Seja anônimo, ativista, jogador de futebol ou artista, nas ruas e nas plataformas digitais, o sentimento reverberado é um só: #JustiçaParaMoïse. O assassinato do jovem refugiado congolês no seu local de trabalho, o Quiosque Tropicália, na Praia da Barra da Tijuca, trouxe grande indignação e comoção. A hashtag foi um dos assuntos mais comentados nas redes sociais nos últimos dias.
No dia 24 de janeiro, Moïse Mugenyi Kabagambe, 24 anos, foi imobilizado e espancado até a morte no quiosque em que trabalhava, o Tropicália, no Posto 8 da Barra da Tijuca. Os assassinos de Moïse são Alesson Cristiano de Oliveira Fonseca, o Dezenove; Brendon Alexander Luz da Silva, o Totta; e Fábio Pirineus da Silva, o Belo. Os três homens também trabalhavam nas redondezas: dois em barracas da praia da Barra e outro, o Totta, um lutador de Jiu-jitsu, como cozinheiro do quiosque ao lado do Tropicália, o Quiosque do Biruta.
Conforme relatou sua família, Moïse foi assassinado após ter ido cobrar o pagamento de seu salário, que estava atrasado. A cobrança era referente a duas diárias trabalhadas no Quiosque Tropicália, o equivalente a R$200. O proprietário do quiosque, Carlos Fábio da Silva, prestou depoimento à Polícia Civil em primeiro de fevereiro, onde negou dever dinheiro a Moïse, mas confirmou que o jovem às vezes trabalhava como diarista no Tropicália.
O caso é mais um que escancara o pacote de violências sobre o qual o Brasil foi construído e consolidado: racismo, xenofobia, exploração e precarização do trabalho, além de violência contra o trabalhador. Os socos e pauladas que assassinaram Moïse eram a interseção disso tudo. Uma usuária anônima do Twitter expressou sua revolta:
Justiça por Moïse Kabamgabe, mais um jovem preto morto brutalmente em um país que replica os mesmos comportamentos desumanos e escravistas do passado, o país onde o preto vai atrás de seus direitos como trabalhador e não volta para casa. #justicaparaMoise #MoiseKabamgabe pic.twitter.com/z12RQ68Ud7
— kah • 📖: the love hypothesis (@kah_gms_) February 1, 2022
O jornalista Jairo Gonçalves questionou o papel da raça no assassinato de Moïse. Será que o mesmo aconteceria a um homem branco?
Alguém imagina isso acontecendo com uma pessoa branca? Teve as pernas e mãos amarradas e foi espancado até a morte. Racismo nunca deve ser relativizado. NUNCA! #JusticaparaMoise https://t.co/Fxrjgmqs0A
— Jairo Gonçalves 🌟 (@jairoo) January 30, 2022
Moïse, um Refugiado
A República Democrática do Congo, ou RDC, é o quarto maior país do continente africano em termos demográficos e possui inúmeras riquezas naturais, sendo o minério uma das mais conhecidas. A diversidade de metais como ouro, ferro, urânio e cobalto atrai interesses de potências mundiais, desde a colonização pelos belgas (1885-1960). Estes interesses geraram, ao longo da história do país, uma série de conflitos armados que marcaram o mundo.
O país foi palco dos maiores conflitos do continente, a Primeira Guerra do Congo (1996-1997) e a Segunda Guerra do Congo (1998-2003). Esta última matou cerca de 3,8 milhões de pessoas e foi a maior guerra na história moderna da África, o conflito armado com o maior número de mortos desde a Segunda Guerra Mundial. Por isso, é também chamada de Guerra Mundial Africana. Apesar de ter oficialmente acabado em 2003, a República Democrática do Congo segue tendo conflitos armados em determinadas províncias ao leste. Em 2020, segundo a ONU, ocorreram mais de 600 violações por mês, com pelo menos 200 execuções. Isso obriga milhões de famílias a buscarem refúgio em outras nações, como forma de escapar dos horrores da guerra.
Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), existem mais de 918.000 refugiados e solicitantes de asilo oriundos da RDC nos demais países africanos. Em conjunto, o ACNUR, a Organização Internacional para Migrações (OIM) e a Pares Cáritas-RJ divulgaram uma nota lamentando o assassinato de Moïse. No texto, as entidades afirmam que “receberam, com enorme consternação, a notícia da morte do refugiado congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, brutalmente espancado na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro”. Em outro trecho, as organizações declaram que o congolês “era uma pessoa muito querida por toda a equipe do Pares Cáritas RJ, que o viu crescer e se integrar”.
As equipes do ACNUR, @parescaritasrj e da @OIMBrasil receberam, com consternação, a notícia da morte do refugiado congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, brutalmente espancado na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro.
Mais informações: 👉 https://t.co/WAyWd4Fsqy pic.twitter.com/i2NXT8ca7I
— ACNUR, Agência da ONU para Refugiados (@ACNURBrasil) January 31, 2022
Moïse, cidadão congolês, tentou fugir da dura realidade de seu país se refugiando no Brasil. O que ele e sua família não esperavam é que aqui a realidade também seria muito dura para eles. Não imaginavam que ele poderia se tornar vítima da violência colonial racista em solo brasileiro.
