Em matéria de espaço simbólico no Rio de Janeiro, poucos lugares estão a altura do estádio do Maracanã. Sua história e posição no imaginário urbano são diretamente ligadas a história cultural e social da cidade do Rio de janeiro no final do século 20. Bem antes da inesperada, e traumática, derrota na final da Copa de 50 para o Uruguai–considerada uma “tragédia nacional”–o estádio é considerado um “templo” e um “espaço sagrado” do futebol, um lugar onde o jogo bonito brasileiro se desenvolveu e se aperfeiçoou, um lugar onde jogadores se tornaram lendas. Como um crítico define, o “místico Maracanã” é “uma estrutura que sempre recordará sua rica história, mesmo quando sua dramática transformação levante debates sobre o futuro da cidade e país no qual se encontra.” Mesmo não sediando a inauguração da Copa do Mundo, irá receber sete jogos–incluindo a grande final–e irá sediar a cerimônia de abertura e encerramento das Olimpíadas de 2016. Todos os olhos estarão voltados para o estádio. Depois de três processos de renovação desde 2000, custando um total de R$1,2 milhões, o que pode ser dito sobre este estádio nos dias de hoje?
Estádios são, no seu estado mais puro, um lugar onde pessoas podem se juntar, e–pelos menos em teoria–um lugar democrático onde diversas classes sociais dividem um espaço em comum para apreciar o espetáculo. No Rio, o papel do Maracanã como espaço democrático possuí uma importância chave, dado o alarmante grau de desigualdade da cidade, a falta de representação popular e a estigmatização de moradores de favela. Historicamente, o Maracanã sempre foi considerado um lugar onde pessoas pudessem viver momentos “intensos” únicos à aquele lugar e aquele momento. Sempre foi, e deveria continuar sendo, um lugar especial.
Barulho e experiência
Desde que o estádio atraiu um recorde mundial de público com mais de 200 mil torcedores na final da Copa de 50 (na qual o Brasil perdeu por 2-1), o Maracanã se enraizou na geografia cultural e física da cidade. Já sediou as partidas de futebol mais importantes da cidade, finais de copas, jogos internacionais, assim como shows de rock, massas Católicas, entre outros eventos de grande escala e é, também, casa de dois dos grandes clubes cariocas, Flamengo e Fluminense.
O vermelho e preto é do Flamengo, time que é considerado o clube do povo, onde o povo é entendido como o setor mais pobre da sociedade; a classe trabalhadora, negra e moradora de favela. Eles são o time com maior número de torcedores no Rio, e no Brasil, fundado em 1911 depois que um grupo de fãs se afastaram do Fluminense, insatisfeitos com a natureza exclusiva–o que hoje chamaríamos de racismo–do clube naquela época. O Fluminense, conhecido como tricolor, originalmente jogava suas partidas no Estádio de Laranjeiras, localizado em luxuosa parte da cidade onde Oscar Cox, um aristocrata brasileiro com origens inglesas, fundou o clube em 1902. Desde os anos 50, Fla e Flu vem jogando seus jogos no Maracanã, onde também jogam Botafogo e Vasco quando se trata dos clássicos. O status do Maracanã como um espaço democrático do Rio de Janeiro sempre foi incontestável. Rico, pobre, negro, branco ou mestiço, esse era um espaço para futebol e futebol apenas. Porque isso é tão importante?
A experiência de ir ao estádio era a melhor possível: a estrutura de concreto, lotada com mais de 100,000 pessoas, criava uma atmosfera imensa e poderosa. A geral, basicamente uma área para se assistir o jogo em pé, oferecia ingressos bem baratos, e, dependendo de onde e como você quisesse assistir o jogo, o preço do ingresso aumentava de acordo. A onda de barulho no estádio e a intensa vibração da torcida elevava a experiência que beiravam a devoção religiosa ou espiritual. Foi assim que o Maracanã ganhou seu místico status de ícone, de “sagrado templo” do futebol do Rio. Então, qual é o problema com a Copa do Mundo?
