Esta matéria faz parte da série de matérias do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.
Passado e Presente no Caju
Para chegar ao Complexo do Caju, é preciso um pouco de foco, ainda mais porque não se chega lá sem passar pelos cemitérios onde, desde o início da pandemia, quem passa vê cenas que a população só tinha visto nas telas da televisão e do celular. Áridas ruas dão acesso ao complexo, quentes como um bafo. Ruas cobertas de poeira que sobe do fluxo de carretas que se destinam ao Porto do Rio e pela vizinha Avenida Brasil.
Essas ruas viram sua atmosfera mudar por causa da maior crise de saúde da história do mundo, a pandemia do coronavírus e suas consequências. Centenas de milhares de mortes têm sido presenciadas pelo Brasil e o Rio, e o número ainda sobe diariamente.
Por conta da crescente falta de espaço nos cemitérios, foram construídos prédios de quase dois andares para colocar túmulos verticais, que podem ser vistos das lajes de localidades do Complexo do Caju como o Sebastião, por exemplo, cujas casas são separadas do cemitério apenas por um muro.
A Região Portuária, vizinha ao bairro do Caju, também já foi sinônimo de riqueza, sobretudo depois da abertura dos portos às nações amigas de Portugal em 1808, quebrando de fato o pacto colonial e favorecendo largamente a Inglaterra. A fuga da família real portuguesa para o Brasil, fugindo de Napoleão, fez com que o Rio de Janeiro, nova capital do Império português, fosse inundado por produtos ingleses e pelo tráfico internacional de pessoas negras escravizadas sequestradas da África. Este processo tem consequências até hoje para a vida no Rio de Janeiro, cidade que mais recebeu pessoas escravizadas pelo tráfico negreiro do mundo.
O Caju testemunhou, portanto, logo no bairro vizinho da Gamboa, a formação do maior porto escravocrata das Américas, no Cais do Valongo. Contudo, essas partes da história da região foram quase soterradas pelo tempo e pelas transformações socioespaciais em mais de 150 anos.
Hoje o Caju é uma região por muitos esquecida, uma periferia urbana, um conjunto de favelas. Essa mudança do perfil do bairro começou a acontecer desde o final da primeira década de 1800. O Caju passou a receber a população negra, pobre e migrante que precisava morar perto do Centro da cidade, área nobre onde trabalhavam. O Estado não tinha políticas públicas de habitação para esse público, nem dava condições para essa população achar alternativas. Com isso, uma generalizada auto-organização dos moradores em suas dinâmicas de sobrevivência passa a dar o tom da ocupação espacial no Rio de Janeiro. Territórios que, do ponto de vista do Estado, não deveriam receber investimento social, melhoramentos ou políticas públicas, e ao mesmo tempo não deveriam sequer existir na paisagem carioca.
Hoje sete favelas compõem o Complexo do Caju: Parque Alegria, Clemente Ferreira, Quinta do Caju, Chatuba, Parque São Sebastião, Manilha e Parque Conquista. Há negligência do Estado em muitos aspectos, falta muita coisa, mas algo que chama atenção é a falta de oportunidades para o desenvolvimento social e cultural dos moradores. Apesar disso, o território vê nos últimos anos muitos jovens indo em direção às artes. Acontece agora um movimento carregado de energia vindo de jovens que vivem condições que nem sempre permitem a eles sobreviver, por conta da violência policial e à falta de políticas públicas, sobretudo durante a pandemia.
Para entender como esses talentos do Caju brotam à revelia da realidade dura do dia-a-dia, destacamos relatos e reflexões de quatro jovens do local: Vitoria Silva, Katia Dami, Pedro Henrique Bento e Dave Braskinovten. Eles fazem parte do único projeto de teatro do Complexo do Caju, o Projeto Cria. Foi através do teatro que se conheceram e é através dele que se articulam socialmente. Eles e elas são artistas múltiplos que se destacam pela arte, mas que ainda lutam pelo básico, pelo que deveria ser possível para a juventude negra e de favela: poder ser quem são e viver em paz em suas comunidades. Suas identidades enaltecem não só seus lugares de pertencimento, mas também a posição de quem precisa se firmar todos os dias em meio a uma sociedade racista e anti-favela.
