Veja Parte 2 aqui.
Nas principais cidades do mundo, existe um fenômeno urbano comum: os assentamentos informais. Segundo a agência das Nações Unidas, UN Habitat, usando o termo inglês “slum”, estas são áreas degradadas de uma determinada cidade que se caracterizam por moradias precárias, com falta de estrutura, saneamento básico e sem regularização fundiária. Esta descrição, a de “slum”, está de acordo com alguns destes lugares, porém nem todos correspondem a isso, e certamente não toca em qualidades de tais assentamentos. Sobretudo não podem ser generalizados nem entre assentamentos numa mesma cidade e muito menos entre diferentes países. Já que as causas da formação destes espaços são várias e cada uma responde a uma situação histórica e política particular. A relevância destas situações não pode ser minimizada e muito menos ignorada, sobretudo quando sabemos que está previsto que em 2050, 3 de 9 bilhões de habitantes morarão em assentamentos informais. De fato, é nos assentos informais urbanos que o crescimento populacional mundial ocorrerá na próxima geração.
Estes assentamentos são conhecidos nas diferentes localidades onde se situam no mundo com diferentes nomes que já nascem seja de simples descrições, de acontecimentos históricos, ou criações da língua mesma. Favela, barrio bajo, barrio de chabola, tugúrio, champerío, villa miséria, bidonville, trench town, baraccopoli, cinturón de miséria são alguns dos nomes que encontramos, olhando só as Americas, para descrever o que em linguagem técnica chamam-se de assentamentos informais ou espontâneos. Sendo que o inglês é a língua da globalização e que serve a maior parte do tempo como instrumento de comunicação entre países de línguas distintas, encontramos com frequência artigos ou textos de difusão global sobre assentamentos espontâneos onde os nomes são traduzidos quase automaticamente por slum ou shantytown. Se procurarmos a definição do termo shanty numa referência de grande difusão como é Wikipedia, encontramos:
Shanty is probably from Canadian French chantier, a winter station established for the organization of lumberjacks.[4] Hutment means an “encampment of huts”. When the term is used by the military, it means “temporary living quarters specially built by the army for soldiers”.[5] The term is also a synonym for shanty town, particularly in developing countries.
(A palavra “shanty” provem provavelmente do francês canadense “chantier”, uma estação de inverno estabelecida para organização de madeireiros. O termo militar: “hutment” (casa improvisada) pode ser usado como sinônimo de “shanty town”, sobre tudo nos países em desenvolvimento).
Não obstante, mesmo se em alguns casos essa definição equivale às definições de assentamentos informais nesses países e que, por tanto, pareça lógico traduzir por qualquer um destes dois termos; me parece que nestes casos precisos, estes nomes comuns passam a ser quase nomes próprios. Já que eles descrevem um contexto único que precisa ser diferenciado.
Esta problemática reassume-se a: se existe um termo que denomina precisamente a situação no país da língua de origem, por que traduzi-lo por outro que só existe em inglês? Não se trata que a equivalência de termos não exista na língua de chegada, mas é que esses termos definem situações tão específicas que não deveriam ser traduzidos.
No momento de traduzir um texto, quem o traduz deve saber que abordagem tomar. Schleiermacher (o tradutor das obras de Platão pro alemão) dizia que uma tradução tem duas possibilidades de ser: ou pode empurrar o leitor ao autor, ou seja, seguir estritamente o original; ou pode empurrar o autor ao leitor, ou seja, o texto original na tradução seja o mais compreensível possível. Schleiermacher preferia a primeira opção, que implica que a tradução provoque no leitor um sentimento de estranheza, “a impressão de se confrontar com algo estrangeiro”.
E é disso que se trata exatamente, tentar aproximar o leitor a situação vivida nesses assentamentos. As situações descritas pelos termos: Villa miséria, barrio bruja, población callampa, etc… são todas tão peculiares que nem no caso de países vizinhos estas poderiam ser consideradas como situações equivalentes. É dizer que neste caso estamos falando da tradução de termos que descrevem uma realidade sócio-política única de cada país. E mesmo tendo características em comum, elementos do tipo: a época de estabelecimento, as regiões que estão situadas, o desenvolvimento ao longo do tempo, a situação atual; são pontos totalmente únicos a cada assentamento informal. Pois o que une eles todos é a falta de regulamentação, o que também é responsável por tão diversos resultados. Podemos então afirmar que estes nomes fazem parte de uma política de identidade, que enfatiza nos direitos das minorias e das comunidades marginais no interior de um Estado, e tentam-se definir, e obter uma identidade legítima, o direito de proteger uma identidade que sentem única, própria e original, uma identidade à qual pertencem. Respeitar estes termos que formam parte da consciência coletiva das respectivas sociedades, se estabelece a base para a possível melhora das circunstâncias que refletem.
O fato de traduzir termos próprios que tenham um significado específico e único ao território no qual são utilizados é generalizar uma identidade por meio de termos menos pertinentes ao conceito e próprios a uma cultura estrangeira. Essa generalização, que é talvez resultado de um estudo superficial que siga uma lógica do tipo: “Se parecem uns com outros, é porque deve ser o mesmo”. Essa lógica aplaca culturas, normaliza conceitos, e cria uma universalidade nem sempre necessária ou verdadeira. Por exemplo a página em inglês no Wikipedia sobre slum detalha o seguinte:
“Slums, also called favelas and townships, are a common feature midst major cities of the world. Above are nine examples.”