De acordo com algumas regulações da FIFA para os estádios, a geral foi a primeira parte do estádio que foi mudada através das renovações que faziam parte da preparação para a Copa do Mundo. Tendo uma visão prática, isso reduziu bastante a capacidade do Maracanã e profundamente afetou um aspecto vital da experiência. A densidade e intensidade da experiência e da atmosfera foram irreversivelmente reduzidas pelas renovações contemporâneas, o que no caráter simbólico e cultural é uma caricatura. Não só você perde o número de pessoas, mas também transforma o estádio em um ambiente menos igualitário e mais exclusivo: preços dos ingressos aumentam, e a divisão dentro e fora do estádio aumenta. Nessa renovação, não se transformou em um símbolo de progresso. Pelo contrário–e paradoxalmente–enraíza as divisões sociais do último crescimento capitalista brasileiro. Ao invés de se basear nos aspectos do passado que positivamente definiam o Maracanã (inclusão, democracia e atmosfera), na verdade o que se tem é uma imagem superficial do que se era no passado, mas que na verdade incorpora um impulso para a modernização da cidade contemporânea. Sua simples arquitetura é praticamente a mesma, com teto e assentos novos, mas no coração, o estádio é pior.
Privatização e as controvérsias dos despejos
Em termos de posse, as mudanças no Maracanã representam bem esse sentimento. Costumava ser o estádio do povo, de um modo além da atmosfera e democracia: era propriedade do estado, de modo que era uma propriedade popular. Porém, no dia 30 de junho do ano passado, a posse foi transferida do Estado do Rio de Janeiro para uma concessão privada, ignorando as numerosas tentativas de bloquear a privatização através de ações legais e de protestos populares. Para a Copa do Mundo, Olimpíadas, e até 2048, o consócio irá administrar o estádio, sempre visando lucro. O acordo se deu as custas de perdas financeiras para o Estado, sendo gasto dinheiro público para arcar com as despesas geradas pela renovação até 2013 (a parte mais cara), e em retorno será pago R$2 milhões por ano enquanto o contrato estiver em vigor, com o consócio cuidando e conservando as renovações restantes.
Sem dúvida alguma, a privatização do Maracanã faz com que o estádio deixe de ser um lugar do Rio e para o Rio, passando a ser um lugar da FIFA, da COI e das companhias envolvidas no consórcio, significando a perda de um ícone arquitetônico da cidade. O objetivo de administrar o estádio visando o lucro, com pouca consideração com sua história, foi motivo de revolta, e , se olharmos para os números, esta decisão não faz completo sentido–o que serve também para ilustrar outro sinal de uma perspectiva histórica míope e uma noção de desenvolvimento ingênua.
A Copa do Mundo de 2014 ofereceu uma oportunidade para o Maracanã ser renovado, ou reconstruído, se tornando um dos estádios mais modernos e famosos do mundo. Poderia, também, ter inspirado debates positivos no Rio e no Brasil sobre os direitos fundamentais que são negados para certos setores da sociedade–tipicamente a população indígena e moradores de favela–caso a renovação tivesse sido sensível as peculiaridades históricas da sociedade Brasileira, ao invés de inspirar revolta e protestos.
A Aldeia do Maracanã é um exemplo clássico, e um caso de grande controvérsia: desde 2006, é possível encontrar um grupo de índios ocupando o antigo Museu do Índio, localizado perto do estádio, no qual foram removidas à força por unidades policial, sem diálogo, causando uma consternação generalizada. Logo, a Copa do Mundo, representada pelo Maracanã, ajudou a cimentar profundas rachaduras sociais enquanto superficialmente acobertava as revoltas para proteger a imagem do projeto. Em 1950, o estádio pelo menos foi construído em parte com um ideal de um governo populista que visava incorporar os mais pobres em projetos nacionais–o que tragicamente foi esquecido nos anos recentes com as monstruosidades da Copa do Mundo e Olimpíadas. Como Simon Jenkins escreveu no The Guardian, essa era uma grande chance para esses megaeventos–administrados para o lucro pela FIFA e pelo COI–trabalhar em prol da cidade, e não justamente o contrário. É uma vergonha que o Rio e o Brasil não assim fizeram. Pelo contrário, jogaram o jogo exatamente como a FIFA orquestrou–não exatamente o jogo bonito–com rara consideração pelo bem-estar do país em questão. A culpa, claro, não cai só sobre eles–a CBF e os políticos estão preocupados em projetar para o mundo uma imagem de “nação desenvolvida”, com “progresso” no coração, ao invés de olhar para dentro e contemplar a cidade que é maravilhosamente cheia de identidade. Apesar de ser uma retórica familiar, mais uma vez se prova verdade. Para o Brasil, mais uma vez, poderia ter sido bem melhor.
