Pipas no Ar: Um Mergulho no Festival de Pipa do Morro do Turano

Organizadores do Festival de Pipas no Turano. Foto: João Fernando
Organizadores do Festival de Pipas no Turano. Foto: João Fernando

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Quem nunca viu e apreciou uma ou várias pipas voando no céu, fazendo movimentos leves e suaves como o dos pássaros? Tal imagem é algo muito comum no espaço aéreo do Rio, as pipas de cores variadas colorem o céu, misturando-se ao azul e branco das nuvens e fazendo parte da paisagem das favelas cariocas.

Nas favelas, soltar ou empinar pipa é uma das brincadeiras mais antigas e mais comuns entre crianças, e adultos também. Tais brincadeiras deram origem ao Festival de Pipas, promovido por um grupo de moradores do Morro do Turano, comunidade da Tijuca, na Zona Norte da cidade, que decidiu que o brinquedo seria o centro das atenções pelo menos um domingo a cada mês ou a cada dois meses, do início do dia até o anoitecer. Um dia inteiro dedicado ao resgate de uma das diversões mais apreciadas pela criançada.

O Festival de Pipas do Turano

A ideia surgiu numa conversa entre três moradores, “crias” da comunidade, com intuito de resgatar brincadeiras antigas que eram comuns dentro das favelas, resgatar uma brincadeira diferenciada e que eleva o sorriso das crianças, proporcionando outro aspecto do brincar que não seja apenas das diversões tecnológicas. Com a pipa como anfitriã, pipeiros do Morro do Turano, em parceria com pipeiros dos morros do Fallet e Fogueteiro, passaram então a realizar o festival, colocando o Morro do Turano no rol de festivais de pipas junto a outras comunidades e fazendo a alegria  dos pipeiros de todas as idades. 

Na edição do Festival de Pipas no Morro do Turano de 28 de agosto de 2022, que contou com a presença de pipeiros e organizadores de festivais de outras favelas, foram entrevistados sete moradores que promovem festivais de pipa em favelas cariocas: três do Turano, da equipe Festival dos Crias (Jocimar Vieira da Silva, Moisés Alves da Silva e Lucas da Silva do Nascimento); e quatro do Fallet e Fogueteiro, da Equipe Tropa da Laje (Roberto Alves, Emerson Gomes, Dayvison e Eric Batista). Todos tiveram muita coisa para contar sobre a pipa, que é arte, esporte, lazer e patrimônio cultural do Rio de Janeiro. Depois do dia 28 de agosto ainda tiveram mais dois eventos  23 de outubro, 2022 e este último 29 de janeiro, 2023.

Um Pouco da História das Pipas e o Papel dos Pipeiros 

Segundo historiadores, a pipa tem suas origens no Extremo Oriente, provavelmente na China, onde foi criada há cerca de 3.000 anos. Muitas tinham formato de pássaro e estavam intimamente ligadas à religião e mitologia. A pipa também foi utilizada para fins militares, com o intuito de assustar os inimigos que acreditavam na presença de espíritos malignos, sendo liberada à noite e equipada com uma harpa eólica, uma espécie de instrumento musical tocado pelo vento. 

No Ocidente, a pipa faz sua aparição com o desenvolvimento do comércio por rotas comerciais da época. No século XII, a prática de pipa foi difundida na Ásia e no mundo. O navegador e mercador Marco Polo investigando as potencialidades da pipa, segundo o que consta sobre suas andanças pela China, ao ser encurralado por inimigos locais, colocou uma pipa para voar cheia de fogos de artifícios, explodindo-os no ar em direção à terra, já que estavam de cabeça para baixo. 

Além do aspecto divertido ou religioso, a pipa também foi apoio de investigação científica. Em meados do século XVIII, o astrônomo escocês Alexander Wilson mediu a mudança na temperatura do ar, em função da altitude, com termômetros associados a seis pipas. O famoso Benjamin Franklin, em 1752, lançou um papagaio (outra nomenclatura para pipa) em uma tempestade, demonstrando assim que o raio é um fenômeno elétrico e não de origem divina. 

