Esta matéria faz parte da série do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.
Ouvimos falar de direita e esquerda o tempo todo. Desde criança, aprendemos que existem lados diferentes e que conhecê-los é importante para desempenhar tarefas básicas da vida. Em época de eleições ouvimos muito que o candidato X ou Y é de esquerda ou de direita, mas pouca gente de fato entende isso. Por vezes soa até como algo de futebol ou coisa do tipo, né? Mas é algo bem mais sério que isso!
É importante entender o mínimo do que esses termos significam e como eles afetam diretamente a vida do povo preto e favelado. Mais do que isso, é necessário apresentar uma saída. A proposta deste texto é mostrar que o aquilombamento é uma saída para a emancipação e autonomia do nosso povo.
Há diversas formas de enxergar o exercício da política. Uma das principais é a economia, uma ciência social que lida com nossos recursos e propõe maneiras de lidar melhor com eles, fazendo o melhor uso da riqueza, visando multiplicá-la. A economia pode ser um modo de fazer política que leva em consideração que os recursos existentes podem promover o bem-estar social ou não. Mas quem ou o que pode fazer isso, afinal?
Há um ente político responsável pela administração do país. Às vezes até confundimos ele com o próprio país, mas são coisas diferentes. Estou falando do Estado, com “E” maiúsculo. Este Estado é diferente também dos estados da federação, como Rio de Janeiro, Rondônia, Sergipe e etc.
Há várias ideias e formas de administrar um Estado e, no Brasil, quem escolhe a forma de administrar é o povo, através das eleições diretas. A diversidade de partidos políticos é, a princípio, reflexo da diversidade de pensamentos e visões do povo sobre como administrar os recursos do Estado. Quando o eleitor escolhe o partido A ou B, ele está votando não somente em uma pessoa, mas em uma forma de administração, em uma visão de como o Estado deve ser organizado.
Há muito tempo, por volta de 1789, no contexto da Revolução Francesa, a Assembleia Nacional Constituinte era organizada da seguinte forma: à esquerda do presidente do parlamento ficavam os jacobinos, as pessoas favoráveis à revolução, republicanos que queriam a dissolução da monarquia, e à direita ficavam os girondinos, partidários da instalação de uma monarquia constitucional na França. Esses dois grupos tinham visões bem diferentes sobre como deveria ser o comportamento do Estado com relação à economia. O tempo passou, ideias novas foram surgindo e se adequando a novos tempos e lugares, de modo que não temos mais só essa concepção do século XVIII como única referência.
Grandes eventos marcaram e dividiram os dois espectros políticos no Brasil e no mundo. Os principais foram a Comuna de Paris, a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa, o Tenentismo, a Coluna Prestes, a ascensão do nazi-fascismo, o Integralismo, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria e as lutas anticoloniais na África e na Ásia. Novos nomes e partidos surgiram e se sucederam dentro da esquerda e da direita nacionalmente e internacionalmente durante esses mais de 200 anos até hoje. Ambos os lados ganharam matizes e correntes bem diferentes entre si. Hoje, esquerda e direita são conceitos definidos que variam de acordo com o território e sua tradição política local.
Dentro de cada lado há grupos muito diferentes entre si e, por vezes, até mesmo opostos. Quando falamos em “esquerda americana” e “esquerda europeia”, ou em “esquerda liberal” e “comunismo” estamos nos referindo a coisas completamente diferentes, assim como acontece entre “direita liberal” e “direita conservadora” ou entre “neoconservadorismo” e “fascismo”. Alguns desses grupos já declararam guerras a outros dentro do seu próprio espectro político. A diversidade é tão grande que esquerda e direita são classificadas desde suas versões mais radicais e extremistas, como o “anarquismo” e “libertarianismo”, até suas formas menos aguerridas a mudanças, o chamado “centro político”, a “centro-esquerda” e a “centro-direita”. Às vezes, há maior aproximação entre grupos de lados diferentes do que dentro dos próprios lados. Portanto, o que chamamos de esquerda e direita hoje é bastante diferente daquilo que surgiu na Assembleia Nacional Constituinte francesa.
