Leia a matéria original por Aaron Fernando, em inglês, no site da Shareable aqui. O RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país que nem sempre são cobertos no Brasil.
É comum sentir um profundo senso de injustiça pelo que aconteceu na história e ter fome de criar um futuro melhor fazendo um bom trabalho hoje. Mas como é um futuro melhor? Em uma economia e um sistema legal repletos de injustiças estruturais, como grupos de pessoas constroem um mundo melhor?
Nas terras comumente chamadas de Humboldt, na Califórnia, a Tribo Wiyot e as organizações de colonos ocupantes estão trabalhando juntas para fazer isso. Na interseção da justiça fundiária, da justiça linguística e da restauração ecológica, eles estão criando uma estrutura legal sobre como devolver a terra às Primeiras Nações para que a cura da e na terra possa ocorrer.
Para tanto, a Tribo Wiyot e a Cooperação Humboldt estão trabalhando juntas para formar um Termo Territorial Coletivo (TTC), o Dishgamu Humboldt, o primeiro de seu tipo, para assegurar estruturalmente que a tribo Wiyot mantenha o poder de tomada de decisão em relação a esse TTC, para sempre.
Um TTC Liderado por Indígenas
A propriedade é normalmente considerada um “pacote de direitos” que define quem pode usar ou alterar um espaço determinado. Um TTC separa legal e financeiramente os dois conjuntos de direitos de propriedades sobre os quais em geral pensamos de forma conjunta: a propriedade das construções e a propriedade da terra em que estão essas construções.
Sob um TTC, construções podem ser compradas e vendidas com base em seus valores. A diferença é que o terreno sob essas construções é mantido por um tipo de organização sem fins lucrativos, perpetuamente—o que é o mais próximo possível de “para sempre” em termos legais. Dessa forma, o valor financeiro do terreno é separado das construções, efetivamente “des-mercantilizando” o terreno e evitando que seja comprado por quem o vê apenas como um ativo financeiro.
Como outras organizações sem fins lucrativos, um TTC é governado por um conselho, que, neste caso, garante que o controle do uso da terra permaneça nas mãos dos Wiyot. O primeiro deste tipo, esse TTC assegura uma maioria tribal em sua própria estrutura: quatro dos sete membros do conselho sempre serão indicados pelo Conselho Tribal Wiyot. O Dishgamu não existirá apenas para manter e administrar terras; também aspira a fomentar empreendimentos cooperativos e a economia solidária. “Não estamos apenas visando a projetos. Os projetos são os tijolos realizar [muito mais]. Estamos comprometidos a realmente re-indigenizar esse lugar”, afirma David Cobb, advogado, ativista e ex-candidato presidencial do Partido Verde. David tem trabalhado em estreita colaboração com a administradora tribal de Wiyot, Michelle Vassel, na formação do TTC.
David também faz parte do conselho da Cooperação Humboldt, uma organização de economia solidária que paga uma taxa de honra (1% de sua receita anual) à Tribo Wiyot como uma forma tangível de honrar a soberania das Nações Nativas em cujas terras operam.
Cura Lenta e Constante
Como tudo o que é pioneiro, como reformular as estruturas jurídicas nem sempre é algo bem claro. “Uma das coisas com as quais estamos lutando é para [formar o TTC] de acordo com a lei indígena em vez de sob a lei do estado da Califórnia”, afirma David. “Isso fica muito complicado porque existem todos os tipos de questões ou conflitos de jurisdição.”
“Não estamos apenas visando a projetos. Os projetos são os tijolos realizar [muito mais]. Estamos comprometidos a realmente re-indigenizar esse lugar.” — David Cobb
O processo de re-indigenização da terra e cura também não tem sido rápido. Em um webinário, Michelle deu um panorama de lutas de décadas para recuperar a terra. Nos anos 1970, um líder tribal solicitou o retorno das terras, mas a prefeitura negou. Cerca de duas décadas depois, outra líder tribal e três parceiros começaram a fazer vigílias à luz de velas, em homenagem à sagrada Cerimônia de Renovação Mundial da Tribo Wiyot.
Isso porque a Ilha Tuluwat—da qual grande parte passou a ser propriedade da cidade de Eureka—foi o local de um massacre brutal de mulheres e crianças indígenas nas mãos de colonos brancos em 1860. Ocorreu durante a Cerimônia de Renovação Mundial de Wiyot, e a ilha era, e ainda é, sagrada para os Wiyot. Na década de 1990, as vigílias começaram, permitindo que indígenas e colonos chegassem a um acordo em relação a essa história. “Foi nessas vigílias que uma verdadeira mudança começou a acontecer em nossa comunidade, porque não eram apenas os habitantes de Wiyot, não eram apenas os indígenas. Eram também pessoas de toda Eureka e de todo o Condado de Humboldt”, explica Michelle. “Pudemos nos reunir nesse espaço à noite, à luz de velas, e olhar a história nos olhos.” As vigílias continuaram por mais 20 anos.