A pipa chega ao Brasil por volta de 1596 através dos portugueses. No entanto, há pesquisas que mostram que pipas já voavam no continente africano e que os escravizados podem ter trazido o hábito para o Brasil: sentinelas do Quilombo dos Palmares usavam pipas feitas de folhas e palitos para avisar a chegada de algum perigo.

Hoje, as pipas mais difundidas no Brasil são feitas de papel e varetas de bambu. Algumas utilizam saco plástico e jornal. Graças aos pipeiros, os que fabricam e vendem pipas, a brincadeira e o esporte têm continuado a se difundir. A profissão de pipeiro ainda não é regulamentada pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), mas existe um grupo de pessoas desta área mobilizando-se para que isso aconteça. Entre elas há a Associação de Pipas do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) e a Associação Brasileira de Pipas (ABP), em São Paulo, que organizam campeonatos, revoadas, oficinas, e também apoiam projetos sociais em periferias, fazendo arrecadação de alimentos, cadeiras de rodas e itens de higiene.

Como é um setor em crescimento, vêm surgindo vários canais e mídias que se dedicam integralmente ao mundo das pipas, com diversas matérias e posts publicados sobre o mesmo. O setor também vem se movimentando politicamente e, com isso, a pipa já conquistou aqui no estado do Rio de Janeiro, através da Lei 7.870/18, criada por Paulo Ramos (PDT) e sancionada em 2018 pelo então Governador Luiz Fernando Pezão (MDB), o status de patrimônio histórico, cultural e imaterial do Rio de Janeiro, instituindo no Calendário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, o “Dia da Pipa”, comemorado em 29 de junho. 

Além de ser patrimonial e cultural, a pipa é um esporte e reúne pessoas para além das fronteiras das favelas e periferias, pelo Brasil afora.

“A pipa é uma diversão para as crianças. E quando você dá uma linha e uma pipa para a criança, acabou, o sorriso dela vai lá em cima… [Quando crianças veem] uma pipa voando, vão atrás dela, mas só uma consegue apanhar, sabe o que é isso? Vão trinta crianças. Se uma fala que quer aquela pipa lá, e ela consegue, [dá a] maior confusão… se você der cinco pipas pra ela, [ela] não [vai querer]. A criança quer aquela que ela pegou. A energia é muito grande da criança.” Moisés Alves, integrante da Equipe dos Crias Morro do Turano

Além de um momento de lazer e diversão, a pipa é algo social, que une pessoas. E também auxilia na complementação da renda familiar dos que a comercializam dentro ou fora da favela. Existem pessoas que vivem e sobrevivem da fabricação e da venda de pipas, os chamados “pipeiros”. 

Roberto Alves, conhecido como Beto, além de ter um emprego formal, complementa sua renda e de sua família fabricando e vendendo pipas em sua loja, chamada “Beto Pipas”, localizada na favela do Fogueteiro, onde mora. O pipeiro é quem fabrica todas as pipas da Equipe Tropa da Laje Fallet e Fogueteiro RJ, da qual faz parte. 

“Acho que, na barriga da minha mãe eu já soltava pipa, porque meu pai fazia pipa, meu avô ainda faz. E eu, sempre fiz pipa, desde criança.” Roberto Alves

Festival de Pipas no Morro do Turano: a garotada empinando pipas. Foto: João Fernando
Festival de Pipas no Morro do Turano: a garotada empinando pipas. Foto: João Fernando

Enquanto a regulamentação da profissão de pipeiro não acontece, os profissionais ainda são vistos com um certo preconceito pela polícia, dentro da favela. Os policiais ainda associam a atividade à marginalidade. Segundo relatos de Beto e de Eric, nas décadas anteriores, a brincadeira chegou a ser associada ao tráfico, e qualquer menino visto com uma pipa nas mãos, era abordado pelos policiais. Alguns dos membros das duas equipes, Festival dos Crias e Tropa da Laje Fallet e Fogueteiro RJ, dizem recordar dessa época, em que soltar pipa quase deixou de ser um lazer por estar sendo marginalizada. 