Vitoria Silva
“O meu descobrimento como mulher preta foi bem difícil porque antigamente eu era extremamente tímida, oprimida e me achava estranha. Mas nunca fui de ser ou me encaixar num padrão. Até um dia que aconteceu uma coisa que eu não podia me ignorar e me questionei sobre em qual lugar da sociedade eu estava. Se eu não for uma pessoa que bate de frente e se eu não for uma pessoa original, eu vou apanhar porque eu não sou privilegiada de nenhuma forma. Eu sou pobre, eu sou preta. Então no determinado momento que eu decidi me aceitar, eu comecei a me expor e não a me oprimir. Hoje quando a pessoa vem com os preconceitos dela eu bato de frente mesmo e são diversas situações. Eu gosto da pessoa que eu me tornei, a pessoa que não se ausenta e que fala. Eu bato de frente até com as pessoas da minha família. Hoje em dia eu consigo me impor.
Hoje eu vejo o teatro como uma forma de poder me expressar. Eu me divirto de mim. O teatro é uma forma de você passar uma mensagem para outra pessoa de uma forma bonita ou dura, mas ela vai receber. É uma forma de passar para o outro a minha vivência ou a de outra pessoa só que da minha perspectiva. É uma forma de eu ser ouvida porque de várias outras formas eu não seria escutada. Hoje em dia a gente tem muitas referências de atrizes, mulheres pretas, mas eu não tive nenhuma referência. Na minha família ninguém nunca tinha escutado o que era teatro, nunca, e eu fui a primeira.
Eu pude ver todos os processos do teatro, da montagem até a atuação. Eu passei por todas as fases e eu vi o que eu realmente gostava. Porque antes, eu era uma pessoa extremamente tímida, eu me abria com poucas pessoas. Eu era uma pessoa que tinha uma dificuldade para falar, para desenvolver a minha fala. Quando eu ia apresentar um trabalho na escola eu gaguejava de vergonha. Eu entrei no Passageiro do Futuro e gostei muito, fiquei dois anos. Depois disso veio logo a pandemia.
Eu sempre tive uma vivência de fazer papéis mais históricos, personagens mais velhas do que eu. Mas eu nunca tinha feito um papel com tanta representatividade, porque [quando] eu olho para Carolina de Jesus, eu olho para minha mãe, sabe? É uma vivência muito louca porque a minha mãe trabalha desde os oito anos. Meus avós morreram bem cedo e eles tinham dez filhos. Então a minha mãe teve que passar a vida toda dela criando e cuidando das pessoas. Quando eu olho para Carolina criando os filhos, com várias funções: se tornou uma pessoa que eu quero ser um dia. É uma potência, uma referência. Mulher preta, veio da favela. Então eu olho para ela e vejo uma inspiração, quando eu saio de casa por aqui eu vejo várias Carolinas.”
Katia Dami
“Katia surgiu como um personagem porque nas aulas de maquiagem que eu fazia teve uma roda de filosofia [em] que a professora fez um exercício sobre nomes que nem batata quente. Um menino que era gay falou o nome social dele, Ariel. Quando me chamaram de Leandro, meu nome de batismo, eu falei, ‘Leandro? Ih que Leandro o quê? Meu nome é Katia’! E todo mundo riu, virou até meme. E eu comecei a me apresentar dessa forma.
Eu sou muito acessível, muito diversa e eu me construí através de muitas coisas. Mas eu aderi mesmo à imagem de mulher da minha mãe. Ela sempre foi uma mulher simpática, humilde, interessante, honesta e elogiada. Ela foi uma mulher incrível e hoje em dia as pessoas falam que ela encarnou em mim. Hoje eu sou irmã e mãe ao mesmo tempo e isso foi uma responsabilidade que veio do nada. Sair da juventude com 19 anos e ter que constituir uma família de duas crianças pequenas sem nenhum familiar no Rio é muito complicado. Você tem que fazer um corre, arranjar dinheiro, dar tudo, fazer a comida do dia seguinte e ao mesmo tempo pensar na sua carreira profissional e artística. São outros babados. Minha mãe veio de Pernambuco e meu pai do Piauí e eu sou essa mistura sobrevivendo sozinha aqui criando duas crianças.
