Propriedade como Relação Social: Estratégias sem Fins Lucrativos para Moradia

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Leia a matéria original por Steve Dubb em inglês no Non-Profit Quarterly aqui. O RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país que nem sempre são cobertos no Brasil.

A propriedade é algo, normalmente, visto como um conceito bem simples. “Meu, não seu.” Uma criança de dois anos poderia nos dizer isso. A realidade, no entanto, é bem mais complexa, já que os direitos dos proprietários estão longe de serem fixos. Na verdade, o conceito do que significa propriedade é passível de mudança. Por este motivo, atingir uma maior justiça social e econômica não é apenas uma questão de mudar quem possui ativos econômicos, mas também mudar quais direitos estão associados ao fato de possuir ativos. Isso porque propriedade não se é apenas sobre quem é o proprietário legal, mas também nos força a considerar o que é propriedade e o que queremos dizer com o termo “propriedade”. Fundamentalmente, a propriedade não é só sobre possessão isoladamente; na verdade, envolve uma relação social de direitos legais entre pessoas.

A realidade de que a propriedade não é absoluta é particularmente óbvia se refletirmos sobre a questão da propriedade de terra. Deixando de lado a retórica, um dono de uma casa nos EUA dificilmente é o rei ou a rainha de seu “castelo”. Você quer derrubar uma casa familiar e construir um prédio de apartamentos no terreno? Ou mesmo converter sua cozinha privada em um restaurante que opera comercialmente? Se você tentar qualquer uma dessas coisas em um típico bairro residencial norte-americano, você irá perceber rapidamente que seu direito à “propriedade privada” não é tão abrangente quanto pensou. Sem falar que provavelmente irá deixar vários vizinhos raivosos.

Nos EUA, se o seu lar é em um bairro administrado por uma associação de moradores, você pode encontrar limites até sobre qual cor pode pintar sua casa ou sobre como cuidar de seu gramado. Muitas vezes falamos sobre a propriedade como um direito absoluto, mas, novamente, a propriedade é uma relação social—o uso de propriedade “privada” é limitado pela lei e pelo costume.

De fato, refletindo essa percepção, cursos de legislação imobiliária geralmente descrevem propriedade como um “pacote de direitos”, ao invés de uma coisa.1 E esse “pacote de direitos” de propriedade não é fixo, mas varia de acordo com o que você e seus vizinhos acordam acerca de “direitos privados” em oposição a outros direitos que podem ser atribuídos ao governo local ou à amigável associação de proprietários.

Tipicamente, esse pacote de direitos é alterado para se ajustar especificamente às diretrizes de zoneamento ou do bairro. Mas o pacote de direitos também pode ser alterado de outras maneiras—por exemplo, uma comunidade pode optar por alterar direitos de propriedade com o objetivo de promover moradia a preços acessíveis de uma forma mais ampla.

Um Termo Territorial Coletivo (TTC) é uma estratégia que permite alterações nesse pacote de direitos para esse propósito. Com um TTC, o proprietário possui a casa, mas uma organização possui a terra sob a casa; um acordo ou contrato delimita os direitos de cada parte. Assim como acontece com casas próprias, o proprietário retém o direito à privacidade, ao uso exclusivo de sua casa, e a legar a propriedade a herdeiros. Mas a organização também possui direitos. O que mais se destaca é que a organização pode estabelecer uma fórmula de revenda para preservar a acessibilidade econômica, estabelecer limites sobre o capital para melhorias (de novo, para preservar a acessibilidade—o que é difícil de manter se for permitido a demolição e a substituição de casas modestas por super-mansões), também pode insistir na realização de consertos (para preservar o valor a longo prazo da moradia para proprietários futuros), e impor limites sobre o refinanciamento. Esse último direito da organização sem fins lucrativos, em questão, provou-se crucial na última recessão econômica dos Estados Unidos, protegendo milhares de proprietários de assumir empréstimos predatórios e é um dos motivos pelo qual proprietários no modelo TTC possuíam taxas de execução de hipoteca (isto é, a reivindicação do bem hipotecado devido ao não pagamento do empréstimo) dramaticamente menores do que proprietários tradicionais durante a Grande Recessão.

