Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria, com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre impactos climáticos e ação afirmativa nas favelas cariocas e de uma parceria com Núcleo de Estudos Críticos em Linguagem, Educação e Sociedade (NECLES), da UFF, para produzir matérias que serão utilizadas como recursos pedagógicos em escolas públicas de Niterói.
O corpo brasileiro em vulnerabilidade econômica está sempre em movimento. Por ser a engrenagem que faz a economia do Brasil girar, segue sempre em movimento para tentar acessar direitos básicos que esse país tem dificuldade a oferecer. Esse corpo, quando é negro ou indígena, tem suas possibilidades de vida e bem-estar ainda mais questionadas. No ano em que celebramos o bicentenário da independência da nação, esses corpos que ainda não são plenamente livres e vivem constantemente o paradoxo do não-lugar enfrentarão a revisão na Lei Federal de Cotas (12.711/2012), que completa uma década, após ser sancionada pela então Presidenta Dilma Rousseff. A lei marca a histórica luta do movimento negro e do movimento estudantil, e como previsto em seu artigo 7º, poderá ser revisada no Congresso Nacional nos próximos meses.
Antes de 2012, algumas universidades já haviam instituído políticas de ações afirmativas em seu quadro de vagas. Mas foi somente com a aprovação da Lei de Cotas, que essas políticas afirmativas foram, de fato, institucionalizadas no sistema de entrada ao ensino superior público. Destinando 50% das vagas nas universidades federais aos estudantes que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas, levando também em conta os recortes de renda, raça e deficiência, com a Lei 13.409/2016 as ações afirmativas possibilitaram que os filhos de muitas empregadas domésticas ocupassem as mesmas cadeiras na sala de aula que os filhos de seus patrões. Essa é a realidade ilustrada no filme Que Horas Ela Volta?, escrito e dirigido por Anna Muylaert.
Quando debatemos políticas de ações afirmativas estamos revendo ao vivo, em cenas e cores, um passado que contém acúmulos de desigualdades sociais que reafirmam a falta de garantia de oportunidades para negros, desde políticas migratórias brasileiras do século XIX, cujo o principal objetivo era o “branqueamento” da população. Quando pensamos na possível revisão da Lei de Cotas, num governo em que o presidente, declaradamente, se diz contra a lei e insinua que português nem pisou na África, percebemos que os avanços significativos e crescentes continuam precarizados. A partir desse discurso é alargada a fenda do racismo institucional, que mantém pessoas negras em ciclos de pobreza e sem possibilidades outras.
“Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, dor e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o ‘paiz’ dos políticos açambarcadores.” — Carolina Maria de Jesus
Como bem disse Carolina Maria de Jesus, em seu livro Quarto de Despejo: Diário de uma favelada, só nega acesso à educação e mudança do ciclo social, quem sempre desfrutou da mesma a vida inteira. Ao contrário disso, aquele que foi o primeiro da família a entrar numa universidade, luta para que outros parecidos com ele consigam fazer o mesmo movimento. E como toda política pública precisa de tempo para sua maturação, em 2018, vimos pela primeira vez o número de discentes negras e negros nas universidade públicas, alcançando a maioria das matrículas: cerca de 50,3%, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nos dados informativos do relatório Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil.
Por Que a Lei de Cotas Precisará Ser Revisitada?
As políticas de ações afirmativas, como qualquer política pública, precisam ser estudadas ao longo do tempo, para possibilitar que os resultados sejam vistos, aprimorados e ampliados, visando sempre uma melhoria de sua efetividade e a redução das desigualdades sociais. Ao longo desses dez anos das cotas nas universidades públicas já é possível observar um movimento significativo. Além de mais chances para esses jovens entrarem no mercado de trabalho, criam-se, também, oportunidades para que eles construam sua teia de capital social, rompendo com diversos ciclos históricos de desigualdades.
Prevista no artigo 7º, a revisão do programa especial para o acesso às instituições de educação superior é uma possibilidade, mas não é obrigatoriedade. Elas permanecerão em vigor se nada for feito. Entretanto, discussões para reforma da legislação podem ser iniciadas por qualquer membro ou comissão da Câmara dos Deputados ou do Senado no Congresso Nacional, pelo presidente da República, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pelos tribunais superiores, pelo procurador-geral da República e pelos cidadãos (neste último caso, subscrito por 1% do eleitorado nacional, distribuído por pelo menos cinco estados com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um deles). De toda forma, a lei não detalha como se dará esse processo e nem qual o procedimento a ser seguido.
