Click Here for English
Em um sábado ensolarado, 29 de junho, foi realizada a 1° Parada do Orgulho LGBT+ da Ilha do Governador aos pés do Morro do Dendê, no Aterro do Cocotá, Zona Norte do Rio. O evento foi uma realização da ONG Encontro das Cores, que atua em maior parte com crianças e jovens LGBT+ de favelas e bairros periféricos da Ilha. Um marco histórico para o bairro, a manifestação simboliza a resistência e a conquista de espaço pela comunidade LGBT+ em um bairro tradicionalmente conservador.
“Nunca teve uma parada aqui no nosso território. A Ilha do Governador é um bairro extremamente conservador, cercado por quartéis, só que a população LGBT+ existe aqui dentro. Então, a gente quis trazer essa ideia, essa luta para o nosso bairro, para que as pessoas entendam também que a gente está aqui, que a gente existe, que a gente precisa comemorar… celebrar nossa vida… por estarmos vivos.” — Byron Teixeira
Segundo o fundador da ONG e idealizador da parada, o insulano Byron Teixeira, cria da favela de Itacolomi, a proposta do evento é construir um espaço seguro, de orgulho e pertencimento para a comunidade LGBT+ da Ilha e dos bairros do entorno, do subúrbio da Leopoldina.
A ONG Encontro das Cores surgiu em 2018, após um caso de homofobia vivida por Byron, quando ainda fazia parte de sua igreja. A partir disso, ele e outros jovens LGBT+ iniciaram encontros com rodas de conversa na Ilha do Governador. O intuito era criar um espaço para diálogo e de apoio mútuo.
“Quando eu estava num momento de muita depressão, eu fui procurar quem eu achava que era a minha liderança naquele momento. E aí, [ao] invés de acolhimento, eu recebi ‘aqui não é seu lugar se for para ser desse jeito’. Então, fundei o Encontro das Cores com o intuito de ser um local de acolhimento para pessoas que passaram ou passam coisas que eu passei ou parecidas com isso.” — Byron Teixeira
A cantora, agente comunitária de saúde e voluntária da ONG, Juliana Macedo, conta que a ONG tem dois grandes públicos: a comunidade local da Ilha do Governador e o acolhimento de pessoas LGBTQIAPN+. Para ela, o diferencial do Encontro das Cores é combinar trabalho social com conscientização contra a LGBTQIAPN+fobia.
“O trabalho educativo que a gente faz com crianças, por exemplo, sempre tem a apresentação de uma drag, exatamente como uma forma de quebrar esse paradigma e preconceito, da gente ter um voz ativa, de ser presente na comunidade para todo mundo. Nós também somos agentes transformadores, a gente não é só gay, lésbica. É tirar esse estereótipo de que é só isso, de que é só putaria. A gente quer fazer um trabalho para a comunidade como um todo.” — Juliana Macedo
Ver essa foto no Instagram
Ver essa foto no Instagram
Até a realização da Parada LGBT+, além da burocracia, foram necessários anos de mobilização local. Outros eventos organizados pela ONG funcionaram como um precursor da 1ª Parada da Ilha.
“A gente começou fazendo o Festival das Cores, que no começo se chamava Feira das Cores, que, além das apresentações artísticas, tinha o pessoal também vendendo comidas e artesanatos. Foi há três anos. Na segunda edição, percebemos que era mais um festival do que uma feira, e aí nomeamos como Festival das Cores. Era [realizado] na Arena [Renato Russo]. Esse ano [de 2024], conseguimos entrar em contato com a Prefeitura. Foi muito difícil. Tiveram vários empecilhos. Várias vezes tentaram derrubar para não acontecer. Mas esse ano, como a ONG foi crescendo, foi criando mais força, foi mais difícil deles ‘brecarem’ a gente. E conseguimos fazer essa parada aqui. Foi muito difícil, porque, mesmo depois da autorização, vinham coisas do tipo ‘tem que ter banheiro químico e a gente [da Prefeitura] não vai dar’, ‘tem que ter tal quantidade disso e daquilo’ e várias coisinhas para que a gente não conseguisse fazer. Mas a gente bateu o pé e insistiu um pouquinho e graças a Deus deu tudo certo.” — Juliana Macedo
Além das barreiras burocráticas, organizadores relatam intimidações que precederam a realização da 1ª Parada do Orgulho LGBT+ da Ilha do Governador. No entanto, o engajamento coletivo, ainda assim, prevaleceu e decidiu ocupar as ruas da Ilha no dia seguinte ao Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+ e exigir igualdade de direitos.
