Esta é a terceira matéria de uma série de quatro sobre a Coalizão Negra por Direitos e faz parte da série do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.
Você pode ainda não saber disso, mas se você é brasileiro e, principalmente, se você faz parte da população negra de renda baixa no Brasil, nos últimos três anos, o movimento da Coalizão Negra Por Direitos, atravessou as principais pautas políticas com a intenção de influenciar o seu cotidiano, especialmente, durante a pandemia da Covid-19. Nos últimos três anos, a organização vem pautando o debate racial nas ruas e nas redes, por dentro da mídia e dos espaços de poder, buscando tornar visível a necropolítica brasileira.
Por isso, ao longo de um ano acompanhamos a Coalizão Negra por Direitos, que reúne atualmente 250 organizações do movimento negro e que, em 2021, consolidou-se como um dos maiores movimentos sociais do Brasil.
Em um país politicamente polarizado entre a esquerda e a extrema-direita—onde a extrema-direita venceu as eleições de 2018 e alcançou a cadeira da Presidência da República—a Coalizão Negra Por Direitos, surge como uma ação de resistência coletiva e antirracista em defesa da vida. Sobretudo, para disputar um projeto de país que tenha a cara e a cor do seu povo. Afinal, negras e negros somam-se 56% da população, de acordo com o IBGE.
A pactuação de coletivos, grupos e organizações integrantes do movimento negro brasileiro neste momento político está diretamente ligada a uma resposta à eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. Desde a campanha eleitoral quando ainda era candidato, ele já afirmava ser defensor da retirada de direitos sociais e políticas afirmativas para as minorias, incluindo a população negra. Apesar de congregar a maior parte da população do país, negros e pardos são sub-representados na política, em todos as instâncias dos Três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.
“A História exige da população negra brasileira e de toda a diáspora africana, ações articuladas para o enfrentamento ao racismo, ao genocídio e às desigualdades, injustiças e violências derivadas desta realidade. Esta Coalizão se reúne para fazer incidência política em nosso próprio nome, a partir dos valores da colaboração, ancestralidade, circularidade, partilha do axé (força de vida herdada e transmitida), oralidade, transparência, autocuidado, solidariedade, coletivismo, memória, reconhecimento e respeito às diferenças, horizontalidade e amor. Em defesa da vida, do bem-viver e de direitos arduamente conquistados, irrenunciáveis e inegociáveis, seguiremos honrando nossas e nossos ancestrais, unificando em luta toda a população afro-diaspórica, por um futuro livre de racismo e de todas as opressões.” — Carta Proposta da Coalizão Negra.
A Coalizão Negra Por Direitos se autodefine como uma aliança de entidades do movimento negro de todo o país para realizar incidência política no Congresso Nacional e em fóruns internacionais. Com 25 princípios orientadores, já surgiu grande com a participação de 100 organizações do movimento negro, mas nos dois últimos anos cresceu em números—de 100 passou a ter 250 organizações pactuadas—e avançou em representação e legitimidade política.
Entre os dias 1-3 de dezembro, após quase dois anos de pandemia da Covid-19, os grupos, coletivos e organizações integrantes, reuniram-se para realizar um encontro nacional intitulado “Enquanto Houver Racismo, Não Haverá Democracia“—nome do principal manifesto e campanha da Coalizão Negra Por Direitos, lançado em 14 de junho de 2020, em meio a pandemia.
Realizado em formato híbrido, na cidade de Olinda, Pernambuco, o encontro nacional recebeu lideranças de organizações de todo o país e parlamentares de diferentes partidos para fazer uma análise de conjuntura e discutir a agenda de demandas, proposições e estratégias de incidência rumo às eleições de 2022. Teve participação presencial de cerca de 100 pessoas e com transmissão online para membros das organizações e convidados.
Ingrid Farias, da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFABR), reforçou a importância da construção afetiva do processo político: “Política para nós, é o afeto. Nós temos um outro referencial de outro tipo de política. Nós temos um projeto político de país”. Parte das estratégias da Coalizão a ampliação da presença do movimento negro nos espaços da política institucional, garantindo representação e representatividade na agenda política brasileira.
