Lições das Favelas Cariocas para a Política Habitacional Parte 1: Construção e Comunidade

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Esta é a primeira matéria de uma série de cinco intitulada Lições das Favelas Cariocas para a Política Habitacional. Esperamos que essa série apoie debates sobre habitação e urbanização nas favelas, e que o novo prefeito, Marcelo Crivella, crie políticas voltadas aos desafios que as favelas enfrentam, enquanto reconhecendo e fortalecendo seus atributos positivos, através do engajamento ativo dos moradores na criação e implementação de tais políticas.

Lição 1: Construções em favelas são diferentes de construções na cidade formal

A construção de uma casa na favela traz desafios diferentes daqueles enfrentados na cidade formal. Uma das diferenças da construção na favela é que ela é feita de forma iterativa, levando vários anos para ser finalizada e envolvendo a gestão do morador durante todo o processo.

“As favelas foram construídas por pessoas e não por políticas públicas. Quando as políticas públicas chegam, assim como hoje, elas chegam pela metade. Foram os moradores que construíram a favela. Essa é a ideia de coletividade e de pertencer ao local.” – Cidade de Deus, Zona Oeste

As residências nas favelas crescem e se expandem juntamente com as necessidades das famílias. Ao contrário da crendice popular de que elas são mal construídas, geralmente, ao longo dos anos, as casas são construídas com tijolos, concreto e aço, já que ao longo de gerações a maior parte dos salários das famílias são destinados a tais melhorias. Os materiais comuns incluem concreto, tijolos, vigas de aço, areia e pedras. Normalmente, o processo de construção é controlado por normas internas (embora, em alguns casos onde POUSOs têm sido estabelecidos, o governo regula a construção) e se beneficiam da experiência dos construtores que moram e trabalham na comunidade.

“Aqui no Laboriaux tem bastante pedreiro. Meu vizinho é um, ele mora ali, a duas casas acima. Um é um tio meu. Tem um outro que eu conheci na rua mesmo, ele estava trabalhando em uma outra obra. É assim, você olha e observa o serviço do cara, para decidir se vale a pena conversar. E também é preciso pensar no pagamento.” – Rocinha, Zona Sul

O primeiro passo na construção é encontrar um lugar para construir e decidir como construir. Em várias favelas mais antigas, devido à falta de espaço, os moradores têm que construir no topo das casas já existentes ou, criativamente, expandir as mesmas. Nas comunidades mais distantes as restrições são dinheiro e tempo.

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“A parte mais difícil é administrar o projeto. O material, os recursos, as compras, o armazenamento, a limpeza, a contratação de pedreiros, explicar tudo. Administrar a obra é difícil.” – Rocinha

Em primeiro lugar, tem o problema do financiamento do projeto. Em muitos casos, as famílias vão guardando e gastando o dinheiro lentamente, ao longo de décadas, para deixar as casas do jeito que elas querem. Métodos tradicionais de financiamento, através de bancos, não são acessíveis, sendo um grande obstáculo para a construção, já que os moradores têm que contar em realizar pagamentos com parcelamentos informais ou pagar em dinheiro.

“Hoje você tem uma questão quando você compra uma casa na favela–mais ainda na Zona Sul, mas talvez também na Zona Norte–você tem que pagar tudo em dinheiro à vista. Eu acho que a negociação talvez seja a parte mais fácil, porque as pessoas se entendem melhor. Eu acho que a relação é muito mais pessoal quando você compra uma casa na favela.” – Cabritos, Zona Sul

Moradores das favelas também enfrentam problemas com a construção em si. Para as comunidades com maior população nos morros, as dificuldades incluem encontrar maneiras de levar o material para cima do morro, onde será a construção, e encontrar lugar para armazená-lo. A logística de construção também é complexa, requerendo administração de tempo, do material e do orçamento, e a possibilidade de ter vários trabalhadores, tudo isso ao mesmo tempo em que as pessoas estão tentando morar no local.

A parte da logística e a parte do espaço são as mais difíceis. Carregar o material, ter um local para colocar o material e o espaço para construir, pois ultimamente só tem espaço para cima. A parte mais fácil de uma construção de uma moradia na favela é a laje, porque as pessoas se reúnem para bater a laje.” – Complexo do Alemão, Zona Norte

As casas não são as únicas partes da comunidade que os próprios moradores constroem; existem vários projetos de infraestrutura pública construídos nas favelas pela comunidade. Existem ainda alguns casos, como na Asa Branca, onde uma infraestrutura de esgoto construída pela comunidade atingiu um nível de qualidade suficiente para integrar-se ao sistema de saneamento formal da cidade.