“A gente recebeu diversas ameaças [através de] mensagens e comentários [nas redes sociais]. A Parada é uma coisa que sempre sonhei em realizar desde que comecei o movimento aqui na Ilha do Governador. Eu não construí isso sozinho. Foram muitas pessoas colocando a mão e trabalhando para isso acontecer. Quando a gente fala de Parada LGBT+, a gente tem uma visão ‘tipo Zona Sul‘, de ter que se deslocar para ir para lá, sabe? Então, construir isso aqui, no meu bairro, para as pessoas que vivem aqui comigo, que constroem essa luta, pode mostrar para as outras pessoas que a gente está aqui, resiste e existe. Para mim é de extrema importância. Para além de um evento de comemoração, ele tem um marco histórico para nossa vivência. Isso para mim não tem preço. Tem pessoas de 10, 30, 60 anos [de idade] aqui hoje para celebrar o Dia do Orgulho. Não só pessoas LGBTs, mas aliados, pessoas hétero-cis que acreditam na nossa luta e acreditam que a gente pode ter um futuro melhor, de mais respeito e igualdade…. precisamos de fato cada vez mais celebrar o Dia do Orgulho, reafirmar nossa posição e lembrar quem nós somos.” — Byron Teixeira
O evento ocupou a pista de skate e a Areninha Cultural Renato Russo, ambos no Aterro do Cocotá, além do Quiosque LGBT+ Sunset, no bairro do Galeão, mais especificamente na Praia de São Bento, outro point tradicional dos LGBT+ insulanos. Lugar onde, durante décadas, funcionou o histórico Quiosque Bacana’s, um karokê bar, à época, identificado como “GLS“, hoje, um quiosque ainda frequentado por membros da comunidade, mas que mudou de nome e deixou de se autoafirmar enquanto um espaço da comunidade LGBT+ insulana.
O Quiosque Sunset, portanto, é o único bar LGBT+ em funcionamento atualmente e somente o terceiro da história da Ilha do Governador, o bairro mais antigo do Rio de Janeiro. O segundo foi o extinto bar Free Space, no bairro dos Bancários. É importante remarcar que Cocotá, Bancários e Galeão, espaços de sociabilização LGBT+ dos insulanos, são bairros populares. Territórios afluentes da Ilha, como o Jardim Guanabara, Ribeira ou Moneró não se mostraram, ao longo do tempo, seguros para empreendimentos LGBT+, apesar da comunidade estar presente em toda a Ilha.
A Parada da Ilha contou com um cronograma diverso durante todo o dia com: ações sociais, mutirão de plantio, shows de drag, apresentações de Ballroom, performances e pocket shows de artistas LGBTQIAPN+, além de uma festa de encerramento no Sunset.
Ver essa foto no Instagram
Estiveram presentes artistas, ativistas da causa, coletivos, autoridades, empresas, e instituições da sociedade civil. Algumas das organizações que ajudaram a construir a 1ª Parada do Orgulho LGBT+ da Ilha foram: Agrofloresta do Cocotá, GT Maracajá, Areninha Cultural Renato Russo, Movimento de Educação Popular Esperança Garcia, Injustiçada, Quiosque Sem Frescura, Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), 33ª Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Nação Alarde, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, Projeto Pela Vida e Faculdade Estácio de Sá. Além disso, participaram também autoridades, seus representantes e importantes figuras políticas, como a Vereadora Mônica Benício, única vereadora lésbica da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, viúva da ex-Vereadora Marielle Franco e cria da Maré, o presidente municipal do Partido dos Trabalhadores (PT) Thiago Santana, Pedro Mara, professor, ativista em defesa de LGBT+ no esporte e assessor do Deputado Estadual Flávio Serafini, representantes do mantato da Deputada Estadual Dani Monteiro e o jornalista Glenn Greenwald, viúvo de ex-Deputado Federal David Miranda, que era gay e cria do Jacarezinho, falecido em 2023.
