiores de realização educacional, mas há uma grande disparidade entre os lares de favelas e regiões urbanas formais. Entre moradores de favelas, 70% da população tem entre um e oito anos de escolaridade, ao passo que a mesma porcentagem da população de áreas urbanas formais tem pelo menos cinco anos de escolaridade, e uma porcentagem significante dos moradores tem 12 anos ou mais de estudo. Isso pode se dar pelo fato de que muitas crianças que vivem em favelas não têm acesso a escolas de boa qualidade, em áreas mais bem dotadas, e em vez disso, frequentam escolas públicas dentro ou próximas a favelas, uma vez que a matrícula é determinada segundo o local de residência.
Os pesquisadores descobriram que a realização educacional das crianças estava altamente correlacionada à de seus pais. Para as crianças cujos pais tinham zero anos de escolaridade, mais da metade acabava também analfabeta. Crianças cujos pais tinham maiores níveis de educação eram mais propensas a obter pelo menos a mesma educação. Isso se mostrou mais provável para crianças urbanas do que para crianças rurais, e ainda mais provável para crianças em áreas formais do que para crianças em favelas, por conseguinte exacerbando a desigualdade dos níveis de realização educacional. Sendo assim, enquanto se mudar para favelas oferece maiores oportunidades educacionais às famílias rurais, crianças vivendo em favelas não têm na média as mesmas oportunidades educacionais ou as mesmas conquistas educacionais do que crianças na cidade formal.
Enquanto residir em uma favela pode estatisticamente servir como um impedimento para as realizações educacionais das famílias, o estudo concluiu que favelas de fato oferecem benefícios potenciais quanto a oportunidades de emprego. O Censo das Favelas mostrou que a maioria dos moradores pesquisados trabalham fora das favelas. Moradores da Rocinha apresentaram os níveis mais altos de empregos fora da favela, provavelmente devido à proximidade da comunidade com bairros abastados. Pode se inferir que muitos migrantes que vão para favelas se mudam para ter melhores acessos ao mercado de trabalho e opções de emprego. Isso é confirmado por um estudo sobre as rendas relativas de trabalhadores urbanos e rurais. Em média, trabalhadores urbanos recebem de 30-40% a mais que trabalhadores rurais com educação similar. Essa diferença de renda é particularmente notável entre trabalhadores com baixo nível de educação, uma vez que no Rio de Janeiro um trabalhador sem instrução pode ganhar mais de 200% caso ele se mude para a cidade ou 60% a mais caso ele more em uma favela, quando comparado às rendas rurais. Enquanto favelas podem oferecer oportunidades educacionais insuficientes para as crianças, elas de fato oferecem o potencial para melhores oportunidades de emprego.
A consideração final do modelo é relacionada aos custos de moradia para migrantes. Enquanto a migração urbana aumenta o acesso a trabalhos com salários significativamente maiores e educação um pouco melhor, esse benefício é frequentemente contrabalanceado por custos mais altos de moradia. Os dados do censo mostram que, em média, o aluguel custará pelo menos duas vezes mais em cidades do que aquele relativo a imóveis de tamanhos similares na área rural. A diferença entre o custo de vida na cidade formal e nas favelas é também notável, com casas na cidade formal custando 50-100% mais do que as casas nas favelas. As melhoras relativas em oportunidades de emprego para moradores da cidade formal e da favela podem, então, ser contrabalanceadas pelos altos aluguéis que são forçados a pagar. As famílias podem ser obrigadas a decidir entre manter suas crianças na escola ou tê-las adentrando como força de trabalho em idades mais baixas para compensar o fardo financeiro.
Modelagem de Políticas
Os pesquisadores criaram um modelo funcional calibrado de urbanização brasileira que podem usar para testar uma série de contrafactuais de políticas. Eles criaram um modelo de dois períodos, replicando uma processo similar de transformação estrutural em períodos de 30 anos, de 1950 a 1980 e de 1980 a 2010. A simulação é capaz de reproduzir com bastante precisão as mudanças na demografia da população do Brasil, na produtividade agrícola e no nível educacional. Esse modelo, então, permite a avaliação de diversos contrafactuais para se compreender políticas efetivas para o desenvolvimento urbano.