Como sabemos, as ações afirmativas são medidas pensadas para atuarem numa temporariedade, mas o espaço de tempo que tivemos até hoje foi muito curto. Numa síntese: o Brasil teve muito mais tempo para destruir realidades do que reparar historicamente as mesmas. Sendo assim, a revisão da lei precisa ser uma oportunidade para aperfeiçoar a política, e não retroceder. As falas e os posicionamentos controversos do Presidente Jair Bolsonaro e de membros do seu governo representam um risco à lei, que possibilitou a ascensão econômica de muitas pessoas através da educação. O acesso à universidade, para muitos, foi e é uma forma de emancipação e projeção de possibilidades para o seu ciclo. Restringir o acesso é reforçar exclusões.
Por Que Defender as Cotas Sociais e Raciais?
Ao defender as políticas afirmativas, garantimos que o acesso daqueles que estão à margem, exista. O Núcleo Independente e Comunitário de Aprendizagem, o NICA, é um projeto de educação antirracista, multicultural e democrático, voltado para a população de baixa renda, principalmente moradora de favela e negra. O projeto funciona no Jacarezinho, Zona Norte, e parte da compreensão que a educação é a principal ferramenta de mobilidade social e de construção para uma sociedade com igualdade de oportunidades e justiça social para jovens e adultos, negras e negros de favelas e periferias.
Leonardo Soares, historiador e professor do projeto, conta que o apoio aos estudantes passa, também, por ajudá-los a compreender e a acessar oportunidades e direitos. Ele evidencia a importância das cotas para esses alunos que tipicamente estão tendo contato com um edital de ingresso pela primeira vez na história de suas famílias. “Depois que eu entrei na universidade eu pude entender tudo aquilo que a minha mãe não conseguiu me explicar com palavras bonitas, mas que ela me dizia no jeito dela, que quando a gente tem direito, a gente precisa usufruir desse direito porque ele não foi dado por bondade ou de graça: ele foi conquistado. Hoje em dia sou um facilitador dos ingressos dos alunos pretos e em vulnerabilidade social na UERJ, principalmente. Então eu pego o edital, vejo os principais pontos, ajudo caso a caso, entendendo as dificuldades, os acessos a documentação e tudo mais.”
Perguntado se os seus alunos no NICA entendem que as cotas são um direito deles ou um caminho que precisa ainda ser trabalhado e discutido em sala de aula, Leonardo respondeu: “É preciso realizar um bom trabalho de base. Alguns deles chegam no pré-vestibular social sem saber direito o que é o vestibular ou como funciona. Evidentemente, o público é bem diverso. Existem alunos favelados com múltiplos acessos, histórias, mas que também são perpassados por esse discurso do mérito e da democracia racial. Então, o nosso trabalho tem sido o de demonstrar que as cotas não são um atestado de incapacidade individual, mas de reparação do Estado. Ou seja, resolver um problema de oportunidade, desigualdade social, de classe e principalmente racial.”
Por isso, junto de seus companheiros o Leonardo realiza um projeto que carrega o nome de Enedina Alves Marques, voltado para empoderar, prestar consultoria, e auxiliar alunos com a documentação e suporte técnico necessários para conquistar a universidade. Aulas do projeto incluem a história das cotas e o grupo recebe palestras como do coletivo negro de Direito da UERJ Patrice Lumumba, e rodas de conversa com o coletivo ‘Favelaterapia’ enfocando no suporte emocional e psicológico, “justamente para instruir acerca dos direitos, e para que os alunos possam ter noções das ferramentas de recurso, em caso de indeferimento…[e] para optar pelas cotas sem se sentir inferiorizado”, explica Leonardo.
No fim, esse corpo brasileiro que se movimenta jamais irá retroceder. O movimento é contínuo e sempre em busca de medidas e possibilidades para que outros também possam ultrapassar os não-lugares. São necessárias políticas públicas para aqueles que já nasceram em desvantagem. A história do Brasil nasce a partir da usurpação de memória e riqueza de um povo, que sequer era reconhecido como civilização. Precisamos todos termos acesso aos espaços de poder e autonomia que os grupos citados acima, ainda têm dificuldades de acessar. O antropólogo francês, Marc Augé, na construção do conceito diz que o não-lugar é onde “todos nós temos a impressão de estarmos sendo colonizados, mas sem que saibamos ao certo por quem”. No Brasil, sempre soubemos quem colonizou, quem se beneficiou e conhecemos, ainda mais, aqueles que lutam hoje pelos direitos básicos, como o acesso à graduação.
Sobre o autor: Cleyton Santanna é jornalista e roteirista, formado pela UFRRJ e pela CriaAtivo Film School. Em seu canal no YouTube, discorre sobre curiosidades, ancestralidade e cultura afro-brasileira. Em 2017, produziu dois documentários, “Entre Negros” e “Tudo Vai Ficar Bem”, e em 2018, foi premiado como roteirista, com o curta-metragem “Vandinho”, pela Creative Economy Network. Atualmente, atua como comunicador no Museu do Amanhã e é o apresentador do podcast Influência Negra.