“O pessoal pensa que todo mundo que mora na favela é criminoso. Eu sou trabalhador, tenho o meu emprego. Eu faço pipa, e eu faço pipa desde criança, e já entrou polícia na minha casa, quebrou minhas pipas, cortou minhas linhas. Falou para minha esposa que, ‘Aquilo ali não é uma profissão. Aquilo ali é lazer para bandido’. Mas sendo que eu sou trabalhador e que aquilo ali é minha renda extra, porque eu tenho filhos pequenos.” Roberto Alves

Jocimar Vieira da Silva, conhecido como “Brinquinho”, integrante da Equipe do Festival dos Crias, no Morro do Turano, conta:

“É uma satisfação, de repente, ser idealizador de uma coisa que foi proibida alguns anos atrás e, hoje, você pode ter a liberdade de entregar isso, e pode se divertir sem problema. Antigamente era criminalizada, a pipa, né? Hoje você pode ser o idealizador de algo que foi criminalizado, proibido, e pode ter a liberdade de soltar… porque pipa é lazer, é esporte. As crianças gostam de cruzar, ver outra pipa voando, de correr atrás.”

É importante ressaltar que mesmo a profissão de pipeiro sendo ainda vista com um certo preconceito pela polícia, soltar pipa não é proibido. O que é realmente proibido por lei, é o uso de cerol e da linha chilena. Por se tratar de uma mistura de cola com vidro moído passada na linha da pipa e extremamente cortante, cerol apresenta imenso risco não só para quem solta pipa como para a população em geral. Existem diversas leis municipais, estaduais e federais que preveem multas e detenção para quem comercializar, armazenar ou portar, mesmo que para fins recreativos, o cerol ou a linha chilena. 

No estado de São Paulo, por exemplo, a Lei 17.201/2019 proíbe o cerol como também qualquer outro material cortante que possa ser aplicado nas linhas. A multa para o descumprimento da lei é de aproximadamente R$1.326,50. No município do Rio de Janeiro, a Lei nº 8.478/19 prevê multa de R$342,11 pela compra, uso, porte ou posse dos materiais. A legislação anterior punia apenas o comerciante e o fabricante do cerol.

E o canal Disque Denúncia está apto a receber denúncias com informações sobre o crime. Até mesmo campanhas como a Cerol Não! e Cerol Mata, foram feitas para conscientizar os pipeiros quanto à prática de soltar pipas em vias públicas, sobretudo quanto ao uso do cerol e da linha chilena. 

Na cidade do Rio de Janeiro, não existem locais específicos para soltar pipas, mas as autoridades estaduais e municipais orientam que se busquem espaços abertos, como praças, campos de futebol e parques, evitando assim canteiros centrais de ruas, avenidas, rodovias, ou qualquer lugar que tenha fluxo de veículos. 

Criança na laje do Morro do Turano - Festival de Pipas. Foto: João Fernando
Criança na laje do Morro do Turano durante o Festival de Pipas. Foto: João Fernando

Nas favelas, os locais preferidos da garotada para soltar pipa são as lajes e os campos, que quanto mais altos forem, melhor. Sendo assim, os festivais de pipa realizados pela equipe do Festival dos Crias, são feitos em uma das partes altas do Morro do Turano, chamada Bicão. Esta área fica localizada entre o Rodo, Mina, Caixa D’Água e a Raia e, um pouco abaixo do Pedacinho do Céu. O Bicão localiza-se na Estrada do Sumaré, que também faz parte do Complexo do Turano. 