(Slums, também chamadas de favelas e townships, são comuns nas maiores cidades do mundo. Acima nove exemplos.”)
O “também chamadas” dessa frase, reduz um leque de possibilidades à 3 termos.
Ainda pior, se concentrar no termo mais usado: slum. O que acontece se simplesmente jogar “slum” no Google? Uma generalização total, que desqualifica todas as qualidades e conquistas, e por consequência imprópria quando o termo é aplicado às favelas brasileiras: “Uma rua ou distrito urbano esquálido e superlotado habitado por pessoas muito pobres”.
Mas então, se não for por meio de tradução direta, que estratégias propor para tratar esses termos numa língua estrangeira?
Venutti (tradutor, historiador e teórico da tradução) propõe a estrangerização que ele define como o que seria dar importância às diferenças linguísticas e culturais do texto de origem e plasmá-las tal e como estão no texto de partida no texto de chegada. Adotar esse método leva a utilizar uma estratégia de tradução que é regularmente excluída pelos valores culturais que dominam a língua de chegada, e assim, de algum jeito, se combate a ideologia “domesticadora”, essa ideia de querer passar tudo ao inglês, e não aceitar a diversidade oferecida por outras línguas.
Outra estratégia proposta é a explicitação, partindo da hipótese que nomes próprios e de lugares, assim como nomes de acontecimentos e fenômenos típicos de uma cultura não devem ser traduzidos mas devem ser apresentados sob a forma de tradução descritiva. Essa tradução descritiva ou explicitação trata-se de uma perífrase explicativa que se dá, segundo o tradutor Vázquez Arroya quando “se expressa na língua de chegada o que esta implícito na língua de origem”, é dizer: um termo pode ter uma carga cultural, esse contexto que é conhecido pelos leitores da língua de origem que é estrangeiro para aqueles da língua de chegada, então o tradutor tentará explicar esse contexto num jeito simples e reassumido no texto traduzido.
Assim, a forma mais pertinente de se referir a estes termos num texto de língua estrangeira, seria usar o termo original junto uma explicitação da definição deste no contexto de origem, para poder passar pro leitor da língua de chegada o significado exato, e não uma aproximação pouco acertada na sua língua. Desse jeito o leitor sentiria-se mais próximo à realidade que desconhece e ao mesmo tempo entenderia que é uma realidade totalmente diferente, por tanto estrangeira. Assim, da mesma maneira que o texto de origem reflete uma situação única, o texto traduzido estaria respeitando culturas e identidades diferentes. Fazendo que o leitor passe a “formar parte” da cultura de origem e evitando que a cultura de origem passe a fazer parte de um elemento global.
No entanto, não podemos deixar de lado o fato que a maioria destes termos por descrever partes de uma sociedade que é marginalizada, pesam neles uma conotação extremamente negativa e são utilizados muitas vezes pejorativamente. Razão pela qual muitas vezes estão estigmatizadas na fala diária, até quase chegar a ser considerada politicamente incorretos. Depois de contatos com moradores de favelas, vemos que muitos optam por usar o termo “comunidade”. Porém, podemos considerar que o uso constante e assumido destes termos podem levar à aceitação desta realidade, por parte da sociedade, do governo e de entidades públicas e privadas. Assumir, e não ignorar essas situações, reconhecendo elas individualmente, qualidades e desafios caso à caso, é um importante passo para realizar mudanças necessárias. O fato de não utilizar eufemismos ou “generalizarmos”, mas o termo dado à cada caso pela mesma sociedade, ajuda a não banalização e a conscientização destas situações.
Considero que aceitar a conotação negativa de um termo, provoca com o tempo a necessidade de sair dessa conotação, de terminar com essa realidade. E com o tempo produzir modificações tanto internas quanto externas à esses assentamentos. Tomando por exemplo as favelas brasileiras: o termo entendia uma comunidade precária, mas com o passar dos anos e sobretudo nesta última década, essa realidade tem se visto modificada. Porém o termo “favela” guarda essa história, ainda muitas vezes com uma conotação negativa, porém cada vez mais reconhecida por sua importância histórica, empreendedora e criativa: as favelas demonstram no dia a dia que não são o que eram e muito menos slums.
No que concerne aqueles que levam uma conotação leve, tipo “assentamento humano” seria bom simplesmente promover a realidade, e perceber a situação real, e com que grau de humanidade são tratados. Estes eufemismos, se bem politicamente corretos, podem levar à aceitação desses assentamentos como algo comum.
A língua é praticamente um órgão vivente, neologismos nascem constantemente, e significados podem se modificar segundo a necessidade dos indivíduos. Todos estes termos podem passar a ter um significado novo, ou simplesmente podem cair no desuso se algum dia os assentamentos informais como tais deixassem de existir e passarem a ser vistos realmente como são–parte importante da sociedade–a receber direitos, a desfrutar da cidade, e seus moradores ser considerados verdadeiros cidadãos desta e não só como um voto potencial no momento das eleições.
Leia também: Traduzindo ‘Favela’ Parte 2: Uma Viagem pela América Latina.