A natureza do faça você mesmo das construções nas favelas nasceu das necessidades locais, e geralmente precárias no início, mas em última análise elas podem transformar-se em ativos para a comunidade. As políticas públicas deveriam levar em consideração o design da infraestrutura existente e reconhecer que o design original do sistema de infraestrutura é a resposta às necessidades e às circunstâncias locais. Portanto, a comunidade deveria ser consultada de maneira significativa e deliberada sobre a adaptação à regulação. A identidade coletiva é um atributo positivo das favelas e as políticas públicas devem trabalhar para construir e fortalecer essa identidade.

Ao invés de impor métodos de construção tradicionais usados na cidade formal, as políticas deveriam se adaptar à natureza informal das favelas do Rio e ajudar a garantir que as construções das casas continue a ser adaptável às necessidades das famílias, e que sejam estruturalmente firmes, com saneamento básico e com a preservação do meio ambiente.

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Lição 2: Os moradores se beneficiam da natureza coletiva de suas comunidades e os governos podem aproveitar isso para promover dignidade

Há mais de 1.000 favelas no Rio e cada uma dessas comunidades tem uma história única. É fundamental que as políticas públicas respeitem essas histórias, já que muitas vezes o senso de identidade é maior em favelas do que na cidade formal.

É perigoso criar políticas que vejam as favelas, as quais são cheias de história, como “menos do que são”. O estigma associado com essas percepções pode fazer as políticas públicas penalizarem e criticarem as favelas pelos seus “problemas”, sem focar em seus ativos e, portanto, podem desmantelar os ativos no processo de busca por soluções.

“Com o tempo, eu comecei a ver que é um lugar bonito. Quando eu realmente comecei a olhar, eu comecei a admirar a beleza. Eu comecei a gostar mais de lá, das cores. A oposição entre a favela e a cidade formal é desse tipo de natureza. Da minha casa você pode ver a Pedra da Gávea e ela em contraste com a favela fica muito bonita. A favela à noite parece uma árvore de Natal gigante por causa das muitas luzes acessas.” –  Rocinha, Zona Sul

Há muitas pessoas que desejam permanecer em suas comunidades, mesmo se a escolha de mudar para lá em primeiro lugar não tenha sido delas. Se sentir confortável e orgulhoso do lugar onde se vive é importante não só para o bem estar de uma pessoa, mas também para o amplo ecossistema em que a pessoa vive. O design da política pública de habitação deve reforçar isso.

“Eu não escolhi Asa Branca, Asa Branca me escolheu, é diferente. Eu cheguei aqui e tinha 3 barracos de madeira na lama. Eu trabalho na transformação desse local, e eu faço por gosto.  Eu criei meus filhos todos aqui. São sete filhos. Asa Branca salvou minha vida. Nós conseguimos viver aqui tranquilamente.” – Asa Branca, Zona Oeste

A infraestrutura física das comunidades tem uma história por si só e é o resultado de décadas de investimento da comunidade. A incorporação de medidas participativas reais para a formulação de políticas de urbanização irá garantir resultados produtivos e eficazes para os moradores, enquanto também aumente o engajamento e orgulho da comunidade, e o senso de pertencimento e de cidadania.

Por consequência, as favelas do Rio têm qualidades que, atualmente, planejadores urbanos em todo o mundo procuram imitar. Muitas favelas estão perto de áreas de classe média ou alta, o que significa que o Rio já se beneficia da mistura de rendas nos bairros, o que muitas cidades estão trabalhando duro para promover. A diversidade socioeconômica beneficia cada região do Rio, ou seja, os ecossistemas econômicos se beneficiam com o fácil e amplo acesso a uma gama de competências, profissões, qualidades culturais e trabalhadores, pelo menos é o que acontece nas favelas da Zona Sul, por proporcionar trajetos mais curtos do que seria necessário para uma pessoa que morasse na periferia urbana.

“O pobre não quer facilidade porque a gente não tem facilidade. É mais difícil para a gente! O pobre não tem facilidade com nada. Se você quer transporte de qualidade, você tem que brigar. Se você quer luz, você tem que comprar o fio e instalar e chamar o cara da instalação. Se você quer água na sua rua que não está passando, você tem que comprar o cano e botar.” – Cidade de Deus, Zona Oeste

Talvez o ativo mais importante das favelas seja os preços acessíveis da moradia ali encontrada. Como mais de 23% da população do Rio vive em favelas, elas acabam cumprindo a função fundamental como o estoque de moradias a preços acessíveis do Rio. Políticas devem maximizar os ativos existentes nessas comunidades, como por exemplo sua amigabilidade para o pedestre, construções baixas porém de alta densidade, uma mistura de residências e empreendimentos, baixo custo de vida e a proximidade com o local de trabalho.


Série Completa: Lições das Favelas Cariocas para a Política Habitacional

Parte 1: Construção e Comunidade
Parte 2: Ação Coletiva e Necessidades Diversas
Parte 3: Desconfiança, Titulação e Gentrificação
Parte 4: Habitação Pública
Parte 5: Propondo Soluções