O Rio de Janeiro é conhecido como um lugar desigual. Resultado da desigualdade histórica e conceitos de planejamento urbano que surgiram no início do século 20, a segregação socioeconômica da cidade é altamente conduzida pela renda e status, que vão declinando dos bairros de classe alta na Zona Sul em direção ao Centro, até os subúrbios da Zona Norte e da Zona Oeste. Padrões de desigualdade são também caracterizados por um mosaico urbano, onde favelas e outras formas de moradia informal estão localizadas próximas a bairros de classe alta. Muitos aspectos destas desigualdades espaciais em áreas urbanas causam impactos diretos na vida diária dos moradores do Rio de Janeiro.
Desigualdade baseada em pobreza e saúde são frequentemente exacerbadas no cenário urbano, e com isso as pesquisas sobre o sistema de saúde têm ultimamente focado nas diferenças intra-urbanas. Brevemente, a revista acadêmica Cadernos de Saúde irá publicar uma edição sobre saúde urbana destacando seus estudos na desigualdade de acesso a saúde no Rio de janeiro. Este artigo apresenta uma breve visão geral dos resultados e conclusões deste estudo.
Para medir a desigualdade da saúde em todo o município do Rio de Janeiro, criamos um Índice de Saúde Urbana (ISU) para todos os bairros da cidade entre 2002 e 2010. O índice incorpora oito indicadores usando dados de mortalidade: diabetes, doenças do coração, câncer de mama, tuberculose, HIV, homicídios, acidentes de trânsito e mortalidade infantil. Os resultados revelam que, globalmente, o nível de desigualdade abaixou em 2010 e o nível elevou-se desde 2002. Para os indicadores individuais somente diabetes e tuberculose registraram um ligeiro aumento na desigualdade.
No entanto, os resultados mapeados mostraram que a saúde da população do Rio de Janeiro permanece distribuída de forma desigual. Divisões espaciais bem conhecidas ainda são persistentes e existem enormes desigualdades intra-urbanas, quando os dados são desagregados por bairro.
Em 2010, vemos índices baixos nos bairros da região norte e central. A região norte e noroeste permanecem particularmente incapazes de fechar a lacuna da equidade.
Análises de correlação bivariada a nível de vizinhança revelaram que o estado de saúde está associado com renda e outros indicadores econômicos e sociodemográficos. O preço médio por metro quadrado do apartamento de um bairro e sua distância do Centro da cidade estão altamente correlacionados com o ISU. Em particular, os indicadores individuais, tais como diabetes, tuberculose, homicídio e mortalidade infantil mostraram maiores coeficientes de correlação e parecem servir como melhores fatores determinantes das condições sócio-ambientais.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) entende a saúde como um produto de vários subjacentes Determinantes Sociais da Saúde. Como no caso do Rio de Janeiro, problemas de saúde são freqüentemente associados com condições de vida desfavorecidas. O espaço urbano é, então, um Determinante Social da Saúde, uma vez que produz certos resultados de saúde proporcionados e previstos por determinadas circunstâncias sociais. Seguindo a argumentação da OMS, é aqui onde as disparidades de saúde são transformadas em desigualdades, porque elas são sistemática e socialmente produzidas. O espaço pode ser um produto das desigualdades sistemáticas pré-existentes que são geradas por uma complexa interação de padrões políticos, econômicos e sociais.
No Rio, os bairros com uma grande percentagem de moradores pobres e negros têm os piores valores no ISU. Estes resultados convidam a reflexões sobre a história da marginalização social e espacial dos moradores pobres e negros da cidade. Em bairros que apresentam os piores índices de saúde, nem os lugares, nem os seus moradores são subdesenvolvidos. Tal argumentação estigmatiza os habitantes da cidade menos privilegiados. De um ponto de vista igualitário, a sociedade e as políticas públicas deveriam fornecer os padrões e oportunidades necessários para melhorar as condições de vida e os modos de uma vida saudável. O Brasil, como um país do BRIC moderno e progressista, deveria realizar a sua responsabilidade em proporcionar ambientes saudáveis e condições de vida que permitam que doenças como a tuberculose sejam controladas.