Você vem para um país em busca de refúgio da guerra, mas acaba encontrando mais violência. Quatrocentos anos após a escravização e as narrativas se repetem. A pergunta é: até quando? #justicaparaMoise pic.twitter.com/Ai8vWxn8F4
— Quilombo Geek (@QuilomboGeek) February 2, 2022
A organização humanitária Médicos Sem Fronteiras atua na República Democrática do Congo desde 1981. No dia em que o caso de Moïse veio à tona, a entidade fez uma sequência de posts no Instagram sobre a realidade do país e dos refugiados congoleses, com o objetivo de aumentar a conscientização sobre as condições que geraram o refúgio de Moïse e de milhões de congoleses pelo mundo.
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No contexto do assassinato de Moïse, um relato que viralizou foi o do jornalista Caio Barreto, onde ele compartilhou que conheceu Moïse quando fez uma matéria sobre a vida dos congoleses no Rio. Isso fez ele se aproximar de um dos amigos de Moïse, Chadrac, e posteriormente dos outros que faziam parte do grupo de amigos. Caio revelou que, apesar de possuírem excelente formação, eles só conseguiam subempregos.
A coordenadora da Cáritas RJ, Aline Thuller, contou na época que empresários cariocas preferiam contratar imigrantes brancos, como os sírios. Congoleses, angolanos e haitianos só eram procurados p/ trabalho braçal – como carregar e descarregar caminhão de pedra, caso do Chadrac.
— Caio Barretto Briso (@caio_) February 1, 2022
Em outro tweet desse fio, Caio aponta falhas dos últimos governos de centro-esquerda e extrema-direita em editar políticas públicas que auxiliem esses imigrantes e refugiados negros e não-brancos. Ele aponta o racismo estrutural como responsável por essa situação.
A situação dos congoleses, angolanos e haitianos no Brasil é terrível e atravessa governos de centro-esquerda e extrema-direita de forma surpreendentemente parecida. O racismo estrutural bloqueia avanços profundos. Eles têm as nossas lágrimas, mas só podem contar com eles mesmos.
— Caio Barretto Briso (@caio_) February 1, 2022
Lamentando o assassinato de Moïse, o historiador Luiz Antônio Simas constatou a significativa relação histórica que o Rio de Janeiro e o Congo compartilham. Lembrou que um dos maiores patrimônios culturais do Rio e do Brasil é uma herança do Congo: o samba.
O Congo civilizou o Rio de Janeiro. O melhor que existe nessa cidade terrível e bela, filha da morte e da chibata, veio do Congo: samba. Caguem no mito de merda do carioquismo. A chance do Rio é se reconhecer como monumento do horror. E aí, quem sabe, o Congo nos redima.
— LUIZ ANTONIO SIMAS (@simas_luiz) February 1, 2022
Ativistas e Artistas Se Manifestam
A reação de ativistas e movimentos antirracistas também ecoou nas redes. Raull Santiago, articulador do Perifa Connection, em suas redes sociais, pediu perdão ao povo congolês.
Eu peço perdão e desejo os meus mais sinceros sentimentos ao povo da República Democrática do Congo, que teve um de seus filhos assassinados de forma covarde em meu país, onde veio em busca de dias melhores diante da guerra e da fome no Congo! 😣#JusticaPorMoiseMugenyi (+)
— #JustiçaParaMoise | Santiago, Raull. (@raullsantiago) February 1, 2022
A Coalizão Negra por Direitos apresentou, no dia 2 de fevereiro, denúncia sobre o crime contra Moïse para o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial da Organização das Nações Unidas (ONU), um documento que aponta os crimes de racismo e xenofobia contra Moïse.
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A classe artística também reagiu ao crime nas redes sociais. Cantores, atores, atletas e famosos se mostraram consternados com o ocorrido. A cantora Ludmilla se manifestou citando Elza Soares em seu tweet sobre Moïse.
Moïse Kabamgabe, um imigrante congolês que veio ao Brasil buscando refúgio e para tentar uma vida digna, foi amarrado, espancado e morto em seu local de trabalho apenas por cobrar seu salário atrasado. Mais uma vez a carne mais barata do mercado é a carne negra.#justicaparaMoise pic.twitter.com/YXE99pO2S1
— LUDMILLA 🤙🏾 (@Ludmilla) February 1, 2022
A sambista Teresa Cristina questionou as autoridades sobre o que está sendo feito para solucionar o caso e perguntou “Quem matou Moïse Kabagambe?”.
QUEM MATOU MOISE KABAGAMBE? QUAL O NOME DESSE ASSASSINO? O QUE OS GOVERNOS(MUNICIPAL, ESTADUAL E FEDERAL) ESTÃO FAZENDO PARA SOLUCIONAR ESSE CRIME E AMPARAR A ESSA FAMÍLIA?#justicaparaMoise pic.twitter.com/M0H0CzSY3m
— Teresa Cristina (@TeresaCristina) February 1, 2022
Caetano Veloso, um dos ícones do movimento musical da Tropicália, na década de 1960, usou suas redes para lamentar o assassinato. O cantor disse ter chorado pensando na violência feita contra o jovem refugiado e no fato do quiosque onde o crime ocorreu carregar o nome de seu histórico movimento.