Em primeiro lugar, os pesquisadores avaliam o impacto de políticas visando erradicar assentamentos informais. Muitos países responderam ao desenvolvimento de assentamentos informais por meio da prisão de moradores e da destruição de suas casas. O modelo testa diversas situações possíveis, envolvendo repressões com variados graus de severidade, de desalojamentos de moradores de assentamentos informais parciais a totais. Há muitos efeitos notáveis dessas políticas. Primeiramente, as cidades se tornariam muito menores sem as favelas para ajudarem a facilitar o movimento das zonas rurais para moradias na cidade. Contudo, isso se seguiria de favelas ainda maiores, na medida em que o preço relativo do trabalho empurraria os preços da cidade ainda mais para o alto, fazendo a moradia na cidade ser menos acessível. Essas políticas funcionam para criar uma forte divisão sócio-econômica entre a habitação rural e a urbana e deslocariam o país de volta para uma sociedade predominantemente agrícola.
Em seguida, o estudo demonstra uma correlação direta entre os preços da moradia na cidade e o tamanho de assentamentos informais. Os pesquisadores analisaram diversas condições com custos de habitação tanto elevados quanto rebaixados nas cidades. Quando os preços de moradia eram mais altos, as cidades eram menores e os assentamentos informais eram mais proeminentes. Os níveis médios de educação aumentavam tanto em áreas formais como informais da cidade, apesar de disparidades persistentes: conforme pessoas (à parte de famílias altamente qualificadas) são relegadas a assentamentos informais, a extremidade inferior da distribuição da cidade formal se torna a extremidade superior da distribuição do assentamento informal. Por outro lado, quando os custos de moradia decrescem, a presença de assentamentos informais é quase insignificante e a cidade formal cresce de modo significativo. O nível de qualificação médio em áreas formais decresceria, mas representaria uma proporção muito maior da população nacional. Os custos de moradia, portanto, podem ter um grande efeito na formação de assentamentos informais e nos níveis gerais de realização educacional.
Finalmente, mas de forma crítica, políticas de integração escolar são vistas como contribuidoras em uma redução gradual de assentamentos informais ao longo do tempo. Conforme apontado anteriormente, as áreas urbanas no Brasil são caracterizadas por uma divisão acentuada entre favelas e bairros formais em termos de acesso à educação, o que consequentemente impacta nos respectivos níveis de realização educacional. Os pesquisadores avaliaram as implicações de uma crescente integração de moradores de assentamentos informais em escolas localizadas em bairros formais. O efeito imediato dessas políticas seria um maior aumento no tamanho de assentamentos informais relativos à população em áreas formais, uma vez que as famílias seriam capazes de acessar educação de boa qualidade através de assentamentos informais, sem a necessidade de se pagar o ônus de morar na cidade formal. Contudo, quando monitorada por diversos períodos, essa tendência se inverte. A cidade formal cresce ainda mais enquanto assentamentos informais encolhem, conforme famílias adquirem qualificação para ganhar o suficiente para viver naquela área. Até mesmo no caso de completa igualdade em qualidade escolar entre áreas formais e informais, indivíduos ainda eventualmente migrariam para bairros formais a fim de evitar os custos utilitários de assentamentos informais. Apesar dos efeitos iniciais sugerirem o contrário, segundo Monge-Naranjo et al., uma melhor integração de sistemas educacionais localizados dentro e fora de assentamentos informais permitem que essas comunidades sirvam como um caminho inicial para a formação mais qualificada e para maiores populações em bairros formais das cidades.
Conclusão
Através da compreensão do desenvolvimento de favelas no Brasil é possível avaliar fatores para o desenvolvimento de assentamentos informais globalmente e extrapolar as descobertas em direção a políticas efetivas. Monge-Naranjo et al. descobrem que, apesar de não serem perfeitos, assentamentos informais e favelas podem servir como alpondras para que famílias com baixa qualificação transicionem de áreas rurais para cidades. Assentamentos informais tendem a oferecer maior acesso tanto a oportunidades de trabalho como educação do que os que que se encontram disponíveis em áreas rurais. Quando comparados à cidade formal, contudo, é evidente que assentamentos informais ainda não são capazes de promover níveis equivalentes de formação para qualificação e bem-estar econômico. Os pesquisadores sugerem diversas opções de políticas que poderiam facilitar um processo mais forte de transformação estrutural. Reduzir os preço de moradias em cidades, aumentar a qualidade dos sistemas de educação em áreas informais e urbanas e acabar com políticas anti-pobres levariam a cidades mais prósperas e a uma população com maiores níveis de educação.