Os resultados revelaram que a tuberculose, mortalidade infantil e diabetes estão estreitamente relacionados com as condições ambientais e sociais urbanas (Figura 2). Melhorar o diagnóstico e os esquemas terapêuticos eficientes, portanto, terá apenas um impacto limitado. O Brasil possui extensos programas para tuberculose e de medicamentos de HIV, mas as dimensões espaciais e socioeconômicas precisam ser reconhecidas e enfrentadas a fim de fazer com que qualquer terapia seja bem sucedida.
A culpa para as desigualdades na saúde não pode ser atribuída unicamente ao setor da saúde. Fechar a lacuna requer uma sociedade integrada para enfrentar os desafios em diversos setores. Uma sociedade civil ideal tem uma consciência crítica em relação as condições de vida injustas na sua vizinhança imediata. Tal sentimento de solidariedade e de coesão social é obrigatório para a redução das desigualdades, mas isto muitas vezes falta na política brasileira. O Estado tem, naturalmente, um papel especial a desempenhar no processo de construção da igualdade, uma vez que são as instituições governamentais que têm os instrumentos de planejamento e o poder para implementar novas políticas. No Brasil, as teorias de Lefebvre, de Direito à Cidade de Harvey, e de Saúde para Todos de Alma Ata são abrangidas em diversas formas legislativas, mas há discrepâncias quando essas normas são traduzidos para a prática.
Antes dos Jogos Olímpicos de 2016 serem anunciados, não havia um conceito de desenvolvimento urbano para tratar destas disparidades estruturais. Agora que os Jogos Olímpicos serviram como um catalisador para novas políticas urbanas ao lado de uma crescente consciência pública, o Rio de Janeiro tem uma oportunidade histórica para a mudança. Os protestos de 2013 demonstraram que a saúde, além de educação e transporte, é uma das questões mais importantes que as pessoas querem abordar. Está claro que alguns processos básicos estão em andamento nos quais a política, o setor da saúde e a sociedade civil se alinharam para preencher a lacuna da igualdade social e espacial. Evidências mostram que não é, somente, o investimento em ambientes construídos que muda os padrões de desigualdade, mas sim investimentos em programas sociais.
Os resultados desta pesquisa apoiam o Programa de Saúde da Família (PSF), que foi iniciado pelo governo federal e implementado pela Secretaria Municipal de Saúde em 2008. O PSF prevê cobrir 70% da população do Rio de Janeiro em 2016. O PSF é baseado em um abordagem comunitária que responde às características individuais dos bairros locais. É focado na prevenção e controle de doenças e deverá permitir uma melhor supervisão e avaliação. No entanto, o PSF aborda apenas cuidados de saúde básicos e portanto, não será capaz de atender plenamente as dimensões socioeconômicas das desigualdades na saúde.
Uma característica fundamental das sociedades civis humanitárias e sofisticadas é a luta para alcançar um estado de equidade na saúde da população. O desenvolvimento do Brasil não deve apenas ser avaliado através de marcadores econômicos, mas sim pela transformação da sociedade como um todo. A saúde é um dos melhores indicadores de bem-estar dos habitantes de uma cidade, em geral, e do desenvolvimento urbano progressivo. Nosso estudo do ISU mostrou que a desigualdade na saúde está diminuindo lentamente, mas a igualdade real para a saúde não pode ser uma realidade sem a luta política para a justiça social.
Para ler mais, veja o trabalho de pesquisa completo em Cadernos de Saúde por M. Bortz, M. Kano, H. Ramroth, C. Barcellos, S. Weaver, R. Rothenberg, e M. Magalhães, intitulado “A desagregação das desigualdades na saúde no Rio de Janeiro, Brasil, 2002-2010, através da aplicação de um índice de desigualdade de saúde urbana”. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 30 (J), de 2015.
Ver também extenso material da Organização Mundial de Saúde sobre a mensuração das desigualdades na saúde urbana.
Martin Bortz é doutorando de Medicina na Universidade de Heidelberg, Alemanha. Sua tese de doutorado é sobre a desigualdade da saúde na cidade do Rio de Janeiro. O projeto é realizado em colaboração com a OMS Centro para o Desenvolvimento da Saúde Kobe, FIOCRUZ-ICICT Rio de Janeiro e o Instituto de Saúde Pública em Heidelberg.