Muitos anos depois, a tribo arrecadou R$1,35 milhão (ou $200.000 dólares) para comprar 1,5 hectares na Ilha de Tuluwat. A área estava degradada ambientalmente quando eles a compraram, então começaram a restaurar a ilha, removendo lixo, entulhos e produtos químicos perigosos; em seguida, remediaram o solo, obtendo a aprovação da Agência de Proteção Ambiental para a habitabilidade humana. “Nós passamos quatorze dias fazendo aquele trabalho. Começou com muitas pessoas que participaram de nossas vigílias”, explicou Michelle.
“Nossa líder da tribo, em 2004, voltou para a cidade de Eureka e fez um pedido para transferir aquela terra para a tribo. Naquele momento, em 2004, a prefeitura de Eureka aprovou o pedido unanimemente”, acrescentou Michelle. Foi a primeira vez que um município devolveu terras sem ser legalmente obrigado a fazê-lo, em grande parte porque a prefeitura havia entendido o benefício mútuo de devolver as terras e da restauração ecológica.
Em 2019, a prefeitura de Eureka devolveu 200 acres adicionais de terra na Ilha Tuluwat aos Wiyot, marcando a primeira vez na história dos EUA em que uma prefeitura devolveu a terra a uma tribo sem absolutamente nenhuma determinação legal.
Construindo um Novo Mundo Dentro da Casca do Velho
Dishgamu Humboldt, com sua estrutura de conselho liderada por indígenas, pode ser capaz de promover o mesmo espírito de cooperação entre colonos e povos indígenas. Usando as estruturas legais existentes para delinear como fazer algo radical—devolver a terra—essa ação pode ser replicada por muitos outros de costa a costa. Uma característica importante desse TTC é que ele poderá aceitar doações de terras, permitindo que as tribos recuperem gradativamente o território que lhes foi tirado. Uma vez que a principal inovação do Dishgamu é sua estrutura, seus fundadores a veem como pioneira, com a qual outros podem aprender. “Estamos fazendo projetos apenas no Território Wiyot”, diz David, explicando que Dishgamu se recusará a assumir projetos de desenvolvimento em áreas historicamente administradas por outras tribos. “Mas o que vamos fazer é ajudar outros grupos e outras entidades a replicar esse modelo.
“Usando as estruturas legais existentes para delinear como fazer algo radical—devolver a terra—essa ação pode ser replicada por muitos outros de costa a costa.”
Embora muitos saibam como a terra indígena foi roubada por meio da violência ou pela assinatura de centenas de tratados pelo governo federal com as nações indígenas, deixando de honrar a maioria deles, alguns estão menos familiarizados com a forma como ela também foi roubada por meio de trapaças legais e comprometimento das finanças de membros de nações indígenas para que fossem obrigados a vender suas terras.
A Lei Dawes de 1887 deu início à política de distribuição que dividia as reservas em parcelas menores e transferia a propriedade para indígenas individualmente, em vez de para tribos com terras em comum. Essas parcelas foram então tributadas, cortadas em pedaços fisicamente díspares e declaradas “excedentes”, permitindo que os colonos brancos comprassem, ocupassem e reivindicassem as terras quando os indígenas não conseguissem acessá-las. Esse processo resultou na perda de aproximadamente 90 milhões de acres de terra tribal.
Essa política de roubo de terras com base na lei continuou até 1953, quando o governo federal começou a encerrar o status de reconhecimento federal de muitas tribos. Justificando a ação como uma forma de assimilar os indígenas americanos à sociedade dos colonos, um resultado real das políticas de rescisão foi a remoção do status de proteção de mais de um milhão de acres de terras indígenas. Isso fez com que fosse significativamente mais fácil tirar a terra das mãos de indivíduos, do que de uma tribo reconhecida. Na verdade, isso era impossível antes, já que um caso da Suprema Corte determinou que indivíduos privados eram proibidos de comprar terras de tribos reconhecidas pelo governo federal. Com a dissolução do reconhecimento federal, os colonos puderam comprar ou tomar terras que antes não estavam disponíveis para venda.
Isso fez com que os Wiyot perdessem seu status de tribo reconhecida em 1961. Depois de processar o governo federal por rescisão ilegal, os Wiyot venceram e tiveram seu status restaurado—20 anos depois.
Nos últimos séculos, as ferramentas legais foram repetidamente empregadas para transferir a propriedade da terra aos colonos. Hoje, Dishgamu Humboldt está usando estruturas legais semelhantes para transferir terras de volta às tribos. O TTC devolve a terra à propriedade da comunidade e à administração comunitária.
De acordo com David, “você tem que construir a nova sociedade dentro da casca da velha”, e Dishgamu Humboldt pode oferecer um projeto de como um mundo melhor—aquele que está nascendo—pode ser. Enquanto partes do mundo inundam e queimam, talvez projetos como esse possam nos mostrar como a terra e as pessoas podem se curar das feridas do passado e fazer crescer um futuro melhor, juntos.