Esta matéria faz parte da série do projeto antirracista do RioOnWatch e também de uma parceria com o Núcleo de Estudos Críticos em Linguagem, Educação e Sociedade (NECLES), da UFF, para que seja utilizada como um recurso pedagógico em escolas públicas de Niterói. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.
Em 2021, a Lei 10.639/03, que trata do ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas, chegou à maioridade, completando 18 anos. Conforme diz o texto da lei, toda escola no Brasil deveria ensinar “História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”, tópicos que deveriam, ainda segundo a lei, estar presentes em todo o currículo escolar, “de maneira multidisciplinar e transversal”.
Esta foi uma conquista do Movimento Negro e dos demais movimentos antirracistas do Brasil. Esta lei busca reconhecer e valorizar as contribuições da cultura africana, dos africanos escravizados e dos afro-brasileiros para a formação do país. A escola, que é um dos principais fatores de reprodução das desigualdades e do racismo que afligem nossa sociedade, pode ser um instrumento que mude a perspectiva racial da população para melhor. É neste sentido que a lei visa agir.
Mas ao atingir sua maioridade, como esta lei amadureceu? É possível dizer que sua implementação está bem efetivada, sobretudo nas escolas das favelas do Rio de Janeiro, cuja maioria da população é negra? Ao conversar com pesquisadores do tema e professores que atuam no dia a dia de escolas da rede municipal de ensino, vemos que o caminho para uma melhor institucionalização do ensino da história e cultura afro-brasileiras ainda é longo.
Iniciativa Individual Vs. Projeto Político Pedagógico
Alessandra Pio é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), mas por muito tempo trabalhou na educação básica do Rio de Janeiro. Um dos primeiros fatores que ela aponta como entrave para garantir a efetividade da Lei 10.639/03 é a dificuldade de mensuração do que está sendo atingido. Quer dizer: fiscalizar se a lei está sendo cumprida. “Lei é lei, ou você aplica ou não aplica. Quando a gente olha nas entrelinhas, estar ‘aplicando a lei’ hoje tem significado ter um professor preto que organiza o evento da Consciência Negra em novembro na escola… e isso não é aplicar a lei”, afirma a professora.
Fiscalizar se as instituições de ensino estão trabalhando a cultura afro-brasileira em seus espaços acaba se tornando uma responsabilidade dos próprios docentes pretos, que procuram seus pares para fazer a norma ser implantada. “Parece que a lei é só para preto fazer. A responsabilidade de pessoas brancas é uma questão. Então, quando chega na escola, ficam cobrando que a gente resolva a implantação da Lei 10.639”, completa Alessandra.
Silvia Barros é coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas no Rio de Janeiro (NEABI-RJ). Ela trabalha na formação especializada de docentes em estudos étnicos-raciais, recebendo pessoas de diferentes partes do Rio. Silvia também chama a atenção para a luta solitária de professores que tentam aplicar a lei em suas escolas, mas sem qualquer amparo: “Esse sentimento de fazer sozinho ou de ser a referência da escola: ‘conversa com o Euro porque ele é quem sabe desses assuntos’ gera uma responsabilização muito grande em cima de uma só pessoa”, comenta.
A ação individual de professores negros tentando implementar a Lei 10.639, revela o quanto muitas escolas não acolhem devidamente o ensino da história e cultura afro-brasileira em seus projetos políticos pedagógicos. “Muitas vezes o projeto político pedagógico é um ‘tijolão’ [um livro muito grande] que está na prateleira da sala da coordenação. Ninguém toca, ninguém vê. É um troço que as pessoas não se envolveram para criar. A escola tem hierarquização e gosta das estruturas hierarquizantes”, afirma Alessandra.
Silvia fala sobre a necessidade de ações mais abrangentes e enraizadas nos estudos étnicos-raciais: “são muitos os elementos que impedem uma mudança global, efetiva, que se aprofunde, que vá se enraizando por todos os âmbitos da escola, tanto no sentido da grade curricular tradicional, como no sentido do currículo—que é tudo aquilo que existe dentro da escola, mesmo que não seja dito: a organização das salas de aula, os cartazes que se colam nas paredes, as conversas e discursos que são ditos ali dentro, a merenda escolar, o que se come, quem são os estudantes que estão ali para receber essa alimentação, quem são as pessoas que estão produzindo aquela alimentação. Então todos esses elementos que compõem a comunidade escolar ainda estão muito distantes de uma real alteração”, conclui.
