Esta é a quarta matéria de uma série de quatro sobre a Coalizão Negra por Direitos. Esta matéria faz parte do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.
Pluralidade de Vozes e Trajetórias
Na contramão do pátrio poder e da representatividade política, a maioria da população brasileira é feminina: 52% da população. Considerados raça e gênero, as mulheres negras compõem cerca de 28% do Brasil, o que faz com que as mulheres negras sejam o maior grupo demográfico do país. Mulheres chefiam quase metade dos lares brasileiros, no entanto, das famílias com filhos chefiadas por mulheres negras, 63% estão abaixo da linha da pobreza, o que acontece a 39% das chefiadas por brancas. As negras são também as que mais sofrem com o desemprego. Segundo dados do Data Labe, mulheres negras tinham o dobro da taxa de desemprego de homens brancos no primeiro trimestre de 2021. Além disso, negras recebem salários menores que homens e mulheres brancos e que homens negros. O quadro é tão dramático que uma pesquisa do Instituto Insper apontou que mulheres negras com o mesmo nível de escolaridade e advindas das mesmas instituições de ensino que homens brancos chegam a receber 159% a menos que eles.
Apesar delas formarem a maioria populacional, mulheres negras são as que mais sofrem com a baixa representação política. A massa, as favelas e as periferias têm cor e gênero, assim como o desemprego, a negligência pública, o genocídio e a fome. O quadro político das mulheres negras no Brasil é de uma maioria sub-representada, mas apesar disso muitas delas estão na linha de frente da luta por direitos, na vanguarda das transformações.
É nesse cenário de luta de mulheres e homens negros pela vida que surge a Coalizão Negra por Direitos. Reunidos em coalizão, ativistas de centenas de organizações do movimento negro brasileiro, profissionais das mais diversas áreas da saúde, da educação, trabalhadoras domésticas, da construção civil, do samba, jovens de slams e de fluxos de funk, trabalhadores informais e de aplicativos, ativistas de favelas, lideranças religiosas como babalorixás e ialorixás, padres e pastores, além das populações quilombola, ribeirinha, camponesa, pescadora e LGBTQIA+ visam enraizar o antirracismo, aquilombando a política brasileira na luta por direitos.
Para retratar essa pluralidade, o RioOnWatch entrevistou nove vozes da Coalizão Negra com o objetivo de desenhar essa árvore de representação, representatividade e temporalidades da história do movimento negro brasileiro organizado. O RioOnWatch publicou parte dessas vozes em textos anteriores desta série e, nesta última reportagem, trazemos mais três entrevistadas, a quem perguntamos: “Qual é a sua voz dentro da Coalizão Negra por Direitos?”
Nestes depoimentos, Monica Oliveira, Sandra Maria Andrade e Maria José Menezes trazem uma síntese sobre o racismo estrutural no país, que levou à consolidação da Coalizão, e sobre como suas vozes unem passado e presente na construção de um futuro justo e democrático para o povo negro brasileiro.
“A Minha Voz É a Voz de Mais de 6 Milhões de Quilombolas”
Mineira, quilombola da Comunidade Carrapatos da Tabatinga, Sandra Maria da Silva Andrade tem mais de 20 anos de ativismo na causa quilombola e é uma das lideranças mais ativas em Minas Gerais, sendo uma das fundadoras da Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais “N’agolo“. Atualmente, é coordenadora executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Sandra, filha de Xangô, é filha de Dona Sebastiana Geralda, a reconhecida Mãe Tiana, importante liderança política e espiritual dos povos quilombolas.
“A minha voz dentro da Coalizão é a voz de mais de 6 milhões de quilombolas existentes nesse país, porque nós vivemos o racismo há 500 anos. Nesse momento a Coalizão vem para visibilizar essas vozes e, através dela, estamos divulgando para o mundo o racismo estrutural que sofremos dentro desse país. A necessidade de gritar e dar visibilidade à condição do racismo é porque o Brasil sempre divulgou para fora do país que aqui não existe racismo. Mas nós estamos provando hoje que isso não é verdade através de denúncias das violações de direitos, dando visibilidade a esse racismo velado que sempre existiu aqui. Nós nos unimos para ecoar a voz do povo negro.
