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Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre justiça ambiental nas favelas fluminenses.
Otávio Barros, morador de quinta geração da pequena favela do Vale Encantado, localizada na zona de amortecimento da Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, foi eleito presidente da associação de moradores da comunidade em 2005. Logo depois, em 2007, fundou a Cooperativa Vale Encantado com quase duas dezenas de vizinhos, para gerar emprego para suas famílias. Entre outras atividades baseadas na vocação natural da comunidade para a sustentabilidade, há uma visita guiada pela comunidade e pela floresta circundante, seguida de um almoço com vários pratos, apresentando a ecogastronomia local.
Otávio conduz os visitantes por caminhos na mata, apresentando-lhes as plantas que irão consumir logo em seguida. Uma que se destaca é a jaca, a maior fruta arbórea do mundo, originária da Ásia e historicamente estigmatizada no Brasil.
As jaqueiras próximas à comunidade são altas e antigas. No Brasil, as jaqueiras dão frutos em duas épocas e podem pesar até 50 quilos.
O restaurante do Vale Encantado, junto com um movimento crescente—de outras cozinhas comunitárias como a Favela Orgânica do Morro da Babilônia, organizações de defesa e promoção da fruta como o Instituto Mão na Jaca e projetos agroflorestais de favela que produzem e vendem jaca, como o CEM—vêm trabalhando para desafiar o estigma em torno da jaca e promovê-la como a fonte alimentar extremamente rica que é. Usada como ingrediente de referência na sua gastronomia, a jaca permite aos moradores uma maior segurança econômica e alimentar.
A Jaca Como Mercadoria Colonial
De acordo com o registro histórico, os colonizadores portugueses trouxeram a jaca para o Brasil no final do século XVII—mais especificamente para Salvador, na Bahia, a primeira capital do Brasil colonial. Tendo conhecido a fruta na Índia, provavelmente a transportaram de Goa, então um reduto português na costa ocidental do país. Naquela altura, os portugueses embarcavam em um projeto global de experimentação botânica, transplantando espécies entre várias colônias tropicais.
“Quando chegou aqui, a jaqueira simplesmente floresceu. Adorou o solo e o clima”, explica Alexandro Solórzano, professor de geografia da PUC-Rio, que há dez anos mapeia a distribuição da jaca na Mata Atlântica.
Um dos primeiros e mais circulados relatos portugueses sobre a fruta é o tratado escrito no século XVI pelo médico Garcia de Orta, Colóquio dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia. Nele, escreveu: “É verde escura e toda rodeada por espinhos menores que os do ouriço, embora não espetem como estes”, e documentou pessoas secando, fervendo e assando pedaços da fruta na Índia. A palavra portuguesa “jaca” provavelmente vem da palavra malaiala “chakka”, que de Orta transcreveu como “jaca”.
Mas a jaca também estava ligada ao comércio de escravizados e desenvolveu conotações racializadas. É provável que a fruta tenha chegado em navios negreiros. A sua distribuição global também pode ser encontrada em portos portugueses no continente africano, como Angola, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Uma vez que os africanos escravizados chegaram ao Brasil, seus traficantes a consideraram uma fonte de alimento barata e conveniente para alimentar os seus trabalhadores e a promoveram como uma solução rápida para a fome. Após a abolição da escravatura no Brasil, a jaca permaneceu como estratégia para viabilizar a segurança alimentar dos brasileiros mais socialmente vulneráveis.
Alexandro disse que, ainda hoje, “continua ligada à população negra”. Para ele, há resquícios claros dessa ligação no Brasil quando, por exemplo, “a jaca é chamada de ‘fruta dos pobres’”.
Só a fruta atravessou os oceanos; o conhecimento asiático local sobre como prepará-la, não. A jaqueira conecta terras distantes, unindo-as em uma história compartilhada, mesmo que o contexto e a compreensão de seus usos tenham se perdido no caminho. “Imagino que como [esse conhecimento] não veio—esse livro de receitas, por assim dizer—[a fruta] não foi muito valorizada”, disse Alexandro.