A esquerda, de forma bem geral, acredita que o Estado deve interferir na economia, mantendo grandes estruturas estatais para geração de recursos e investimento direto em equipamentos públicos, como escolas, postos de saúde, segurança, lazer e cultura. De forma geral, para as esquerdas, assegurar o básico à sobrevivência a todos é a função primordial do Estado. Os impostos, que também são administrados pelo Estado, seriam a grande fonte de orçamento para garantir esses acessos à população em um governo de esquerda.
Já a direita acredita que o Estado não deve interferir dessa forma na economia. A economia, as grandes estruturas geradoras de riqueza e muitos dos equipamentos como escolas, postos de saúde, segurança, lazer e cultura devem ficar sob a gestão do setor privado, das empresas, para que haja concorrência e preços regulados automaticamente pelo livre mercado. Nesta perspectiva, o povo (visto como “consumidor”) paga pelo uso dos equipamentos e serviços, que não seriam mais públicos, além de pagar impostos para manutenção de um Estado apequenado. Os lucros da gestão desses serviços ficam com os empresários, que alocam recursos de acordo com sua estratégia de mercado e não com o interesse público. Assim como a esquerda, durante o tempo, aconteceram rachas na direita que passou a contar com vários grupos bastante diferentes entre si, mas que ainda se reconhecem como direita.
Listei algumas características econômicas, mas é bom que fique evidente que há variações em ambos os lados. Também deve-se entender que ambos os campos têm opiniões que podem ir muito além da economia, podem ser, por exemplo, sobre pautas de costumes (sexualidade e gênero, por exemplo), religião e formas de governo (democracia, ditadura, aristocracia, monarquia e etc). Aliar-se a um grupo ou a outro é sobretudo declarar qual deles vai favorecer a sua sobrevivência quando estiver gerindo os recursos do país.
E na Favela, Como Isso Se Reflete?
A história de todas as favelas é a história da luta das pessoas negras, indígenas e de outros grupos marginalizados pela sobrevivência. Quando falo de sobrevivência, não é só do direito de respirar, mas do direito de existir na expressão da cultura, espiritualidade, acesso à saúde, educação e lazer que respeitem suas formas ancestrais de viver. Enfim, direito de existir.
Desde o surgimento da primeira favela, atualmente conhecida como Morro da Providência, o Estado brasileiro está em falta com o povo favelado. Várias promessas e projetos para a habitação foram feitos e todos foram insuficientes para resolver o problema de moradia neste país. Junto a isso, observamos a crescente investida violenta contra a favela em uma guerra aos pretos e pobres disfarçada de guerra às drogas. O resultado disso é a absurda taxa de morte de pessoas negras em operações policiais sem contrapartida que justifique tantas vidas perdidas.
Frequentemente, a mídia noticia um caso absurdo de violência. Fica o questionamento: é despreparo ou é projeto? Alguns casos tornam-se emblemáticos e ficam em nossa memória. É o caso do policial do BOPE (Batalhão de Operações Especiais) que confundiu uma furadeira com uma arma e matou um morador do Morro do Andaraí em 2010. No mesmo ano, no Chapéu Mangueira, na Zona Sul do Rio de Janeiro, Rodrigo Alexandre da Silva Serrano carregava um guarda-chuva e foi atingido por três disparos feitos por policiais da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). Em 2012, em Avaré, cidade no estado de São Paulo, um trabalhador foi atingido e morto por um tiro no pescoço disparado por um cabo da Polícia Militar de São Paulo, que confundiu uma Bíblia no bolso do homem com uma arma. Em 2018, um morador do Complexo do Alemão teve sua muleta confundida com uma arma e foi atingido na cabeça por estilhaços de bala. Agora em 2021, na favela do Piolho, em São Paulo, moradores afirmam que um adolescente foi atingido por uma bala na cabeça após ter sua marmita confundida com uma arma.
Essa forma de agir do Estado com a favela não foi diferente em nenhum dos governos até hoje, seja de direita, seja de esquerda. Ambos deram duros golpes no povo favelado, intensificando a política punitiva e dando pouca ou nenhuma atenção à integração com o “asfalto”. Um exemplo disso é que alianças eleitorais foram costuradas para permitir a esquerda brasileira chegar ao poder e isso significou não só um palanque que juntava pessoas que até então eram adversárias políticas, mas a composição de um legislativo, de um secretariado e de ministérios que não tinham visões convergentes sobre como deveria ser a administração pública.