Eu tive o meu primeiro contato com o teatro em 2012 na Zona de Cidadania. Eu fiz dança, artesanato, entre outras coisas, porque eu sou múltipla. Eu entrei no ano que o projeto ia fechar. Aí depois eu conheci o Passageiro do Futuro, depois do Afroreggae me indicar para as aulas de teatro porque eu era talentosíssima. Fiz Auto da Compadecida em 2015 e a minha atuação foi tão boa que eu continuei indo às aulas. Em 2016 eu fiz meu primeiro papel feminino quando também me tornei Katia. Foi a personagem Maria Belezoca em Tribobó City. Já em 2017 foi Mom Baby que contava a história dos espetáculos de circo nas ruas, mostrando o teatro para o povo. Mas foi por essa época que eu conheci o teatro político, voltado para o periférico. E eu realmente concluí que era isso que eu queria para a minha vida.
O teatro me deu autoestima, autoconfiança, me deu a potência que eu sou hoje em dia. Eu me descobri graças ao teatro e ele me deu muito essa força de ‘vai, o mundo é seu’. Eu era deusa e não sabia. Fora isso, tem muito do corporal, a postura, a voz. Você está olhando tudo já com um olhar crítico das coisas na sua cabeça. A arte é muito importante porque deixa as pessoas mais intelectuais. Eu invisto muito nas coisas que eu faço e hoje eu sou modelo, compositora, cantora, atriz, maquiadora, performista, drag queen, poetisa, aderecista e muitas outras coisas que me tornei.
Ser travesti em um país transfóbico, onde mais se mata travestis e transexuais no mundo, é muito difícil… Se [na rua] eu der um deslize, eu posso ser morta com muita facilidade e vou deixar duas crianças aí [sozinhas]. Eu falo muito de ser resistente nessa sociedade, como aqui no Caju. Como ser contra aqueles olhares que matam, que dão aflição pela quantidade de preconceito? O povo julga muito e ao mesmo tempo é muito hipócrita porque gritam na rua com a gente, mas depois tão mandando mensagem para as travestis no WhatsApp. O Brasil é hipócrita mesmo. Olha para mim: eu sou uma deusa que resiste no paraíso.”
Pedro Henrique Bento
“Eu não parava muito no Caju até um dia que a minha mãe me colocou no Afroreggae. Quando eu cheguei no Afro, minha mãe ficou uma semana lá comigo na aula porque ela sabia que eu ia fugir. Lá eu só fazia circo e grafite. Aí eu vi as crianças fazendo percussão e eu quis fazer também. Foram três anos até eu conhecer o teatro. No começo foi estranho mas com o tempo eu fui gostando, fui perdendo esse lado negativo e vi que me fazia esquecer dos problemas, livrava meu dia de ser ruim. Minha dicção ficou melhor e eu comecei a conversar mais. Katia foi a primeira que eu conheci lá no Afroreggae, ela fazia aula de dança e como é uma pessoa muito espontânea, ela praticamente me adotou.
Quando o Afroreggae acabou no Caju eu fui para um projeto que tinha uma outra pegada, que não era tão infantil. Foi onde eu conheci o Dave. A organizadora foi entregar panfletos na escola e eu me inscrevi. Aí que eu gostei mais ainda porque foi ali que eu me interessei pela arte em si. Nesse ano eu também conheci a Vitoria na fila da cantina.
O teatro me proporcionou um mundo que eu não tinha. Eu fui conhecendo mais as pessoas, vendo o lado delas e entendendo as suas lutas. Conheci pessoas e amigos maravilhosos, passei a saber o que se passava na casa das pessoas. Eu abri a minha cabeça para entender o que é A, o que é B, o que é C. Teatro é uma experiência única que todo mundo deveria fazer. É incrível porque você meio que se liberta da vida robotizada, do mundo padronizado, sabe?
Eu nunca sofri nada por ser bi. Na verdade nunca sofri bullying porque o pessoal tinha mais medo de mim do que eu deles. Racismo, é claro. Eu sempre fui muito resolvido na minha cabeça, tanto que eu conversava muito com a minha mãe e ela respondia que estava tudo bem com aquilo. Minha mãe me apoiou em tudo, tudo o que acontece eu conto para ela. Mas se não fosse pela internet e pelo computador que eu ganhei, eu nunca teria conhecido e me aprofundando nos assuntos LGBT e racial tanto. Tanto já sabia que quando conheci Katia eu já sabia argumentar, já sabia um pouco das coisas porque eu já tinha visto e estudado na internet.”