Ver essa foto no Instagram
Entre os artistas do segmento drag, estavam Mariana Crocs, Yunny Drag, Lua Drag, Naomih Leon, Ravena Creole, Shannon Skarllet, Chanel, Lalita Queen, Opulence, Betina Polaroid, Natasha Princess, Manalu, Cútis Negra, Ramona, Conga Bombreia, Ganashea, Melânica Drag e Naja. Os DJs foram Janayara, Mello, Aurora Visage, Toni, Pam Belli e Noé, enquanto os cantores foram Ruffo, Dornelles, Lala Bitch, ÏMNO e WE-SY, a Banda Marepô. Também, marcaram presença os dançarinos Gabriel Rocha, Bront e Kastellany.
A ocasião promoveu também a Feira da Diversidade, com diversos empreendimentos, sendo eles: Armário das Amigas, Portal de Jade, Brechó Capivara, Don Quiser, Flash Tattoo, Tornado Carioca Bataria Gourmet, Pissart Ferreira, Coisinhas que Fiz, Unje Mimo, Leli Lanches e Petiscos, Casa Frida, Mori Artes, Tropos Store, Kathy’s Store, Nuastral e Donna de Mim.
O festival serviu de encontro nessa luta que atravessa gerações. Artistas da favela do Boogie Woogie, Roberto Moraes e Amaurhy Blutos, criadores das personagens Marina Crocs e Yunny Drag, pioneiros há 30 anos da performance insulana de drag, celebram a conquista de um legado do qual são parte. Roberto conta como era desafiadora a aceitação pelas pessoas.
“Como já tenho uma história aqui na Ilha, já fui queen de bateria de vários blocos de carnaval, a Ilha sempre me abraçou [artisticamente]. Mas, as coisas que eram para gays nunca funcionavam. Eu era uma ‘bolha’ né, uma coisa diferente. Eu quero agora ajudar o coletivo para que todo mundo possa ir e vir e viver sua vida na diversidade. No passado, os bares fechavam, as boates. Qualquer movimento gay não funcionava. E agora, graças a Deus, estamos aqui.” — Roberto Moraes
Amaurhy conta que o evento simboliza a conquista de um sonho que parecia distante, já que nunca teve apoio.
“É algo que há muitos anos, eu e um grupo de pessoas antigas aqui da Ilha tentamos fazer… para quebrar esses tabus. E nunca teve alguém que pudesse dar esse suporte para a gente. Hoje, com o Byron, com o Encontro das Cores, estamos trazendo essa nova Era para a Ilha…Acordei chorando hoje, me maquiei chorando. A importância desse evento é muito grande porque sempre que me montava para sair aqui e ir nos bares, era ‘se retirem’. Fui em alguns bares que tinham aqui na Ilha, mas acabaram porque não tinham essa força, esse comando de persistir em algo que poderia se fincar nesse chão como raiz.” — Amaurhy Blutos
Ver essa foto no Instagram
Ele também deixou evidente o quanto esse evento é fundamental, um marco para comunidade LGBTQIAPN+ na região.
“Para mim, está sendo inexplicável… Tá sendo muito impactante e decisivo para eles verem e falarem ‘realmente aqui existe uma cultura LGBTQIAPN+’. Estamos aqui para lutar pela nossa causa, não importa o que você diz insulano, importa que nos engulam, que a gente existe aqui dentro. Comecei com 17 e agora estou com 44. Parei por conta do casamento na época porque [eram duas opções] ‘ou você casa ou você é drag’. Tinha que viver, que sobreviver. Então, quando o Sunset abriu aqui na Ilha do Governador, eu falei ‘não, eu vou entrar nesse rolê também. Eu mereço! Eu construí isso aqui, então, vou estar presente’. Eu e Mariana sofremos muito preconceito. A gente ia para os blocos montado porque não tinha outro lugar para a gente ir. A gente ia para o carnaval. De dez fotos, de dez elogios, 30 era desprezo. Mas a gente tá aí ó, anos e anos botando a cara todo carnaval, [em] todos os blocos da Ilha, até ser convidada para ser musa, para ser rainha de bloco, até conquistar o reconhecimento de drag que nós temos na Ilha do Governador. Isso que está acontecendo hoje é um marco de uma nova história da Ilha do Governador. Para algumas pessoas, isso aqui é só uma festa, mas, para mim, isso aqui é uma luta… realmente ganhamos essa luta!” — Amaurhy Blutos
A gestora e diretora de projetos do Corporativo Black, Anne Beatriz, vê o encontro como uma oportunidade de humanizar e naturalizar as diferenças na região.