Compor governos significa ter poder de fazer políticas públicas, mas por vezes ter que apoiar políticas contrárias aos preceitos de suas bases, das pessoas que originalmente elegeram e apoiaram o governo. Um exemplo de política pública feita por governos de direita e apoiado pela esquerda, em governo de composição, que tem uma relação direta com a vida da favela, é o fracasso do projeto das UPPs. Adotada como política de segurança no governo Sérgio Cabral (PMDB-RJ), as UPPs foram apoiadas por boa parte da esquerda com o argumento de que seriam uma solução para o problema da violência e do tráfico de drogas. Para a esquerda, o sucesso dessa política viria sobretudo através de seu braço social, a UPP Social, que prometia a instalação de equipamentos culturais e a intervenção social nos territórios. Mas assim como seu gêmeo militar, a UPP Social também não teve resultados satisfatórios. Podemos afirmar que até gerou resultados negativos, trazendo frustração e intensificando a sensação de abandono de nosso povo.
A direita não possui um projeto para a favela e vem reforçando estereótipos e um ideal onde os problemas não são enfrentados em sua base, mas trazendo a culpa dos problemas para o povo, ignorando os processos históricos que nos trouxeram até aqui. Um exemplo é a insistência no discurso da meritocracia e o apoio a projetos como a redução da maioridade penal que atingem diretamente a juventude preta e favelada.
Em governos de direita como o de Wilson Witzel (PSC-RJ) e de Cláudio Castro (PSC-RJ) no Rio de Janeiro ou de Jair Bolsonaro (PL-RJ) a nível nacional escancararam a relação inegável entre direita política e necropolítica. Witzel, por exemplo, em campanha, dizia que as favelas deveriam ser bombardeadas. Depois de eleito, gastou dinheiro público andando de helicóptero e pousando na Ponte Rio-Niterói só para comemorar com empolgação teatral a morte de uma pessoa que havia sequestrado um ônibus. Depois do impeachment de Witzel, sob o governo de Cláudio Castro, a retórica de apoio irrestrito à polícia e às violações de direitos humanos provocaram a maior chacina policial da história das favelas do Rio de Janeiro: a Chacina do Jacarezinho, com 29 assassinadas. Cláudio Castro inclusive veio a público depois da chacina defender a ação da polícia no Jacarezinho.
Em um governo de extrema-direita, Jair Bolsonaro e seu Ministro da Justiça e ex-juiz Sérgio Moro propuseram o excludente de ilicitude para crimes cometidos por policiais em ação, o que legalizaria todos os crimes das polícias brasileiras. Além disso, como grande parte da direita brasileira contemporânea, Bolsonaro tem um discurso de que matar é a solução para os problemas de segurança pública, que julgam ser problemas da favela e não de toda a sociedade. Ainda em campanha, em 2018, Bolsonaro disse que, se eleito, iria mandar metralhar a Rocinha. Ele disse isso a uma plateia de empresários, durante o processo eleitoral. Essa retórica que criminaliza a favela e todo esse discurso da necropolítica têm sido central para a direita conservadora brasileira nos últimos anos.
Aos olhos do Estado, no regime capitalista, seja numa administração de direita ou de esquerda, a favela continua sendo depósito de mão-de-obra barata para movimentar a máquina de mais-valia e de lucro do capital. É com moradores destes territórios que os empresários fazem a clássica chantagem para manter os salários baixos: “Se não quer, demito você e contrato duas pessoas com metade do seu salário”.
As favelas já foram lugares importantes para a formação dos partidos de esquerda no Brasil. Um exemplo disso é o Jacarezinho, no Rio de Janeiro, que já abrigou diretórios de partidos como o PT e o PDT, mas que hoje sofre com o êxodo da sua militância que foi cooptada pela academia, como afirma o militante e morador de longa data do Jacarezinho, Rumba Gabriel.
