As Lentes do Alemão

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Manoel Rodrigues Moura, 58, fotógrafo e morador do Complexo do Alemão

“Por que labutar no campo, na cidade?
A máquina o fará por nós.
Por que pensar, imaginar?
A máquina o fará por nós.
Por que fazer um poema?
A máquina o fará por nós.
Por que subir a escada de Jacó?
A máquina o fará por nós.

Ó máquina, orai por nós.”

Ladainha, por Cassiano Ricardo

Cheio de entonação, Seu Rodrigues declama alguns versos do poema acima. Não são muitos os fotógrafos que costumam fazer uma homenagem à máquina durante uma entrevista. Mas Manoel Rodrigues Moura, 58 anos, fotógrafo e morador do Complexo do Alemão, tem um motivo especial para isto. Há sete anos, ele perdeu parte da visão por causa de uma possível diabetes. “Hoje é a câmera que enxerga por mim. Eu ainda tenho a capacidade de mostrar à ela o que fazer e ela se encarrega de fazer. Então eu agradeço que, mesmo com essa deficiência de visão, eu ainda esteja entre grandes fotógrafos”, declara.

Na frente da lente, aparece o Alemão, a comunidade que ele escolheu para morar e retratar em suas fotografias. Atrás, habita uma história que começou no interior de Minas Gerais. Seu Rodrigues viveu por lá até os 25 anos, em 1979, quando resolveu vir para o Rio de Janeiro e se hospedar na casa de amigos no Complexo do Alemão. “Comecei vivendo numa extrema pobreza, mas a palavra favela não existia. Meu primeiro emprego foi numa obra, como servente”, lembra.

A fotografia entrou na vida de Seu Rodrigues através do rádio, quando ele ouviu o anúncio de um curso por correspondência e decidiu se inscrever. “Aquilo me abriu um horizonte enorme. Eu aprendi um pouco do macete da fotografia e laboratório. Depois eu tive que ir me adaptando, mas o pontapé inicial foi ali”. E assim foi. Quando Seu Rodrigues saiu do emprego na obra, ele usou o dinheiro da indenização para comprar uma máquina. Em pouco tempo, já estava fotografando primeiras comunhões, festas de 15 anos, batizados e casamentos. A partir daquele momento, passou a viver exclusivamente da fotografia.

O Viva Favela e o olhar jornalístico

O jornalismo entrou na vida deste fotógrafo quando ele entrou no projeto Viva Favela, da ONG Viva Rio. O Viva Favela foi criado em 2001 como um portal de jornalismo na internet cujo conteúdo era produzido por correspondentes comunitários: moradores de favelas e periferias. No mesmo ano, o projeto começou a selecionar fotógrafos de diferentes comunidades cariocas. “Eu peguei uma folhinha de papel, escrevi meu nome, minha identidade e coloquei umas fotos. Quinze dias depois, me ligaram”, conta Seu Rodrigues, sobre como entrou para a ONG.

A experiência no Viva Favela deu uma nova cara à fotografia de Rodrigues Moura. Casamentos e batizados passaram a dividir espaço com o cotidiano da favela, problemas sociais e histórias de moradores. Assim, ele registrou acontecimentos importantes na história do Complexo do Alemão, como a enchente de dezembro de 2001, a ocupação de uma fábrica abandonada em 2004 e a ocupação do exército em 2010.

Imagem da exposição “Morar na favela”, de 2006, foto por Rodrigues Moura

Mas não se retrata uma favela apenas com tragédia e violência. O Complexo do Alemão das lentes de Rodrigues Moura tem esporte, festas, criatividade, trabalhadores, mães, filhos, um universo imenso que a grande mídia nunca conseguiu perceber e divulgar. “Mostrar a comunidade ao mundo é como fazer um buraco na muralha do preconceito para que, mesmo discretamente, a sociedade passe a enxergar”, acredita Seu Rodrigues, que já fotografou trilhas de bicicleta, espetáculo de teatro de rua e até o famoso banho de sol na laje.

O resultado do trabalho nas favelas do Rio de Janeiro, especialmente no Alemão, foi a participação em diversas exposições, como “Por Dentro da Favela”, em 2003; “Rio de Olhos Abertos” e “Eco Favela”, em 2005; e “Moro na Favela”, em 2006. Também em 2006, formou-se pela Escola de Fotógrafos Populares da Maré. Seu Rodrigues tem fotos publicadas nos jornais O Globo, O Dia e Extra, além das revistas Onda Jovem e La Rampa. Dentre todas as publicações, seu maior orgulho é a foto exposta na galeria de arte moderna em Zurique, na Suíça.

Com a palavra, o morador

A história de Manoel Rodrigues Moura muitas vezes se confunde com a do próprio Alemão, complexo de favelas da zona norte do Rio de Janeiro que ele sabe descrever como ninguém. “O Complexo do alemão tem uma situação geográfica privilegiada. Nós estamos inseridos na Serra da Misericórdia. Em alguns mirantes daqui dá para ver o Rio de Janeiro quase completo”, observa.

Hoje, a beleza das comunidades situadas entre os morros da Serra da Misericórdia é contemplada por turistas e cariocas que passeiam de teleférico. Mas nem sempre foi assim. Antes da instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Complexo do Alemão, a favela não era vista com bons olhos pela mídia e pela sociedade. “Há um tempo, se eu chegasse na Central e falasse que eu era morador do Complexo do Alemão, todo mundo ia me ver como bandido. Hoje, se eu falar que sou do Complexo do Alemão, tá cheio de gente querendo saber a história daqui”, explica Seu Rodrigues.

Para o fotógrafo, porém, o Alemão ainda não é o paraíso que o governo e a mídia pintam e os moradores são privados de alguns direitos. “No âmbito de exibição de armas, mudou muito. Mas socialmente, não mudou nada. Não tem um colégio ou faculdade aqui dentro. Pra conseguir transporte, tem que ir lá pra fora. Aqui só tem transporte alternativo. Saneamento básico não tem, dá pra ver vala negra exposta por todos os lados”, conta. Pacificado ou não, o Alemão continua sendo registrado pelas lentes de Seu Rodrigues, que foi muito espontâneo ao deixar o problema de visão no escanteio desta história.

Em 1964, com o poema “Ladainha”, Cassiano Ricardo descreveu as grandes transformações que a tecnologia causou no cotidiano dos homens. Na vida de Manoel Rodrigues Moura, a câmera fotográfica representou boas e profundas mudanças. E a ela Seu Rodrigues dedica um discurso de gratidão: “Se não fosse a máquina, eu jamais entraria nos lugares que eu entro, jamais seria convidado a participar de alguma coisa que me convidam. Se não fosse a câmera eu não seria conhecido em lugar nenhum. Agradeço a máquina, ela é tudo”.