Dez dias antes do encontro nacional, em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, a Coalizão Negra Por Direitos em conjunto com a Campanha Nacional Fora Bolsonaro, a Central de Mídia das Frentes Brasil Popular, Convergência Negra e a Frente Povo Sem Medo, unificaram a tradicional Marcha da Consciência Negra e tomaram as ruas do país com o mote #ForaBolsonaroRacista pelos 50 anos do Dia da Consciência Negro. A data marca desde 1971, a morte de Zumbi dos Palmares, que se tornou símbolo da busca por justiça e da celebração da vida do povo negro brasileiro. No total, foram realizados 118 atos em 110 cidades e 10 países em todo o Brasil e no Exterior.
No Rio de Janeiro, a marcha aconteceu nas ruas de Madureira, às 13h, reunindo ativistas, centrais sindicais, partidos políticos, organizações sociais do movimento negro e de favelas, além de parlamentares. A marcha parou a principal rua do centro comercial, a Estrada do Portela.
Ivanir dos Santos, 67 anos, babalaô—sacerdote no Candomblé dedicado ao Culto de Ifá—conhecido por sua luta por direitos civis, com especial atenção às religiões de matriz africana, destacou que é preciso combater o racismo para alterar a realidade econômica da população negra.
“Aqui [Madureira] é nosso lugar e das nossas resistências culturais e da perpetuação das nossas identidades. É o lugar da quadra do Império Serrado, da Serrinha, da Portela, mas, sobretudo, é o lugar onde você tem, ao longo da via que estamos percorrendo, os negros trabalhando no mercado informal como camelôs. Dialogar com a nossa população é essencial para combatermos o fascismo, o racismo e mudar essa situação econômica, pois se não enfrentarmos o racismo, seguiremos como as principais vítimas dessa encruzilhada social e econômica, tirando das ruas nosso sustento sem direitos”.
Representação Política Dentro e Fora do Brasil
A Coalizão Negra tem como tática fazer pressão política sobre o Congresso Nacional e o Senado, além de mobilizar e denunciar o Estado Brasileiro em organismos internacionais na Europa e Estados Unidos. Em outubro de 2021, a Coalizão denunciou o racismo estrutural brasileiro e as ações contra a população negra do governo de Jair Bolsonaro na comissão do Senado dos Estados Unidos, contribuindo efetivamente para a comissão vetar o uso de verbas do governo norte-americano para retirar cerca de 800 famílias quilombolas do território de Alcântara, no Maranhão. O Estado Brasileiro receberia dos EUA até R$10 bilhões por ano para permitir que o território fosse acessado apenas por norte-americanos para realização de testes aeroespaciais.
A partir dessa estratégia, a Coalizão tem uma frente ativa de incidência internacional que participa de audiências e reuniões com representantes das Organização dos Estados Americanos (OEA), Organização das Nações Unidas (ONU), e Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Também está articulada com o movimento negro norte-americano Black Lives Matter, criado por três mulheres negras que se tornou um um dos movimentos mais respeitados na luta contra o racismo no mundo.
Na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP26), a Coalizão Negra teve participação histórica com 20 ativistas, sendo a organização brasileira que pautou o debate sobre o combate ao racismo ambiental, denunciando que “debater justiça climática sem combater as desigualdades raciais é colonialismo“.
Necropolítica à Moda Brasileira
Desde o início da pandemia, a Coalizão Negra Por Direitos trouxe à tona o debate racial para discussões sobre políticas públicas emergenciais de enfrentamento à crise sanitária denunciando a ação genocida do governo federal. No final de 2020, a pressão de movimentos sociais, dentre eles, a Coalizão, fez com que o Ministério da Saúde incluísse a informação sobre raça e cor nos boletins epidemiológicos. Também reivindicou o auxílio emergencial no valor de R$600.
No Brasil, o acúmulo de racismo, desigualdades sociais, acesso desigual a sistemas de saúde, moradia inadequada e a impossibilidade de se isolar, colocaram a população negra como a mais vulnerável na pandemia. Além disso, é majoritariamente a população negra que trabalha em ocupações diretamente ligadas a cadeia de distribuição de alimentos e prestação de serviços de entrega, entre outros.