Redefinindo a Jaca Pela Gastronomia na Favela
Hoje, as jaqueiras estendem suas copas acima sobre a mata que circunda o Vale Encantado. A comunidade ocupa um pequeno recanto nos morros do Alto da Boa Vista, uma região nobre que também inclui uma série de pequenas comunidades. A maioria dos moradores do Vale vive aqui há gerações.
Ao final do tour de Otávio pela trilha na mata, ele mostra aos visitantes o biossistema de esgoto da comunidade e depois os conduz até o ápice do passeio: no restaurante da cooperativa, o grupo desfruta de uma refeição preparada por cooperativadas que utilizam o biogás gerado por um biodigestor próprio para cozinhar seus pratos exclusivos.
O prato principal é o bobó, prato afro-brasileiro geralmente feito com camarão, mas que, na versão vegana do Vale, é feito de jaca. É cremoso, encorpado, e fresco. O creme de aipim, leite de coco e tomate realça o sabor floral da jaca que—para a diversão dos visitantes—Otávio diz ter coletado facilmente na mata naquela manhã com a ajuda de um macaco. Combinado com arroz salpicado de coco, o prato é saboroso.
O Vale Encantado começou a preparar alimentos com jaca por volta de 2005. As chefs a utilizam para fazer sobremesas, como pão doce e sorvete de jaca. Também a usam como substituto em pratos tradicionais brasileiros como: o “jacalhau”, uma versão da tradicional salada de bacalhau portuguesa só que feita à base de jaca; bolinho de jacalhau, um bolinho de jaca frito que também brinca com o original de bacalhau; coxinha de jaca; estrogonofe de jaca; empadinha de jaca; moqueca de jaca; e ensopadinho de jaca.
Essas inovações culinárias do Vale Encantado produzidas com jaca são elaboradas por quatro mulheres que trabalham na cozinha da cooperativa: Rozineida Pereira Machado, Madalena Medeiros e Cátia Medeiros dos Santos e sua filha, Bruna dos Santos, que ajuda ocasionalmente, embora se concentre principalmente em gerenciar a recepção.
“A gente faz pesquisas sobre vários pratos na internet. Eu já vi vídeos de como a jaca é usada na Índia.” — Otávio Barros
A jaca pode ser encontrada nas abundantes feiras-livres cariocas, mas é dos itens mais raros. “Aqui no Vale tem muita. Então o custo-benefício é que a gente tem que ir ao mercado para comprar outras coisas para fazer. As jacas a gente tira aqui, da própria natureza, para transformar em alimento”, diz Otávio. Ele reconhece: “As pessoas ainda têm preconceito em trabalhar com a jaca, em fazer pratos com a jaca”.
A Jaca Como Pista Para Histórias Interconectadas
Por ser uma fruta não nativa, vinda de outra parte do mundo, a jaca é frequentemente considerada uma espécie invasora, o que aumenta o seu estigma no Brasil. Por meio de sua pesquisa, porém, Alexandro descobriu novas informações sobre a sua história no Rio. “A ideia que eu tinha da jaca era de que se tratava de uma espécie exótica, potencialmente invasora”, disse ele. “Ela estava invadindo a Mata Atlântica, reprimindo a vegetação [endêmica]”.
Entretanto, com sua coleta de dados, Alexandro chegou a uma conclusão diferente: “Minha hipótese é que, [em vez de] uma espécie invasora, [o que caracteriza a jaca aqui é que ela é] um indicador biocultural de onde houve presença humana”.
No século XIX, o Imperador Dom Pedro II decidiu reflorestar a Floresta da Tijuca a fim de recuperar o abastecimento de água que atendia ao Rio. A monocultura do café na região havia trazido seca para a cidade.
