Julio Otoni é uma favela situada entre os bairros de Laranjeiras e Santa Teresa, na Zona Sul do Rio. Toda a comunidade está localizada em um único endereço: Rua Doutor Julio Otoni, 298.
Chegando neste endereço, sou recebida por Sizenaldo Marinho, nascido e criado na comunidade e ativo há anos em uma série de iniciativas. Um centro comunitário que Sizenaldo ajudou a estabelecer em 2004 vem oferecendo programas de reciclagem, oficinas de fabricação de papel, aulas de percussão e aulas particulares. Sizenaldo já deu aulas no centro, coordenando projetos com voluntários internacionais. Sizenaldo também representou a comunidade no Conselho de Segurança de Santa Teresa. O centro comunitário é um importante recurso na comunidade, onde falta investimento público. Infelizmente, Sizenaldo diz que, ultimamente, o centro “fica mais fechado do que aberto”.
Os primeiros moradores de Julio Otoni se estabeleceram nos anos 50, construindo casas de madeira e argila, e também tijolos maciços da época. Quando Sizenaldo–que hoje divide seu tempo entre uma casa em Jacarepaguá, na Zona Oeste, e Julio Otoni–nasceu, em 1968, a comunidade era formada por 15 famílias em 29 casas. Em 1986 o governo trouxe serviços básicos–esgoto, água, coleta de lixo, etc–para a comunidade. Desde os anos 1990, entretanto, ela tem se expandido rapidamente, apresentando um crescimento que ultrapassa de longe as obras públicas para acomodar essa maior necessidade. Infraestrutura e serviços públicos inadequados, em conjunto com o surto populacional, têm gerado uma sensação de negligência em relação aos espaços públicos e comunitários.
Sizenaldo quer mudar isso: “Eu queria que os serviços entrassem aqui. A UPP, por exemplo, entrou. Mas não entrou os outros serviços”
Sizenaldo vê na expansão o maior desafio que a comunidade enfrenta: “Ao contrário do que as pessoas pensam, nenhuma comunidade quer crescer mais do que já cresceu”. Sizenaldo expressa que, quando as populações das favelas ultrapassam a escala para a qual foram investidas, elas se tornam “desurbanizadas” e “desumanizadas”, na medida em que crescem além de suas capacidades.
A expansão de 1990 a 2000 transformou a favela em um lugar menos familiar para Sizenaldo, especialmente quando os traficantes entraram na comunidade. Sizenaldo descreve: “Os morros começaram a trocar de soldados, e entra um cara aqui que não tem ligação nenhuma com a comunidade. Ele não respeita os mais velhos, não respeita a história do lugar. A função dele aqui é só capitalista… Ele não está aqui para respeitar ninguém. Respeita o capital”.
O crescimento de Julio Otoni foi ainda mais impulsionado pela remoção de 96 casas da vizinha favela Vila Alice, tendo sido iniciada em 2005 e concluída em 2007, com a remoção da comunidade inteira. Os traficantes ofereceram o centro comunitário em Julio Otoni como território de ocupação para os moradores removidos da Vila Alice, o que incitou Sizenaldo a falar e reivindicar o espaço da comunidade para os propósitos planejados. “O líder comunitário vive no fio da navalha”, diz Sizenaldo. Sua reclamação aos traficantes resultou em ameaças de morte que o forçaram a deixar a comunidade em 2006.
Como o Rio de Janeiro vivenciou uma intensa especulação imobiliária nos últimos anos, surgiu uma demanda por habitações acessíveis que afeta especialmente as favelas centrais na Zona Sul do Rio. Rodeada pela área de preservação ambiental (APA) São José e por bairros abastados, a Julio Otoni tem pouco espaço para se expandir, aumentando as tensões em torno do direito a construir e ocupar espaços públicos e comunitários. Enquanto o censo de 2010, realizado pelo IBGE reconheceu 231 lares e 758 moradores em Julio Otoni, Sizenaldo estima que o quadro real seja de aproximadamente 400 famílias e 1500 habitantes. Essa discrepância é resultado da combinação de três fenômenos: coleta de informações incompleta, coleta de informações inadequada para justificar a redução de serviços públicos para uma população que na verdade é maior, e o crescimento populacional nos últimos cinco anos, desde que o censo foi realizado.