Dave Braskinovten
“Eu via muito Quinta Categoria na televisão, na MTV, Tatá Werneck e tal. Quando eu era menor, eu e minha irmã brincávamos de ficar encenando, improvisando as coisas e imitando as pessoas. Eu sempre fiz alguma coisa dentro ou fora de casa, minha mãe sempre me colocou em alguma coisa. Mas quando meu primo e minha madrinha vieram da Paraíba para fazer uma peça lá na antiga Usina de Cidadania em Manguinhos, tudo mudou. Eles foram apresentar uma dança e eu sempre ia nos ensaios. Eu tinha nove anos. Aí eu quis muito fazer um espetáculo, mas tive que esperar até os onze para entrar. Eu comecei a fazer teatro e foi maravilhoso porque eu sempre fui solto, brincalhão, falava com todo mundo. Eu fiz três peças mas depois eu passei a não conseguir fazer teatro porque a Usina de Cidadania foi fechada [pelo governador] Sérgio Cabral. Em 2015 eu comecei a ensaiar no Projeto Passageiro do Futuro. No início era mó galera [muita gente], mas depois foi diminuindo até ter eu e mais dois lá da escola. No meu quarto ano eu virei monitor e conheci o Pedro e a Vitoria.
O teatro representa para mim liberdade e muito aprendizado, porque vê cada pessoa como um indivíduo diferente que precisa de escuta, precisa falar, precisa transmitir alguma coisa, a sua arte. Quando você pega o papel de alguma pessoa, por exemplo, que fez a Carolina Maria de Jesus, como a Vitoria, você pode falar para outras pessoas que nunca ouviram e contar uma história. E isso toca tanto a pessoa que está ouvindo, quanto a pessoa que está falando. É um compartilhamento necessário, é uma maneira de todos se ouvirem.
Para mim um processo marcante foi quando eu deixei o meu cabelo crescer. Aí eu entendi mesmo que eu era preto, [que] essa é a minha ancestralidade. Eu me achava branco e com o meu cabelo crespo na favela era tachado de branco, mas quando eu ia para a rua, para o asfalto, eu era visto de maneira diferente. Eu sempre vi as pessoas me olharem estranho, não sentarem do meu lado, sendo visto como qualquer coisa ruim por causa do meu cabelo. Foi aí que eu decidi deixar ele ainda maior. Ele é meu único traço negroide, preto, que mostra minha ancestralidade. É o meu elemento de poder. Eu acho muito triste pensar que ainda em 2021 temos todo esse preconceito racista, xenofóbico e discriminatório, os discursos de ódio.”
Conclusão
A produção artística e especialmente o teatro de rua periférico são ferramentas para reivindicar pautas sociais e carregam em si muita potência para a transformação. Estimula-se com a arte a formação de um pertencimento coletivo, que aguça questionamentos, vozes, organização e movimentos de território. Como os relatos acima demonstram através da cultura, é possível romper com as diversas barreiras que são impostas as populações pretas, pobres e periféricas.
Através da luta de movimentos articulados pelo povo e da tomada de consciência que sempre segue a mobilização social ou cultural, sobretudo através da cultura popular, fica cada vez mais evidente que mudanças são necessárias, urgentes e só vão vir pelas mãos do povo. O Caju é um bunker de potência, com talentos que assumem seu lugar na história, reivindicando demandas centrais como igualdade, direitos humanos e liberdade de expressão.
Sobre o autor: Alexandre Cerqueira, morador do Lins, Zona Norte, é formado em Relações Internacionais e desenvolve projetos de educação básica nas favelas a partir da fotografia e produção de vídeo como ferramentas de linguagem.
Sobre a artista: Raquel Batista, 19, graduanda em educação artística pela UFRJ, é artista visual, cria de Campo Grande e atual moradora de Engenho de Dentro, na Zona Norte. Trabalha como ilustradora, desenhista e fotógrafa. Ela define que seu objetivo é através da arte, representar pessoas que, como ela, uma jovem negra e periférica, nem sempre são vistas.
Esta matéria faz parte da série de matérias do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.