O atual governo veio para retirar direitos duramente conquistados ao longo de anos. Em três meses, destruiu um trabalho de 24 anos desenvolvido pela CONAQ. Todos os órgãos que tinham competência para trabalhar com a população quilombola foram destituídos. O governo também vem incentivando a invasão de nossos territórios. Bolsonaro foi bem claro antes de ser eleito. Ele disse que não ia titular nenhuma terra para quilombolas e de fato vem cumprindo. Fala de nós quilombolas como animais em palestra e tem repetidas falas racistas. Sabíamos que íamos enfrentar uma luta dura, mas achávamos que através da Justiça poderíamos garantir a permanência de alguns direitos. Porém, com esse governo, nem a Justiça está conseguindo frear essas violações. A gente está por nossa conta… como a gente diz é ‘nós por nós‘.
A Coalizão Negra e a campanha ‘Enquanto Houver Racismo, Não Haverá Democracia‘, lançada em junho de 2020, vieram na hora exata e crucial para denunciar tudo isso. Essa luta não pode ser só nossa. A luta antirracista é da sociedade, que precisa abraçar essa luta. O racismo não parte de nós.”
“As Mulheres Negras, Mesmo Quando Não São Ativistas, Estão em Movimento”
Conhecida dentro do movimento negro carinhosamente como Zezé, a baiana Maria José Menezes é uma das grandes referências para as mulheres negras na luta por direitos e contra o racismo e o machismo. É candomblecista e formada em biologia. Foi uma das lideranças do Núcleo de Consciência Negra da USP, que protagonizou a luta por políticas públicas afirmativas dentro da USP. Hoje, participa da Coletiva MAHIN e é uma das organizadoras da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, representando a organização na operativa da Coalizão Negra Por Direitos.
“As mulheres negras, mesmo quando não são ativistas, estão em movimento. Não necessariamente você precisa estar em movimento organizado para lutar. Lendo a tese da Sueli Carneiro, por exemplo, aprendi que a criação do SUS teve participação e não existiria sem a luta das mulheres das periferias. E quem são essas mulheres? Somos nós, mulheres negras, que, sem nenhum tipo de assistência, lutamos por uma saúde pública universalizada. Portanto, valorizar as vozes das mulheres negras como sujeito é fundamental. Minha voz na Coalizão Negra é essa! É uma voz que pensa a periferia sob o olhar da mulher negra e a juventude dos centros urbanos, as principais vítimas de um país racista.
Ser mulher negra é ser uma potência e isso me orgulha muito. Estar na Coalizão Negra Por Direitos nesse lugar é viver num espaço de aprendizado e ter a minha voz ecoando a partir dessa ancestralidade do movimento das mulheres negras, que enfrentaram no passado e enfrentam ainda hoje a estrutura de um país comandado por segmentos da sociedade colonialista, que agem como se o país fosse um grande latifúndio. A branquitude desse país usufrui do capital, da força de trabalho e de direitos públicos que deveriam estar a serviço e em benefício de todos, sem desigualdade de acesso. É por isso que, com a Coalizão, a gente disputa narrativa e pergunta: ‘Que democracia é essa onde o racismo é agente principal?’ Essa pergunta…essa questão precisa ser enfrentada.
É um absurdo em um país como o nosso, onde o racismo gera desigualdades e assimetrias, ele não ser a pauta política principal, [sobretudo] quando você olha a sociedade brasileira e vê que todos os marcadores têm cor e gênero. A Coalizão vem no contexto dos ataques a direitos, do pacote de crimes do governo Bolsonaro e do fortalecimento do neofascismo, como uma resistência a esse quadro, pois nós sentimos que, com esse governo, nossas vidas, que já são vulnerabilizadas, estariam ainda mais em risco. A Coalizão é mais uma resposta e enfrentamento que o movimento negro faz dentre tantas [outras].
Importante dizer que o Movimento Negro Brasileiro sempre atua articulado e que existem muitas outras articulações de movimentos de mulheres negras e movimentos negros no país. A Coalizão Negra por Direitos é uma contribuição, é uma soma a todo um movimento negro que é composto de outros grupos e coletivos.”
“Falo Desse Lugar da Identidade Negra e Nordestina”
Nascida e criada em Recife, Monica Oliveira é ativista desde os 15 anos e está no movimento negro há mais de 30. Fez parte de diferentes organizações negras, do Movimento Negro Unificado ao Observatório Negro. É formada em comunicação social e, atualmente, é a coordenadora de finanças da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e membro da Rede de Mulheres Negras do Nordeste, representando esta rede na Coalizão Negra Por Direitos.