“Essa parada é um ato. Estamos aqui para expressar a nossa diversidade, a nossa vivência e é muito importante que a gente possa falar cada vez mais da população LGBT+. E também que a gente possa agregar isso às pautas das mulheres negras também, às pautas das minorias, dos imigrantes. Que a gente possa cada vez mais produzir cultura e empreender… Então, a Parada LGBT+ aqui hoje quer dizer que a gente existe. Por mais que outros possam dizer o contrário, é um lugar para famílias, é um lugar para a gente celebrar, é um lugar para a gente ser feliz e ser o que é. E eu acho que não tem nada mais importante do que você chegar num lugar e saber que você é quem você é e tá tudo bem. Eu acho que esse é o ponto principal disso aqui tudo.” — Anne Beatriz
O estudante Yohan Araújo, morador do localidade do Tauá, na Ilha, diz que a parada é importante por exigir a garantia de direitos básicos, além de trazer bastante esperança para a luta coletiva.
“A gente está fazendo um evento num lugar que é bem conservador e homofóbico. É muito lindo ver o que a gente está fazendo, ocupando esse espaço… Pra mim, é a esperança de que a gente pode vencer muito e de que isso aqui é só o começo.” — Yohan Araújo
Gabbie Rosa, estudante, moradora do bairro da Portuguesa, compartilha sentimentos parecidos sobre a 1ª Parada do Orgulho LGBT+ da Ilha do Governador:
“Eu nasci e cresci aqui na Ilha e nunca enxerguei aqui como um lugar que me acolhesse, sabe. Então, quando o Byron começou com a proposta do Encontro das Cores e da Parada, fiquei muito feliz. Conheci muita gente por causa disso e também me senti acolhida.” — Gabbie Rosa
O professor Rhuan Paulo de Sousa, cria de Ramos, bairro vizinho à Ilha do Governador e idealizador de Noemih Leon, reforça o papel político que essa parada tem. Segundo ele, a maior contribuição de um evento como esse é ampliar as bases sociais no bairro para a luta LGBT+.
“É todos os dias que a gente resiste. A gente precisa estar aqui e a gente tem que se amar pelo que a gente é, não pelo o que a sociedade falou para gente. Eu acho que essa parada aqui na Ilha é primordial para o desenvolvimento de um sentimento de pertencimento… Andei conversando com o pessoal e perguntei o que você espera como fruto da 1° Parada do Orgulho LGBT+ aqui da Ilha? O que você espera que mude? E as pessoas falaram: amor, mais respeito, mais ações culturais na Ilha do Governador, que a gente não precise se deslocar 20, 30, 40 km para encontrar artistas que a gente gosta… pertencimento tem muito a ver com território. Os nossos têm que ser ocupando pela nossa arte, pela arte que a gente produz. E a gente produz muita arte… que esse seja o início de uma grande comunidade… olhando cada um aqui, agora, estão nascendo várias lideranças populares. Várias lideranças que vão continuar não só no mês de junho, mas vão continuar a construir essa cena, essa cultura LGBT+ insulana, essa potência o ano inteiro.” — Rhuan Paulo de Sousa
Mais do que nunca, a luta dos LGBT+ insulanos é por um lugar seguro, por direitos, pelo empoderamento coletivo da comunidade LGBT+ em toda sua diversidade, pelo reconhecimento de que suas trajetórias devem ser motivo de orgulho, não escondidas dentro de armários. Em um bairro tradicional como a Ilha, esse orgulho também passa pelo fortalecimento das raízes dessas pessoas, fortemente fincadas àquele chão.
Ver essa foto no Instagram