Observando a distribuição da jaca na Floresta da Tijuca, Alexandro e sua equipe encontraram uma correlação fascinante com os locais de produção de carvão vegetal.
“Não era só a jaca que precisávamos mapear [na floresta]. Precisávamos mapear jaca, carvão, e ruínas de casas, fazendas antigas, e aí por diante. Foi então que começamos a mapear o que chamamos de legados socioecológicos, que são legados do uso humano passado nas paisagens.” — Alexandro Solórzano
Ou seja, os locais onde há jaqueiras contêm pistas sobre a vida das pessoas que viviam ou trabalhavam na floresta, às margens da cidade, especificamente afro-brasileiros escravizados e seus descendentes. Além disso, alguns eram provenientes de quilombos.
As estatísticas reunidas foram surpreendentes. A distribuição de carvão sobreposta à distribuição de jaca representa 50% da presença total de jaca. E ainda: “Quando sobrepomos as trilhas, os antigos caminhos, as ruínas das casas e as pontes, a soma de toda essa influência explica mais de 90%”.
Enquanto traça a relação entre a jaca e a produção de carvão vegetal, chegando próximo a um bosque de jaqueiras adjacente à comunidade do Horto, Alexandro arranha a terra e o solo muda de um marrom empoeirado para um preto intenso. A cor preta é evidência de carvão—e ele se abaixa para pegar lascas de carvão que estão praticamente na superfície.
Essas lascas são resquícios de quando os produtores queimavam biomassa florestal em fornos de barro para fabricar carvão. Alexandro menciona que a idade de algumas árvores indica que os produtores manejaram a floresta com cuidado, em vez de extrair dela indiscriminadamente. Eles se concentravam nas árvores menores, deixando as maiores em paz. Afinal, eles também comiam jaca.
Estas árvores contam uma história. Para alguns, por serem espécies exóticas, deveriam ser removidas. Mas para outros, como Alexandro, extrair as jaqueiras sob a presunção de invasão seria ignorar a natureza do próprio passado e a importância social, cultural e alimentar das árvores para as populações mais vulneráveis do Rio ao longo da história.
Um dos alunos de Alexandro escreveu uma tese sobre a favela do Parque da Cidade, que margeia a mata. Durante sua pesquisa, ouviu falar de escravizados marcarem as trilhas entre ela e a Rocinha com sementes de jaca para não se perderem.
“As populações negras foram e ainda são grandes gestoras ecológicas das paisagens… Aprenderam a manejar toda a flora disponível para elas, o que também, de certa forma, ajudou na sua subsistência.” — Alexandro Solórzano
É evidente que essa história persiste em todo o Parque Nacional da Tijuca, do Horto ao Vale Encantado.
Legados Coloniais em Ciência e Conservação
Segundo Alexandro, cerca de 60% dos conservacionistas acreditam que a jaca não tem lugar no Brasil. Outros, porém, sustentam que as pessoas e a natureza estão e sempre estiveram interligadas e em fluxo, e que a jaca tem, sim, seu lugar no país.
Embora Alexandro reconheça que algumas novas espécies possam prejudicar os ecossistemas e exigir manejo, ele acredita que a jaca não esteja entre elas.
A coexistência entre espécies transplantadas e locais é conhecida como ecossistema emergente. Alguns defensores desse conceito questionam termos como “exótico”, “invasivo” e “nativo” argumentando que esses rótulos estão associados a tropos e classificações raciais. A sobreposição linguística sugere como as ideias de “diferença” em relação aos seres humanos e à natureza foram construídas simultaneamente e continuam a ter efeito até hoje.
A jaca se espalhou de forma tão natural no Brasil que, apesar dos muitos registros de sua presença inicial na Índia, foi primeiramente classificada como Artocarpus brasiliensis, com o entendimento de que era nativa do Brasil. Só mais tarde os cientistas perceberam que não era o caso e mudaram seu nome científico para Artocarpus heterophyllus.