Hoje o que observamos é a ocupação da direita nas favelas via igrejas evangélicas, onde o liberalismo e o neopentecostalismo se uniram como a fé e como prática política em favor da opressão da diversidade. As igrejas possuem claramente a função de ser o braço ideológico da direita brasileira, inclusive assumindo pautas morais e que adentram costumes e práticas de cunho pessoal de cada cidadão, como com quem você se casa ou o que você faz com o seu corpo, o que, por sua vez, reforça a fé dominante nestes espaços.
Quando o foco da transformação sai das mãos do povo e passa para as mãos de seres espirituais, a tendência é naturalizar as desigualdades, criminalizar as diferenças e impor crenças de que a solução vem do alto e que para isso precisamos misturar a estrutura estatal do país com a estrutura eclesiástica de determinados grupos. Neste caso, o debate econômico e político das instituições e organizações ficam em segundo plano, pois tudo passa a ser vontade de um ser espiritual, em que só alguns acreditam, mas que todos seriam obrigados a seguir. Assim, valores como participação, fiscalização e propositividade sobre questões de interesse público perdem força em favor da fé.
Conclusão: O Aquilombamento É a Saída!
Essa encruzilhada ingrata não é nova para o nosso povo, mas o aquilombamento se apresenta como uma forma eficiente de organização da favela. Aquilombar significa encarar a favela como aquilo que ela nunca deixou de ser: um quilombo! O quilombo era o espaço onde escravizados resistiram ao sistema, e, fugidos dos espaços de exploração, se juntavam e criavam modos de resistência que passavam pela cultura, música, espiritualidade e produção material. O mais famoso foi o Quilombo dos Palmares sob a liderança de Zumbi. Nestes espaços, o protagonismo era negro, embora pessoas indígenas e brancas também encontrassem acolhimento lá.
Andrelino Campos, em sua tese O Planejamento Urbano e a “Invisibilidade” dos Afrodescendentes: Discriminação Étnico-Racial, Intervenção Estatal e Segregação Sócio-Espacial na Cidade do Rio de Janeiro, mostra como a favela destes tempos é o quilombo dos tempos passados. A estratégia do aquilombamento—também trazida por Abdias do Nascimento, em seu livro O quilombismo: Documentos de uma militância Pan-Africanista—é necessária para construir uma visão diferenciada de nós mesmos e entendermos que não somos um problema para a sociedade. Pelo contrário, se a favela não se mover, a cidade como um todo para. Aquilombar-se é reconhecer a diversidade que há em nossos lugares e tornar isso um ponto a nosso favor. Esta estratégia exige posicionamento. Como disse a filósofa Katiúscia Ribeiro, certa vez:
“Ninguém é povo pela metade.”
Desse modo, nós, negros aquilombados, teremos religiões, perspectivas de vida, orientações sexuais, gêneros, etnias e origens, afiliações ideológicas e partidárias diferenciadas. Contudo precisamos pensar de forma muito honesta e pragmática: para criarmos condições de movimentos, sobrevivências e potências, há mais espaço para nós, para a favela, na direita ou na esquerda? Esta pergunta é honesta e deve ser pensada individualmente, mas deve ser levada ao Quilombo, discutida coletivamente a todo o tempo. Talvez, não consigamos ignorar essa polarização entre direita e esquerda, mas precisamos lidar com ela com estratégia. Todos os partidos possuem seus programas eleitorais e objetivos a serem alcançados. Tenhamos também os nossos e, ao lidarmos com estes partidos, sejamos firmes e estratégicos, levando-os a aderir ao que for conveniente à emancipação e autonomia do nosso povo. Não sejamos ingênuos, nossa vida e as vidas dos nossos dependem disso! Antes de optar pela esquerda ou pela direita, estejamos de pé, vivos e unidos!
Sobre o autor: Jeferson Rodrigues é cria do Complexo do Alemão, de 34 anos. Se formou professor de geografia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e é especialista em Administração Pública pelo CEPERJ. Usa suas redes sociais para falar sobre a questão racial e a espiritualidade. Mantém o canal Dide no YouTube onde dialoga sobre a questão racial entre integrantes das religiões de matriz afro-brasileira.
Sobre a artista: Lorena Portela é artista plástica, engenheira ambiental e doutoranda em saúde pública (ENSP/FIOCRUZ). Sua pesquisa no campo da saúde e das artes visuais dialoga com as questões socioambientais e a afirmação da agroecologia como prática de emancipação.
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