“Eu falo do lugar das mulheres negras nordestinas. Isso é uma afirmação importante porque o Brasil é esse país-continente e o racismo se reflete, inclusive, nas desigualdades regionais.
O Nordeste é a região mais negra do Brasil do ponto de vista da proporcionalidade. Eu falo do lugar das mulheres negras nordestinas, porque aquilo que se chama de interseccionalidade, que é esse modo de análise das desigualdades, para nós mulheres negras nordestinas, essa realidade é sentida no cotidiano que intersecciona diferentes realidades de discriminação: de raça, gênero e classe, mas também regional. Por isso, tantas vezes, tensionamos as relações com o Sul e o Sudeste para afirmar nossas posições políticas. Então, eu falo desse lugar de uma região que é muito empobrecida e explorada, mas também de uma região muito linda e que tem uma trajetória histórica de luta, onde existiu o Quilombo dos Palmares, onde se teve luta travada em quase 100 anos. Falo de uma cidade onde a cabeça de Zumbi dos Palmares foi fincada em frente a uma igreja. Falo desse lugar da identidade negra e nordestina.
O manifesto da Coalizão Negra ‘Enquanto Houver Racismo, Não Haverá Democracia‘ é um marco histórico de grande magnitude, tão importante quanto o manifesto do Movimento Negro Unificado, em 1978, quando o movimento negro cria uma organização em plena ditadura militar, que proibia de se falar de racismo no Brasil e que retirou o quesito cor, por exemplo, dos textos públicos. Apesar de mudanças e avanços que tivemos ao longo dos anos, a cruel desigualdade do racismo no Brasil, o abismo entre brancos e negros, não teve uma alteração significativa. Para além disso, o modelo de democracia que existe nesse país é de uma democracia inacabada, que nunca foi uma democracia plena onde todos pudessem participar das decisões do país. É isso que o manifesto e, sobretudo, a incidência política da Coalizão coloca na mesa: o racismo presente na nossa sociedade.
E não só para as forças políticas conservadoras, mas também para as forças progressistas, interpretadas como de esquerda, que, ao longo de anos, afirmam e concordam com o movimento negro de que o racismo é estruturante das desigualdades no Brasil, mas essa afirmação do antirracismo não se traduz como democracia, pois a população negra continua impedida de ocupar os espaços de decisão e poder. Então, essa afirmação do antirracismo [das forças progressistas] não tem se traduzido em atitudes, por exemplo, dentro dos partidos, programas e políticas públicas de governo com a esquerda no poder. E, enquanto a gente viver em uma sociedade extremamente racializada como é a brasileira, não é possível dizer que o Brasil é democrático. Ou o racismo é visto como estrutural de fato e, portanto, torna-se o pilar para o debate e construção de políticas para chegarmos a uma igualdade, ou então precisamos avaliar: que país é esse que estamos construindo? Essa democracia é para quem?
Nós do movimento negro não queremos e não vamos voltar para esse suposto normal do racismo, do patriarcado, do genocídio, da fome e da pobreza que existia antes da pandemia e que segue existindo… Estamos em um momento político que precisamos fazer rupturas justamente com a naturalização do racismo. E é agora porque estamos em uma situação limite e, para nós, não é possível mais que esse país siga vivendo com esse nível de conflito racial continuamente. A Coalizão não é algo novo e sim a continuidade dos movimentos negros anteriores, articulados, que disputam há anos um projeto político de país.”
Sobre a autora: Tatiana Lima é jornalista e comunicadora popular de coração. Feminista negra, integrante do Grupo de Pesquisa Pesquisadores Em Movimento do Complexo do Alemão, atua como repórter no RioOnWatch. Cria de favela, negra de pele clara, mora no asfalto periférico do subúrbio do Rio e é doutoranda em comunicação pela UFF.
Sobre o artista: David Amen é cria do Complexo do Alemão, co-fundador e produtor de comunicação do Instituto Raízes em Movimento, jornalista, grafiteiro e ilustrador.
Esta é a quarta matéria de uma série de quatro sobre a Coalizão Negra por Direitos. Esta matéria faz parte da série do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.