Esta matéria faz parte da série do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.
O lugar é uma igreja, dessas que são universais, mundiais, internacionais, mas nunca são locais ou municipais. Em determinado momento, um rapaz se levanta, mãos para trás, voz distorcida, anda em direção ao altar. O pastor pergunta: “Quem está aí?” Prontamente o espírito se identifica: “A Pombagira!” E segue, dizendo que está levando o tal jovem incorporado—endemoniado ou possuído, no jargão mais usual—para a “vida da homossexualidade”. Essa cena é tão comum que podemos afirmar já tê-la visto na TV, ao vivo, ou escutado tal diálogo em alguma rádio.
Sabemos que todas as nações, ao longo dos tempos, desenvolveram seu relacionamento com o que julgavam ser sagrado: elementos da natureza como rios para determinados povos africanos, montanhas para alguns povos asiáticos, astros no caso de alguns povos indígenas, o solo sagrado de Guarapiranga, no caso da Igreja Messiânica, montes que são pontos frequentes de oração e vigília para evangélicos. Alguns nomes e histórias desses sagrados já nem existem mais. Outros tantos ainda surgirão ao longo da história. Por que somente um deles estaria correto? E qual é o critério para afirmar que determinada religião é certa e outra é errada?
Você sabia que a sua religião não existia até um tempo atrás? A formação religiosa do Brasil se deu com base na colonização cristã europeia, contudo, desde a chegada da Família Real, em 1808, alguns outros grupos religiosos puderam desenvolver sua fé em solo brasileiro. É o caso de Anglicanos e Kardecistas. Ao longo do século XIX, na região Central do Rio de Janeiro, começaram a se estabelecer as chamadas “macumbas cariocas”, que era um nome muito usado naquele tempo pra se referir às religiões de matrizes africanas. Essas macumbas eram frequentadas principalmente por pessoas negras e pobres, que moravam em cortiços da região ou na primeira favela, hoje conhecida como Morro da Providência. Essas macumbas cariocas se tornaram lugares de desenvolvimento espiritual e de resistência cultural às constantes violências impostas aos corpos pretos e ao que eles representam culturalmente neste país. É importante destacar que a Umbanda, religião sistematizada no início do século XX na cidade de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro, teve um crescimento notável agregando negros e pobres e conquistando seu espaço também entre a classe média branca fluminense.
Com o fortalecimento do movimento pentecostal, igrejas como a Congregação Cristã no Brasil (1910), Assembléia de Deus (1911), O Brasil para Cristo (1955/1956) e Deus é Amor (1962) surgiram e se consolidaram, sobretudo, entre os mais pobres. O forte discurso de ataque às religiões de matrizes africanas ganhou espaço fazendo com que negros e pobres se aliassem a estas organizações religiosas gerando assim outras igrejas chamadas de neopentecostais como a Igreja Universal do Reino de Deus (1977), Igreja Internacional da Graça de Deus (1980), Igreja Renascer em Cristo (1986) e Igreja Mundial do Poder de Deus (1998). As maiores igrejas foram citadas aqui, mas não daríamos conta de listar tantas outras que iniciaram seus trabalhos e não foram à frente por diversos motivos. Isso não ocorre só com igrejas evangélicas. Diversas outras religiões desapareceram à medida que a cultura e os povos que as sustentavam desapareceram também. As religiões dos povos originários do Brasil e do continente americano são exemplos de como a violência colonial visa exterminar visões de mundo que não colaboram com a sua expansão.
Pois é! Religião é uma manifestação da cultura de determinado povo e está ligada a esse povo e ao território no qual ele habita. A religião é fruto da relação de um povo com o seu sagrado e deste sagrado com os sagrados de outros povos. Já reparou que a igreja da sua rua provavelmente é diferente da igreja de mesmo nome lá do outro bairro na outra ponta da cidade?
Infelizmente, ensinaram para a gente que a verdade está em nossas mãos e isso é muito prejudicial a nós todos e todas! Já pensou se todo mundo pensasse igual? Que saco seria viver nesse mundo! A diversidade faz com que nosso mundo seja mais bonito e com que cada uma de nós tenha assunto, perspectivas e pontos de vista diferentes sobre o mesmo tema.
Desde então, algumas pessoas resolveram eleger um inimigo em comum para afirmarem sua verdade como a única possível e usaram uma estrutura já existente para ficar mais fácil convencer as pessoas disso: o racismo estrutural! A psicóloga Grada Kilomba diz em seu livro Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano, de 2019, que “o racismo é revelado em um nível estrutural, pois pessoas negras e people of color estão excluídas da maioria das estruturas sociais e políticas. Estruturas oficiais operam de uma maneira que privilegia manifestadamente seus sujeitos brancos, colocando membros de outros grupos racializados em uma desvantagem visível, fora das estruturas dominantes. Isso é chamado de racismo estrutural.”
A vendedora Amanda Santos, moradora do AP do Itararé, no Complexo do Alemão destaca em entrevista que o racismo “é uma forma de demonstrar, de externar que o branco, que se julga uma raça superior, mesmo não sendo, obviamente, tenta anular os negros e as demais etnias”.