Apesar do crescimento, Sizenaldo percebe um sentimento de vazio. Ele aponta para uma praça na entrada da comunidade, onde festas juninas populares eram realizadas. Antes um ponto de encontro animado para a comunidade, agora uns poucos bares e outras construções invadiram o lado direito da praça, enquanto pilhas de materiais de construção são encontradas do lado esquerdo. Enquanto percorre a rua, Sizenaldo vai até a moradora de longa data Regina Celia, que diz: “É um lugar tão bom de morar. É tranquilo… perto de tudo. Mas parece uma comunidade abandonada”. Mostrando orgulhosamente sua casa azul brilhante, Regina diz: “Eu cuido da minha casa. Mas se eu tivesse dinheiro para ajudar, eu cuidaria daqui”, apontando para uma pracinha com brinquedos desmontados de um parquinho infantil.
“O que a comunidade tem vontade de fazer”, explica Sizenaldo, “é reativar a creche. Tem pessoas aqui que teriam capacidade de tocar a creche outra vez”. Apontando para a construção deteriorada onde a creche funcionava, Sizenaldo observa uma parede marcada com furos de bala. Após um período de violência, os moradores têm aproveitado momentos de tranquilidade nos últimos anos. Na época em que funcionava, a creche tinha um papel importante para as famílias de trabalhadores da comunidade. Atualmente, há ocupantes–desconhecidos de Sizenaldo–no espaço.
Enfrentando a falta de investimento público em infraestrutura e serviços, os moradores de Julio Otoni, frequentemente, precisam resolver os problemas que surgem por conta própria. Apontando para um poste de telefone e luz inclinado prestes a cair, Sizenaldo explica: “A gente manda solicitação para a Light, a Light não vem. A gente manda solicitação para a Oi, a Oi não vem… Cada fio desse é um telefone de um morador. Aí quando arrebenta um, a gente não sabe nem de quem é. Tem que pegar lá na ponta na casa da pessoa e vir vendo até chegar onde é o fio”.
Enquanto muitos lares são reforçados de forma resistente, chuvas fortes representam riscos ambientais para algumas das casas mais precárias na comunidade. Há três meses, a base de uma casa começou a desmoronar. Sizenaldo conta que “As pessoas ficaram com medo de intervenção, pois as autoridades poderiam falar: ‘Ah, vão ter que demolir…’” e então eles “nunca chamaram a Defesa Civil’. Ao invés disso, a família arrumou um jeito de reformar a casa por conta própria.
A comunidade recebeu investimentos apenas uma vez–em 1986, durante o mandato do governador Leonel Brizola. Na época, o governo do Estado providenciou um técnico e materiais como parte do “Projeto Mutirão” para tratar o problema do saneamento. Os moradores se uniram em um mutirão para construir o esgoto. Já hoje em dia, o esgoto só contempla uma parte da favela: “A comunidade começou a se adensar, começou a crescer mais, e aí a questão do esgoto voltou de novo”. Sizenaldo identifica o perigo representado por uma pequena vala de esgoto aberta percorrendo um beco: “Já caiu criança aí… já caiu uma senhora.”
A coleta de lixo (ou a falta dela) representa um desafio adicional para a comunidade. Em resposta ao cancelamento do Gari Comunitário–um programa em que a Prefeitura empregava moradores locais como garis nas favelas–um morador, Seu Lima, tomou a iniciativa individual de limpar os espaços públicos e espalhou cartazes que encorajam a consciência ambiental na comunidade.
Essas ações individuais e coletivas de “faça você mesmo” demonstram a capacidade dos moradores de criarem soluções alternativas na falta do fornecimento de serviços públicos. Ainda que muitas das questões que Sizenaldo identifica sejam de larga escala, ou seja, problemas que ocorrem em toda a cidade, a desenvoltura dos moradores não absolve a prefeitura da responsabilidade de resolver os desafios públicos.