Em 18 de fevereiro de 2021, integrantes da Coalizão percorreram os corredores das casas legislativas em todos os 27 estados brasileiros e no Congresso Nacional, reivindicando que o governo federal prorrogasse a política do auxílio emergencial até o fim da pandemia da Covid-19, com parcelas de ao menos R$600. No mesmo período, também houve atos de protesto em todo o país exigindo que fossem garantidas vacinas de imunização da Covid-19 para todas e todos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Enquanto ação prática direta no enfrentamento a pandemia, a Coalizão Negra, lançou a campanha “Se Tem Gente com Fome, Dá de Comer“, mapeando em conjunto com outras organizações mais de 200.000 famílias em situação de vulnerabilidade social em bairros, favelas e quilombos nas 27 unidades federativas do país. A distribuição das doações é feita através da compra de insumos alimentícios (cesta básica) no valor de R$200.
De acordo com a FGV Social, quase 28 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza no Brasil. Em 2019, antes da pandemia da Covid-19, eram pouco mais de 23 milhões.
A campanha teve adesão da artista norte-americana Beyoncé que, através do perfil do projeto social BeyGood no Instagram, divulgou a campanha com grito de luta: “Brazilian Lives Matter” (Vidas Brasileiras Importam).
Em agosto de 2020, pela primeira vez na história brasileira, o movimento negro pediu o impeachment de um presidente da República. Assinado pela Coalizão Negra Por Direitos, com apoio de mais de 600 organizações da sociedade civil, o 53º pedido de impeachment contra o Presidente da República Jair Bolsonaro, na Câmara Federal, foi protocolado na data em que o Brasil atingiu a marca de 100.000 mortos por Covid-19. Um ano após o pedido de impeachment, o número de mortos por Covid-19 se multiplicou seis vezes, chegando a mais de 600.000 mortos, em outubro de 2021.
Ao todo, de acordo com o levantamento da Agência Pública, mais de 1.550 pessoas e mais de 550 organizações assinaram pedidos de impeachment contra o Presidente Jair Bolsonaro. Foram enviados 143 documentos ao presidente da Câmara dos Deputados, sendo 89 pedidos originais, 7 aditamentos e 47 pedidos duplicados. Até agora, apenas sete pedidos foram arquivados ou desconsiderados. Os outros 136 aguardam análise. Entre eles está o pedido da Coalizão Negra.
A plataforma “Quilombolas contra Racistas” listou 55 declarações racistas de autoridades públicas entre 2019 e 2020. A maioria da lista é integrada por falas de Bolsonaro e de integrantes de seu governo. Conforme a Lei nº 7716/1989, “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” é crime inafiançável no Brasil, com pena de um a três anos de reclusão.
Em 14 de outubro, a Coalizão Negra entrou com pedido de indiciamento de Jair Bolsonaro na Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, por genocídio. O pedido não foi aceito e o termo ficou fora do relatório final divulgado em outubro. Porém, o dossiê Genocídio Negro entregue a CPI traz evidências de como a gestão da pandemia foi “negligente e criminosa”. Também denuncia que a pandemia foi um dos “instrumentos mais eficazes no processo de genocídio negro em curso no país, ao qual está submetida a população negra brasileira”.
Sobre a autora: Tatiana Lima é jornalista e comunicadora popular de coração. Feminista negra, integrante do Grupo de Pesquisa Pesquisadores Em Movimento do Complexo do Alemão, atua como repórter e gerenciadora de Redes do RioOnWatch. Cria de favela, negra de pele clara, mora no asfalto periférico do subúrbio do Rio e é doutoranda em comunicação pela UFF.
Sobre a artista: Raquel Batista é artista visual e trabalha como fotógrafa e ilustradora. É estudante na Escola de Belas Artes da UFRJ, mulher negra e moradora da Zona Oeste do Rio.
Esta é a terceira matéria de uma série de quatro sobre a Coalizão Negra por Direitos e faz parte da série do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.