As duas faces da “Tragédia”
Quando o Maracanã abriu em 1950, teve um impacto instantâneo: era o maior estádio do mundo, e entre os maiores da história. Foi, também, construído–ou, pelo menos, pronto para jogo–em menos de dois anos (a obra não foi finalizada até 1965). A construção foi uma profunda afirmação, com grande alcance, do sucesso do governo brasileiro, sobre o comando de Eurico Dutra, antigo Ministro de Guerra e Presidente do Brasil de 1946-51. Eurico era aliado político de Getúlio Vargas, tendo trabalhado com ele para estabelecer o Estado Novo, e Vargas precedeu ele (até sua deposição em 1945) e também sucedeu o mesmo em 1951–a presença de Vargas, mesmo não oficial, sempre esteve lá, no sentido que o rápido processo de modernização e desenvolvimento ainda eram de rigueur.
O contexto internacional também foi fundamental. O estádio marcou a era pós Segunda Guerra Mundial com o primeiro grande torneio de futebol, e o segundo maior evento depois das Olimpíadas de Londres em 1948. Enquanto a Europa estava enredada nos resultados e consequências da Segunda Guerra Mundial, o Brasil sediou a Copa do Mundo de 1950–e celebrou com a construção de um estádio impressionante. Foi uma afirmação que ajudou a reforçar a noção de que, possivelmente, o Brasil–com o Rio, a capital na época–era de fato o país do futuro, como Zweig famosamente proclamou anos antes. Ademais, o Rio (e o Brasil) estavam na vanguarda do dominante Modernismo estético e o estádio era uma expressão de sua confiança arquitetônica–construído rápido, construído grande e fazendo uma afirmação.
A primeira pedra foi erguida em 2 de agosto de 1948. Em menos de dois anos–mesmo com a construção ficando atrás do planejado e estourando o orçamento–o estádio estava pronto para sediar uma competição, incluindo a final–que continua sendo um recorde de público em uma partida de futebol. Foi construído em cima de uma antiga pista de corrida de cavalo, perto do centro e em uma área da cidade que estava crescendo junto com a modernização do meio do século, em direção a Zona Norte, e por isso foi um símbolo do desenvolvimento e expansão da cidade. Esta grande tigela de concreto, envolvida em volta do campo, não oferecia muita intimidade ou luxo para assistir os jogos (os banheiro estavam mal acabados para o uso em 1950), e sua arquitetura não era particularmente inspiradora, porém a construção teve um grande impacto e se transformou em um espaço sociável.
A história se repetindo
É fácil ser crítico da situação da década de 2010, mas o que acontece na verdade é a história se repetindo: a construção original do Maracanã em 1950 foi uma farsa, que de algum modo conseguiu ser completada, e o mesmo acontece por agora–é pouco lembrado que lá atrás também foi uma obra de último minuto. Trabalhadores morreram, houve grande controvérsia em relação ao dinheiro público que foi gasto, protestos, e a verdade é que o estádio só foi terminado em 1965. Esse fato é constantemente “esquecido” dado os bons resultados conquistados em campo e pela memória histórica dos jogos, porém a construção em 1950 também foi marcada pela oposição e por problemas similares ao atual, mas, no fim, o que é lembrado é tudo que aconteceu em campo desde a final da Copa. O custo e localização do estádio foram criticados e intelectuais criticaram o enorme investimento em um estádio e a falta de investimento em escolas e hospitais–soa familiar? Os protestos de junho de 2013 eram sobre a mesma coisa. O mesmo aconteceu com as controvérsias em 2010 em relação a construção: infelizmente, a memória que fica será o que aconteceu dentro de campo, e não o contexto contemporâneo. Olhando para esse estádio, na continuidade do centro da cidade, com seu contexto histórico e contínuo, é importante reconhecer seu valor simbólico para o Rio de Janeiro.