Quando a gente acredita que determinada “raça” é melhor do que a outra, se torna natural defendermos e darmos preferência a um e não ao outro. Por isso o racismo é tão nocivo para a nossa sociedade, ele divide e prejudica determinados grupos dando vantagem a outros. Todos sabemos como o tratamento do Estado brasileiro é diferente entre brancos e negros. Quantas pessoas em situação de rua que vemos todos os dias são brancas? E quantos médicos negros se formam nas universidades públicas brasileiras? Um médico que acredita que brancos são melhores que negros vai tratar brancos de forma mais digna. Um líder religioso que acredita que determinada religião é pior do que a outra vai ensinar seus fiéis a combater os outros com o objetivo de eliminá-los, julgando-os como práticas heréticas, magia negra, bruxaria. Temos exemplos disso no legislativo brasileiro onde constantemente leis são votadas para dificultar a prática do culto afro-brasileiro, leis que confundem e criam animosidades entre a sociedade e praticantes das religiões afro. Em 2019, o Supremo Tribunal Federal decidiu que é constitucional o sacrifício de animais em cultos religiosos de matriz africana e pôs fim às diversas tentativas de criminalizar a prática ancestral de alimentação dos povos de terreiro.
Essa mensagem foi postada no Twitter do deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) e logo depois da repercussão negativa que o tweet causou, foi apagada por ele. Mas até mesmo durante cultos televisionados a partir de sua igreja ele admite e reafirma sua fala racista como teologia.
Quando foi que a gente passou a achar esse tipo de postura aceitável?
Discursos como estes fazem com que as pessoas entendam praticantes das religiões africanas como amaldiçoados, menos humanos, frutos do mal e isso os torna vulneráveis a todo o tipo de violência.
O professor Kabengele Munanga em seu texto Uma Abordagem Conceitual das Noções de Raça, Racismo, Identidade e Etnia, de 2004, conceitua racismo como “uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural.”
Em outras palavras, podemos entender também que o racismo é a crença de que determinadas pessoas são melhores do que as outras devido à sua origem ou à cor de sua pele. Esse conjunto de características que chamamos de raça é construído no nosso imaginário principalmente através da nossa educação, ciências, arte, teologia, paisagem e etc…
Toda vez que vemos em um templo religioso uma menção direta a outra religião como algo negativo, precisamos nos fazer a seguinte pergunta: a quem isso está beneficiando?
Pedir a benção pras nossas mais velhas é uma coisa que aprendemos desde cedo no terreiro. Aprender com os mais experientes é um fundamento também do cristianismo. Mas na verdade, tudo isso é ensinamento do povo negro, em diáspora, desde sempre: nossos passos vieram de longe.
— Pastor Henrique Vieira (@pastorhenriquev) November 13, 2020
Algumas pessoas travam cruzadas e guerras santas contra inimigos em comum e esse inimigo tem diferentes origens étnicas, apesar de serem geograficamente muito bem definidas: são de África. Inimigos que também têm cor de pele ou cor de fé: são (quase) sempre entidades sagradas negras das religiões vindas da África as vítimas da intolerância religiosa racista. Porque você nunca viu Shiva, Vishnu ou Thor “baixando” nessas igrejas? Por que os inimigos eleitos são sempre de uma só matriz religiosa e vem de um só lugar do mundo? O racismo é este fenômeno e quando está na religião se mostra como racismo religioso, fazendo com que as pessoas acreditem que a verdade delas é melhor do que a verdade do outro, que elejam o outro e suas crenças pretensamente demoníacas e impuras como o inimigo e não se questionem a razão de serem sempre as mesmas entidades espirituais a se manifestarem e a serem combatidas e expulsas em cultos, sempre em nome de Jesus, de um Jesus branco de olhos azuis.
O racismo naturaliza a opressão às pessoas negras em todos os campos de suas vidas, inclusive em sua espiritualidade e em sua fé. Temos acompanhado, desde os tempos coloniais, a violência sistemática contra pessoas de religiões de matrizes afro-brasileiras, como a Umbanda ou o Candomblé. Ataques a templos, coação do uso dos espaços públicos para rituais, bullying com crianças iniciadas nas escolas, um caso emblemático deste tipo de violência foi o da menina Kaylane, 11, que foi agredida com uma pedrada em 2015, na zona norte do Rio de Janeiro, quando saía de seu axé com sua família.
No Brasil, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos é o responsável pelo Disque 100, central telefônica responsável por registrar casos de intolerância religiosa e outras ocorrências. Segundo dados oficiais do Disque 100, em 2017, de todas as ocorrências, as religiões de matrizes africanas somaram 144 enquanto católicos somaram 31 e evangélicos 27. Em 2018, os segmentos mais atingidos foram, novamente, as religiões de matrizes africanas (147), testemunhas de Jeová (31) e evangélicos (23).
Precisamos lembrar que o Brasil é um país laico, ou seja, não professa oficialmente fé alguma. Além disso, é proibido discriminar alguém por sua fé: é crime de acordo com a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997.
A melhor forma de garantir a própria liberdade é zelando pela liberdade do outro. Para evitar problemas maiores, ao se sentir violado ou discriminado em sua liberdade religiosa, reúna provas: vídeos, áudios, prints das redes sociais, testemunhas de ameaças, agressões e/ou injúrias públicas, dentre outros. E, na dúvida, procure imediatamente às autoridades: Disque 100!
Sobre o autor: Jeferson Rodrigues é cria do Complexo do Alemão, de 34 anos, se formou professor de geografia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Administração Pública pelo CEPERJ. Usa suas redes sociais para falar sobre a questão racial e a espiritualidade. Mantém o canal Dide no YouTube onde dialoga sobre a questão racial entre integrantes das religiões de matrizes afro-brasileiras.
Sobre a artista: Natalia de Souza Flores é cria da Zona Norte e integrante das Brabas Crew. Formada em Design Gráfico pela Unigranrio em 2017, trabalha como designer desde 2015. Lançou a revista em quadrinhos coletiva ‘Tá no Gibi’, em 2017 na Bienal do Livro. Sua temática principal é afro usando elementos cyberpunk, wica e indígena.
Esta matéria faz parte da série do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.