O local possui um campo bem vasto e amplo, onde os organizadores montam toda a estrutura, com equipe de som e DJ, para animar a galera. Tudo começa e termina com muito samba, pagode e funk, os ritmos que combinam com os eventos. Freezers armazenam as bebidas que serão distribuídas para as crianças e as que serão vendidas para arrecadação de verba, para realização dos festivais seguintes. Nos eventos sempre há conscientização quanto ao uso do cerol e da linha chilena e de não soltar pipas próximo aos locais onde transitam veículos. \

Festival de Pipas no Morro do Turano. Foto: João Fernando
Festival de Pipas no Morro do Turano. Foto: João Fernando

De acordo com os organizadores do festival, a festa é toda voltada para a criançada. Sendo assim, tudo tem que sair na mais perfeita ordem, sem brigas, nem confusões, muito menos acidentes. E Brinquinho, diferentemente dos seus parceiros diz que ajuda a encabeçar toda a organização do evento e que se considera um pipeiro, mas não sabe soltar pipa. Ele diz que sua satisfação é ver a meninada soltando, correndo para lá e pra cá, atrás de uma pipa voada, se divertindo de verdade, como era antes das brincadeiras tecnológicas. Se diz também admirador dos adultos que sabem soltar pipa e tiram um tempo para isso. Mas prefere ficar como organizador dos festivais, pois também se diverte e curte bastante.

Já a equipe de pipeiros convidada, a Tropa da Laje Fallet e Fogueteiro RJ, diz que todos os integrantes são pipeiros raiz, daqueles que soltam pipa desde bem novinhos e não deixaram na fase adulta. A equipe que é formada por Emerson, Pepeto, Beto, Dayvison e Eric, já existe há dois anos e também organiza festivais de pipas nas comunidades Fallet e Fogueteiro, localizadas entre o bairro do Rio Comprido e Santa Teresa. Os mesmos relatam que os eventos são também voltados para o lado social, com distribuição não só de pipas e linhas, mas também lanches e camisetas com o logo da equipe.  

Por ter surgido no período da pandemia do coronavírus, a Equipe Tropa da Laje visa a arrecadação de alimentos e produtos de higiene para distribuírem na favela, ajudando a quem precisa. Emerson, um dos integrantes, relata que, de um tempo pra cá, ficou mais difícil arrecadar, mas eles não desistem, pois sabem que muitas famílias de crianças que participam dos festivais ainda precisam de ajuda com uma cesta básica e produtos de higiene. Porém, o rapaz diz que o que mais consegue com os comerciantes locais, são contribuições para preparar os lanches oferecidos às crianças. 

A Equipe Tropa da Laje Fallet e Fogueteiro, além de realizar seus festivais de pipas, também participa dos eventos realizados em outras comunidades. Os integrantes, todos uniformizados, levam a bandeira da equipe e hasteiam em local bem visível.  

Tudo isso em torno da pipa. A pipa estimula o movimento, traz o sentimento de conquista e gera uma energia positiva, descontraída e alegre tanto para a garotada, quanto para os já crescidos, que acabam revivendo a infância e mantendo viva a criança dentro de si, no momento em que colocam a pipa no ar e observam a condução do vento. A sensação de total liberdade faz com que os perrengues do dia-a-dia da favela fiquem esquecidos por algumas horas, pois o foco é na linha, na rabiola e, é óbvio, na pipa. A preocupação é não ser cortado por outro pipeiro, mas sim, cortá-los e sair correndo para pegar a pipa voada, pegá-la e ser “o cara”, aquele que deixou todos para trás e conquistou o prêmio da disputa. E é por isso que muitos festivais como esse no Turano continuam a acontecer e ainda deverão acontecer em muitas outras comunidades por muito tempo.  

Moradores de todas as idades aproveitando o Festival de Pipas no Morro do Turano. Foto: João Fernando
Moradores de todas as idades aproveitando o Festival de Pipas no Morro do Turano. Foto: João Fernando

Sobre a autora: Carla Regina Aguiar dos Santos é jornalista comunitária, cria do Morro do Turano, que sempre prioriza o cotidiano das favelas em seu trabalho, mostrando além do que se vê nas mídias tradicionais. Já contribuiu para a Agência de Notícias das Favelas (ANF), A Pública, portal Eu, Rio! e Terra. Recebeu os prêmios ANF de Jornalismo, na categoria cultura, e o Neuza Maria de Jornalismo.


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