Os anos 2010 eram possivelmente uma oportunidade para o Brasil se posicionar no cenário mundial de modo que fosse beneficente tanto para os trabalhadores como para sua imagem pro exterior, como em 1950 construindo o maior estádio do mundo. No entanto, o que se viu foi uma falta de criatividade arquitetônica e inovação com as reformas no Maracanã, e as últimas renovações não melhoraram o estádio consideravelmente e nem transformaram a arena em uma referência mundial. Pelo contrário, a falta de criatividade com a arquitetura é notável e ao invés da reforma focar precisamente em sua nostálgica história de “templo” do futebol, um lugar espiritual, identificando sua história contemporânea, o resultado da reforma foi a construção de um teto e a redução do número de assentos, removendo, assim, os elementos chaves do Maracanã como o barulho, atmosfera e a experiência, danificando seu valor democrático. As mudanças feitas no estádio melhoraram muito pouco a estrutura, instalações, ou arquitetura do estádio, tampouco deixou o lugar melhor ou mais acessível para os fãs. Na verdade o que aconteceu foi o contrário, e é aí que se encontra a tragédia.
“Hoje o Brasil tem o maior e mais perfeito estádio do mundo, dignificando a competência de seu povo e a evolução em todos os ramos das atividades humanas”, reportou o jornal A Noite na noite da abertura da Copa do Mundo, 64 anos atrás. A sensação naquela época, mais do que nunca, era que o futuro tinha chegado–pelo menos em termos de espetáculo, afirmação e reconhecimento. Isso era em 1950, o estádio nacional perfeito para a tão antecipada vitória na Copa do Mundo. Porém, o grande estádio nunca teve seu momento por completo, e a razão disso se encontra nas entrelinhas por trás da construção. Esse era um imenso novo estádio que serviu para transmitir uma imagem de poder e proeminência para a cidade–e nação–para o consumo dentro e fora do Brasil. A tragédia de 1950–é difícil entender a importância do futebol em termos culturais e sociais–foi a perda do jogo para o Uruguai.
Mesmo se o Brasil levantar o troféu no Maracanã no dia 13 de julho, não mudará nenhum aspecto que denegriu a chegada do evento. O mito desse velho estádio foi irrevogavelmente cravado em pedra quando o Brasil perdeu para o Uruguai em 1950, e sua vitória em 2014 não apagaria essa ferida por completo. Do mesmo jeito que, se o Brasil o ganhar, o Maracanã não voltará a ser o que era–um lugar mais democrático, cheio de vibrações e espíritos, um genuíno grande estádio de futebol. O que temos hoje é uma mera imitação, insensível á realidade da cidade ao seu redor. Claro, que se o Brasil ganhar será um grande feito esportivo e a vitória levaria ao esquecimento de muitos problemas que ocorreram durante a preparação da Copa do Mundo. Mas esse é o efeito à curto prazo. No longo prazo, as mazelas–representadas pela falta de criatividade e insensibilidade com as renovações do Maracanã, serão acobertadas. Depois que o canto e dança se forem, o Maracanã irá permanecer como mais um símbolo das problemáticas do Rio, as quais os cariocas são obrigados a tolerar. Isso não quer dizer ser derrotista ou nostálgico–ou dizer que mudanças não são bem vindas; de fato elas são vitais–mas é a natureza das mudanças e do desenvolvimento que contam, mudanças essas que deveriam ser para o Rio, sobre o Rio e com estilo do Rio, e não como coadjuvante da Copa do Mundo e das Olimpíadas.
Tom Winterbottom está concluindo sua tese de doutorado na Universidade de Stanford, no departamento de Culturas da Península Ibérica e da América Latina. Sua pesquisa se concentra no estudo cultural dos centros urbanos, e ele está escrevendo sua dissertação sobre as representações culturais do Rio de Janeiro contemporâneo e os efeito dos Jogos Olímpicos.