Chorei hoje lendo sobre o assassinato de Moïse Mujenyi Kabagambe num quiosque na Barra da Tijuca. Que o nome do Quiosque seja Tropicália aprofunda, para mim, a dor de constatar que um refugiado da violência encontra violência no Brasil. pic.twitter.com/eKIHmYM0xj
— Caetano Veloso (@caetanoveloso) February 1, 2022
Moïse amava futebol e era conhecido por ser torcedor do Flamengo. Através de suas redes sociais, o clube prestou solidariedade à família e expressou consternação.
O Clube de Regatas do Flamengo lamenta imensamente a morte de Moïse Kabagambe e presta sua solidariedade à família do jovem congolês neste momento de total consternação. #CRF
🖤🙏🏿✊🏿— Flamengo (@Flamengo) February 1, 2022
Um dos principais jogadores do elenco rubro-negro, o atleta Gabigol falou que o Brasil não pode encarar fatos como esses de maneira normal e exigiu justiça.
Esse não é o Rio que aprendi a amar e que me recebeu de braços abertos!!! Queremos justiça, não podemos normalizar crimes como esse!! Que seja feita justiça a Moïse Mugenyi e toda sua família!! Estamos juntos de vocês!!! ✊🏾✊🏿 #JusticaPorMoiseMugenyi pic.twitter.com/nAiVTwepaE
— Gabi (@gabigol) February 1, 2022
A comoção dos jogadores ultrapassou fronteiras e o atacante brasileiro Antony, jogador do Ajax, clube da Holanda, e da Seleção Brasileira, também se manifestou em suas redes sociais em memória de Moïse. Após a partida Brasil x Paraguai, em primeiro de fevereiro, pelas Eliminatórias da Copa do Mundo, o jogador postou sua homenagem ao congolês.
Pra você, Moïse!! Nossos pensamentos com vc e sua família!! ✊🏿✊🏾 #JusticaPorMoiseMugenyi pic.twitter.com/LHtEsI5Bb6
— Antony Santos (@antony00) February 2, 2022
Últimos Desdobramentos
Em resposta ao caso ocorrido no Quiosque Tropicália, os vereadores Tarcísio Motta e Tainá de Paula anunciaram algumas medidas em suas redes. Tarcísio enviou um ofício à prefeitura do Rio e à concessionária Orla Rio, abrindo um processo administrativo para cassar a concessão do quiosque.
Quiosque é concessão pública! Enviamos ofícios à Prefeitura e Orla Rio demandando processo administrativo p/ cassação do funcionamento do Quiosque Tropicália. São graves os relatos de q a gerência estaria envolvida no assassinato de Moise Kabagambe. Isso demanda apuração urgente! pic.twitter.com/Np12Zjy6GC
— Tarcísio Motta (@MottaTarcisio) January 31, 2022
A vereadora Tainá também enviou um ofício à prefeitura, mas neste caso requisitando que a prefeitura solicite à polícia a quebra de sigilo da investigação e que garanta assistência à família.
A Constituição Federal e o Código de Processo Penal apresentam a possibilidade de sigilo em determinadas investigações, mas a repercussão desse caso pede a apuração pública: é recorrente que casos de racismo, mesmo os que têm como resultado a morte, não tenham solução.
— Tainá de Paula (@tainadepaularj) February 1, 2022
O que mais tem mobilizado as redes sociais são os atos que já aconteceram ou que acontecerão pedindo justiça por Moïse, por todo o país. O assassinato de Moïse foi tão brutal que, fora do Rio, outras cidades também confirmaram atos em solidariedade.
Em São Paulo, a concentração está marcada para sábado, dia 5 de fevereiro, às 10h, no Vão Livre do MASP, bem como em cidades do interior paulista como Araraquara, São José do Rio Preto e Pindamonhangaba, onde manifestações também estão agendadas para o mesmo dia e horário. No Rio Grande do Sul, o ato marcado é na cidade de Santa Maria. Já em Belo Horizonte, Minas Gerais, o ponto de encontro será a Praça Sete, tradicional reduto de protestos da capital mineira.
No Rio de Janeiro, cidade onde Moïse Mugenyi Kabagambe foi assassinado, o Ato Justiça por Moïse acontecerá neste sábado, 5 de fevereiro, às 10h da manhã, em frente ao Quiosque Tropicália, no Posto 8 da Praia da Barra da Tijuca, onde o jovem perdeu sua vida. A ação foi convocada pela família de Kabagambe e por movimentos negros.
Sobre o autor: Euro Mascarenhas Filho, jornalista, é colaborador do Núcleo Piratininga de Comunicação, comunicador popular, e autor do programa de podcast Antena Aberta.