Rosária Diniz possui 26 anos de magistério público municipal, e já passou por cinco escolas, como professora e coordenadora. Professora em todas e coordenadora pedagógica em uma delas, Rosário atualmente leciona em uma unidade pública de educação na Taquara, Zona Oeste. Ela entende, com sua vasta experiência, que faltam ações mais institucionalizadas, que dependam menos dos indivíduos que compõem os quadros das escolas e que sejam pressupostos da abordagem das disciplinas do currículo escolar, como manda a lei, de maneira transversal e multidisciplinar. Ações mais institucionalizadas são necessárias para de fato se implementar o ensino de história da África e dos africanos nas escolas do ensino público da cidade do Rio. “O que eu percebo nessa trajetória [é que], de todas essas cinco escolas [em que trabalhei], a única que tem essa questão incorporada ao projeto político pedagógico é a que estou agora. É uma questão que está muito mais ligada ao olhar do professor do que uma questão institucionalizada”, afirma.
A Formação dos Docentes
Em 2012, o Ministério da Educação em parceria com a Unesco realizou uma pesquisa que indicou as principais barreiras para o avanço da Lei 10.639/03. Um dos fatores apontados é que há muita desinformação ou desconhecimento sobre a alteração da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), assim como dos demais documentos que orientam esta mudança. O NEABI foi uma das instituições que participou da formulação desta pesquisa. Silvia Ramos fala de onde parte tal desconhecimento: “Hoje eu entendo que a alteração curricular deve ser feita nos cursos de licenciatura. O que eu percebo é que existem algumas disciplinas que são colocadas ali como anexo, para dizer que tem algum tipo de informação. Na área de Letras a gente tem uma luta para que todos os cursos tenham disciplinas o suficiente de literaturas africanas. E eu vejo que nas outras áreas isso procede da mesma maneira”.
A necessidade de mexer nos currículos universitários também é um diagnóstico feito por Alessandra Pio. “Essa é uma resistência muito utilizada pelo racismo que às vezes afirma: ‘colocar mais África vai desqualificar o currículo’. É ser colonizado demais! Essa questão de não colocar a Lei 10.639 em um status institucional é porque o racismo repele [a História da África] como um conhecimento a ser institucionalizado”, afirma.
Racismo Religioso na Educação Pública
O crescimento do segmento evangélico na sociedade brasileira, sobretudo do setor neopentecostal, é observado em várias esferas, inclusive nas escolas. Este tem sido um dos principais desafios de fazer valer o ensino da história e cultura afro-brasileira: a resistência de pais, professores ou direções das escolas que rechaçam como demoníaca a fé, a cultura e a história do povo preto.
“O racismo religioso é um processo muito forte, especialmente na Baixada Fluminense, nas periferias. A corrente neopentecostal invadiu as escolas de uma forma irreversível, eu acho… Se a gente começa a ter uma lei que seja cobrada a ponto das pessoas que não a implementem sofram as sanções necessárias, aí a gente começa a ter um diálogo mais equânime”, comenta Alessandra Pio.
Reprimida e criminalizada, a cultura negra e favelada sempre foram vistas como um problema policial. Há ainda hoje medo da cultura negra e da religiosidade negra. Segundo Silvia, nas escolas isso se manifesta sobretudo por parte de pais evangélicos, “mas obviamente tem que ser falado porque não tem como desconectar uma coisa da outra. Muitas vezes é racismo religioso tanto por parte da própria escola, onde há uma rejeição, como de responsáveis, que estão inclinados para outras vertentes religiosas e não desejam que seus filhos tenham contato com [as culturas e religiões africanas].”
Rosária é evangélica, e muitas vezes usa do conhecimento que tem sobre a religião para dialogar com os pais que se mostram contrários à lei: “eu me sinto muito à vontade para discutir esse tipo de coisa. Se o cara chega reclamando: ‘ah, você colocou a criança para escutar samba’. Não, mas pera aí! Você lembra que Davi dançou? Então para mim facilita o diálogo de alguma forma”.