Land banking (o processo de comprar  e estocar terrenos, que estão em locais onde não há desenvolvimento, para quando for oportuno subdividi-los em títulos menores e revendê-los) muda a distribuição desses direitos de maneira diferente, dando ao governo local o direito de adquirir terrenos vazios sem colocar o terreno em leilão no mercado quando um proprietário não paga seus impostos. O propósito desta prática é menos relacionado à moradia e mais ao controle de áreas vazias. A propriedade dos terrenos adquiridos sob essa prática é tipicamente pública—normalmente, ao nível dos condados (nos EUA). O land banking adquire a propriedade vaga, se engaja no planejamento público, investe em melhorias que a comunidade precisa, e então revende o terreno a proprietários privados.

No entanto outra abordagem para a propriedade comunitária de moradia é a cooperativa habitacional. Uma cooperativa habitacional é, como seu nome sugere, um negócio no qual moradores coletivamente possuem a propriedade da moradia através de uma corporação habitacional governada pelo princípio cooperativo de “um membro, uma parte, um voto”. Cooperativas habitacionais são uma forma de moradia muito estabelecida—a cidade de Nova York é conhecida como um centro de cooperativas habitacionais porque, dentre outros, foi o jeito mais fácil de permitir que moradores possuíssem moradias coletivamente na época em que o conceito legal de um condomínio (no qual cada família possui seu próprio apartamento ou unidade residencial separadamente) ainda não havia sido desenvolvido. Algumas cooperativas habitacionais em Nova York podem ser muito inacessíveis; em 2016, um apartamento cooperativo de 20 quartos na Quinta Avenida estava avaliado em US$120 milhões.2 Mas enquanto cooperativas possuídas por celebridades são mais conhecidas, a cooperativa habitacional normalmente é um instrumento para pessoas com recursos limitados conseguirem possuir uma propriedade coletivamente. A Associação Nacional de Cooperativas Habitacionais afirma que cerca de 1% de todas as unidades residenciais dos Estados Unidos—cerca de 1,2 milhões—são cooperativas habitacionais.3

Recentemente, novas formas de controle comunitário da terra foram desenvolvidas. Uma dessas é o modelo de cooperativa Resident Owned Community (ROC—Comunidade de Propriedade dos Moradores). É claro que, tecnicamente, todas as cooperativas habitacionais são de propriedade dos moradores. Mas o termo tem sido utilizado para se referir às cooperativas que envolvem a propriedade comunitária do terreno em comunidades de moradia pré-fabricadas (também conhecidas como “parques de casas móveis” ou, menos positivamente, como “estacionamento de trailers”). A propriedade comunitária da terra nestas comunidades é importante pois moradias pré-fabricadas são a principal fonte de moradia acessível a taxa de mercado nos Estados Unidos.

Mais de 17 milhões de norte-americanos moram em moradias pré-fabricadas.4 Os moradores são em sua maioria de baixa renda—a renda média dos moradores deste tipo de residência é metade da média nacional.5 Ao conquistar a propriedade da terra na forma de cooperativa é permitido a esses moradores estabelecer a posse legal de terra em vez de continuar sob risco constante de terem a terra sobre a qual estão vendida. A propriedade comunitária contribui para o aumento da riqueza do morador porque a segurança de posse legal permite que ele acesse melhores financiamentos (por exemplo, pagando menores juros em seus empréstimos) e desfrute de maiores valores de revenda. Os moradores conseguem melhor financiamento, é claro, porque a propriedade de terra comunitária significa que o comprador vai se tornar um membro da cooperativa e portanto também vai gozar de segurança de propriedade; isso faz com que a propriedade se torne mais valorizada e torna empréstimos bancários aos moradores menos arriscados, possibilitando juros mais baixos.