Em 2014, Marisa Furtado de Oliveira fundou o Instituto Mão na Jaca. A organização coleta jacas, ensina a prepará-las e constrói uma rede de defensores. O Mão na Jaca tem parceria com o Vale Encantado e colabora com Alexandro Solórzano.
“Quando comecei a pesquisar, descobri que havia muitas indicações de que a jaca foi trazida para o Brasil para alimentar os escravizados. E, ao descobrir isso, comecei a entender por que a jaca era invisível no mercado e não era bem-vinda em muitos lugares.” — Marisa Furtado de Oliveira
No Brasil, os colonizadores criminalizaram as religiões e culturas dos africanos escravizados e de seus descendentes. Esse legado persiste ainda hoje. No Candomblé, a jaca está associada ao mito de Apaoká, uma das muitas mulheres e mães ancestrais da tradição africana. Segundo esse mito, Bambá, uma de três irmãs que haviam feito um pacto de nunca ter filhos, quebrou o pacto e teve um filho com Orisá Okò, o Senhor da Agricultura. Depois disso, foi morar em um mogno africano sagrado e passou a ser chamada de Apaoká, como a árvore, que significa “em cada árvore”—sugerindo que ela se tornou a senhora das árvores sagradas. Quando os fiéis foram trazidos para o Brasil, não encontraram mogno africano, mas reconheceram a mesma majestade e resiliência na jaqueira e incorporaram suas folhas aos ritos, em vez das do Apaoká. Com um sistema de conhecimento baseado em raízes e tradições iorubás, o Candomblé incorporou elementos novos e estrangeiros para sobreviver e prosperar ao longo do tempo. Assim, até esta árvore asiática passou a fazer parte do seu panteão sagrado.
Alexandro pretende homenagear este sistema de conhecimento, enfatizando como a jaca constrói resistência e resiliência cultural ao proporcionar segurança alimentar. Além disso, devido ao tamanho das árvores e dos frutos, a jaqueira é capaz de sequestrar grandes quantidades de carbono, tornando-se uma ferramenta útil no combate às alterações climáticas. Por fim, por conseguir crescer em solos degradados, ajuda a restaurar a cobertura verde em áreas desmatadas.
Construindo um Futuro Sustentável com a Jaca
Hoje, a popularidade da jaca vem crescendo no Brasil como substituta da carne. Em muitas partes do mundo, porém, a jaca não é vista como substituta, mas como um alimento em si. Na Ásia, os pratos de jaca combinam estilo e versatilidade no preparo. No Brasil, historicamente, era consumida madura ou em sobremesas, mas o Vale Encantado e outros produtores de ecogastronomia mostram que essas não são as únicas opções.
Katie Weintraub, ex-aluna de Alexandro Solórzano e colaboradora do Mão na Jaca, é outra defensora da jaca. Ela trabalha com a Sinal do Vale, iniciativa focada em ecossistemas sustentáveis localizados na Baixada Fluminense. O grupo enfatiza o manejo sustentável das jaqueiras na região, principalmente por meio do uso de jacas verdes na culinária.
“As pessoas sempre ficam chocadas e maravilhadas, especialmente quem nunca comeu jaca verde. Elas comem a lasanha e acham que é frango, comem o ceviche e acham que é peixe”, conta ela. Também a usam no kibe, um prato que chegou ao Brasil com os imigrantes árabes no início do século XX.
“Daqui a dez, vinte anos, não sabemos o quão fácil vai ser cultivar arroz, soja e outros produtos agrícolas. É muito importante já estarmos de olho no futuro e já termos uma excelente opção.” — Katie Weintraub
Katie tem trabalhado com nutricionistas para incluir a jaca verde nos cardápios das escolas públicas. “Estamos tentando pegar itens já existentes no menu e criar novos [pratos]. Eles têm risoto de frango, então a ideia é fazer risoto de jaca”. O plano é lançar o piloto até outubro.