Ações Programáticas
Há mais de 30 anos Ronaldo Messias Lacerda trabalha como professor de educação física na rede pública municipal da cidade do Rio de Janeiro. Mestre de capoeira, ele fala que tem um objetivo: “Que cada escola do Rio de Janeiro tenha um mestre de capoeira, que vai trabalhar a cultura junto com o pedagógico”. Mestre Ronaldo vê a importância da capoeira, no desenvolvimento social, motor e educacional de seus alunos nestas três décadas.
Atualmente, Ronaldo dá aula em três escolas, todas localizadas na comunidade de Rio das Pedras, na Zona Oeste. Há muito tempo o professor baseia toda a sua didática em africanidades, “a educação física tem uma postura eurocêntrica. Eu passei no máximo três anos dando aula de voleibol, futebol de salão, basquete, handball. Aí depois disso eu comecei a trabalhar só com capoeira, maculelê, puxada de rede e samba de roda”, afirma.
Antes mesmo da Lei 10.639/03 entrar em vigor, Ronaldo já colocava em prática uma forma de ensino que valorizasse as heranças culturais africanas no Brasil em suas aulas de educação física. Ele relata o que mudou a partir do momento em que ela foi aprovada. “Eu comecei a me embasar na legislação nacional. No início eu tive umas dificuldades com mães que eram evangélicas. Seus pastores diziam: ‘Não pode, isso é macumba!’ Então, com a introdução dessa lei, eu tive como discutir isso melhor [com as famílias dos alunos]”. Com o peso da lei, os pais mais religiosos tinham menos argumentos contra o projeto político pedagógico das aulas de educação física.
Em todas as unidades em que atua no momento, ele consegue trabalhar muito bem sua visão mais democrática de ensino. No entanto, apenas em uma não teve que brigar para colocar isso em prática, pois ao chegar lá encontrou um ambiente no qual a história e cultura afro-brasileira já eram parte do projeto político pedagógico—a Escola Cláudio Besserman Vianna. “Fui chamado por essa escola por causa da africanidade, tudo vai em nível da gestão. A coordenadora, Maria Aparecida, a diretora, Maria, e outra diretora chamada Cátia, elas são altamente envolvidas com a comunidade e trabalham em cima de Paulo Freire. Então nessa escola eu já cheguei tranquilo para trabalhar isso”, comenta Ronaldo.
Uma das estratégias de Ronaldo é usar os cantos de capoeira para falar com os alunos sobre o processo de escravização dos povos africanos no Brasil. Outra didática que realiza é, no início do ano, separar as turmas em grupos de seis alunos, cada grupo responsável por um país da África. Cada um terá que saber a respeito das danças, educação e língua do país em questão. Como trabalho final, Ronaldo pede para que os alunos façam comidas típicas destes países e apresentem os principais aspectos do país que escolheram. “Aí [o aluno] já [envolve] os pais, que é uma dificuldade que a escola tem de integrar o pai e a mãe no processo educativo. E aí é o maior barato porque às vezes não tem um ingrediente, mas eles substituem. Eles trazem a comida de cada país e no final do ano a gente faz uma mostra”, relata Ronaldo.
Para o professor Ronaldo, é importante que os educadores não esqueçam o quanto o povo negro foi e é importante para o crescimento do Brasil, o quanto os elementos culturais negros construíram a identidade nacional. “Esse país cresceu com o trabalho escravo, então acho importante não esquecer isso. E quem puder, gostar e quiser trabalhar em cima disso, eu acho muito importante para o conhecimento do nosso povo.”
Sobre o autor: Euro Mascarenhas Filho, jornalista, é colaborador do Núcleo Piratininga de Comunicação, comunicador popular, e autor do programa de podcast Antena Aberta.
Sobre o artista: David Amen é cria do Complexo do Alemão, co-fundador e produtor de comunicação do Instituto Raízes em Movimento, jornalista, grafiteiro e ilustrador.
Esta matéria faz parte da série do projeto antirracista do RioOnWatch e também de uma parceria com o Núcleo de Estudos Críticos em Linguagem, Educação e Sociedade (NECLES), da UFF, para que seja utilizada como um recurso pedagógico em escolas públicas de Niterói. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.