A maior organização apoiando o desenvolvimento destas propriedades comunitárias dos moradores é a ROC USA, que auxiliou 227 parques a se tornarem propriedades comunitárias dos moradores.6 A ROC USA começou como um programa do Fundo de Empréstimos Comunitário de New Hampshire. Em meados dos anos 2000, o sucesso do Fundo atraiu atenção nacional. Com o apoio da Fundação Ford, da Prosperity Now e outros, a ROC USA foi criada e o esforço para criar comunidades de casas pré-fabricadas ganhou novo impulso. Até 2018, 14.500 casas pré-fabricadas em 15 estados eram parte da ROC USA (mais do dobro da quantidade em 2008).7

Por último, mas não menos importante, o Termo Territorial Coletivo, conforme mencionado acima, permite a conquista de uma moradia permanentemente acessível ao promover mudanças naquele “pacote de direitos” que gostamos de chamar de propriedade. Os TTCs possibilitam que organizações comunitárias sem fins lucrativos tirem a terra do mercado e a coloquem em um fundo, assim preservando sua acessibilidade. Tipicamente, a maior parte dos ganhos de capital ficam com o próprio fundo e uma pequena parte com os moradores, o que possibilita que o fundo ofereça moradia para um futuro proprietário de baixa e moderada renda a um preço acessível.

Mais de 15.000 famílias possuem casas pelo formato do TTC nos Estados Unidos. Esses proprietários possuem a maior parte dos direitos que associamos com a propriedade de moradia, mas não todos. Por exemplo, lá, em troca da compra da casa por um preço abaixo do mercado, o comprador se compromete a restrições sobre o refinanciamento e sobre o preço pelo qual ele pode vender a casa. Os mecanismos podem ser registrados no acordo de venda ou podem ser incorporados no arrendamento do terreno. Em todo caso, estas restrições ajudam a preservar a acessibilidade para futuros compradores—e possui o benefício adicional de prevenir os compradores de imóveis de tomarem empréstimos excessivos e se tornarem muito endividados para adquirirem suas casas. Por exemplo, durante a Grande Recessão, enquanto graves inadimplências entre a população geral variaram entre 6,3% em 2008 e 9,67% em 2009, a taxa de inadimplência entre tomadores de empréstimo que faziam parte de TTCs variou de 1,98% em 2008 para 1,3% em 2010.8

Não é exagero pontuar a significância desses baixos números de inadimplência dentre os participantes de TTCs. Dado que ocorreram perdas de riqueza de mais de um trilhão de dólares em comunidades negras durante a Grande Recessão, a lição é de que se os TTCs fossem mais difundidos, dezenas, quiçá centenas, de bilhões de dólares talvez tivessem sido preservados nestas comunidades. No entanto, o crescimento dos TTCs continua mais lento do que seus enormes impactos positivos.

Felizmente, casos bem sucedidos do desenvolvimento de TTCs estão começando a se proliferar. Uma vitória com o potencial de mudar o jogo para os defensores do TTC ocorreu em 2017 em Baltimore, nos Estados Unidos, onde a campanha de base comunitária para 2020 defendeu investimentos em TTCs. A Campanha 20/20 almejou obter US$20 milhões em financiamento para moradia acessível, tendo TTCs como elemento central, e US$20 milhões para destruir propriedades inadequadas. Em maio de 2017, a prefeita de Baltimore, Catherine Pugh, publicamente declarou seu apoio à proposta do grupo, que espera-se que viabilize a construção de 400 moradias sustentáveis e empregue 550 moradores.9 A Non-Profit Quarterly destacou ao longo do ano passado o crescimento dos TTCs em outros lugares—incluindo a região da Baía de São Francisco, Nova Iorque, Washington DC, Filadélfia e Flórida—para mencionar alguns exemplos proeminentes.

Os TTCs, conforme dito acima, tipicamente servem como estratégia para desenvolver moradia acessível, mas o propósito da propriedade comunitária do terreno pode ser concebido de maneira mais ampla para incluir a propriedade comunitária de terrenos comerciais, espaços verdes e instalações comunitárias. Alguns anos atrás, entrevistei Susan Witt, que trabalhou por anos com o pioneiro em TTCs, Bob Swann, que dirige o Schumacher Center for New Economics, em Massachusetts. Susan afirma que Bob ajudou a desenvolver o modelo de TTCs para evitar a mercantilização a terra, já que a terra “não é conquistada e sim dada pela natureza”. Bob, diz Susan, “viu o movimento do TTC como um movimento de reforma agrária”. Susan acrescenta que Bob imaginou que o TTC poderia deter cerca de um décimo da terra de uma comunidade para garantir que o desenvolvimento ocorreria de acordo com os valores da comunidade. “Desenvolvemos um sistema de duas camadas”, diz Susan, “não apenas terra para moradia, mas terras para fazendas, terras para locais de fabricação e terras para ruas principais para garantir que os locais de varejo sejam acessíveis para empresas locais… No final, o resultado seria uma riqueza diversificada e distribuída”.10

Steve Dubb, “Ownership as Social Relation: Nonprofit Strategies to Build Community Wealth through Land.” This article was originally published by NPQ online on December 11, 2018 (https://nonprofitquarterly.org/2018/12/11/ownership-as-social-relation-nonprofitstrategies-to-build-community-wealth-through-land/). Translated by Júlia Hara Medeiros.  Used with permission.

[1] Veja, por exemplo, este artigo do ex-juiz da Suprema Corte de Vermont, Denise Johnson: Denise R. Johnson, “Reflections on the Bundle of Rights,” Vermont Law Review, volume 32 (2014), pp. 247-272, acessado em 15 de março de 2017.
[2] Amy Plitt, “$120M Co-op at 834 Fifth Avenue Is Now NYC’s Most Expensive Listing: Say hello to the new most expensive home for sale in New York City,” @CurbedNY, 26 de abril de 2016, acessado em 15 de março de 2017.
[3] Associação Nacional de Cooperativas Habitacionais, Housing Cooperatives in the USA, Washington, DC: NAHC, March 2012, acessado em 30 de novembro de 2018.
[4] Departamento do Censo dos Estados Unidos, “Total Population in Occupied Housing Units by Tenure by Units in Structure,” Washington, DC: US Dept. of Commerce, based on 2012-2016 American Community Survey data, 2018, acessado em 30 de novembro de 2018.
[5] Corporação para Desenvolvimento Empresarial, “Facts about Manufactured Housing,” About Manufactured Housing,” Washington DC, 2017, acessado em 27 de março de 2017.
[6] ROC USA, “Strategic Plan 2015–2018” ROC USA: Concord, NH, 2015: 4, acessado em 7 de janeiro de 2016. Atualizado em dezembro de 2018 dados fornecidos por ROC-USA.
[7] ROC USA, “10,000 Strong and Growing,” 10,000 Strong and Growing, Concord, NH: ROC USA, 2016, acessado em 7 de janeiro de 2016. Atualizado em 8 de dezembro de 2018 dados fornecidos por ROC-USA.
[8] Jeff Bounds, “Community Land Trust Lending Update, Part 2,” Fannie Mae Business News, 28 de janeiro de 2016, acessado em 15 de março de 2017.
[9] Luke Broadwater, “Pugh backs calls for multimillion investment in affordable housing in Baltimore,” Baltimore Sun, 13 de maio de 2017, acessado em 15 de maio de 2017.
[10] Susan Witt, entrevista por telefone por Steve Dubb e Emily Sladek, 3 de novembro de 2016.