A Favela como Termo Territorial Coletivo*: Uma Solução para Evitar a Remoção e a Gentrificação?

Click Here for English

Esta é a segunda matéria de uma série de três que resume relatórios sobre leis habitacionais no Brasil, organizados pelo Cyrus R. Vance Centro para Justiça Internacional (Cyrus R. Vance Centro para Justiça Internacional) a pedido da Comunidades CatalisadorasO segundo relatório, resumido em parte abaixo, com informações adicionais compiladas pela equipe da Comunidades Catalisadoras, foi produzido por Freshfields Bruckhaus Deringer US LLP. Para o relatório completo, clique aqui.

Inextricavelmente ligadas à identidade do Rio por mais de um século, as favelas, hoje, têm uma função essencial ao oferecer moradias a preços acessíveis a quase um quarto dos habitantes da cidade. Nos últimos anos, contudo, muitas favelas estiveram sujeitas a uma imensa pressão devido às remoções e a gentrificação, causadas pela especulação imobiliária, que tem afetado a cidade como um todo. Apesar das UPPs do Rio terem gerado impactos variados de comunidade para comunidade, a percepção externa de uma melhora na segurança (pelo menos até recentemente) permitiram que os preços das propriedades em comunidades pacificadas aumentassem. Especialmente, em áreas com vistas ou localizações altamente desejáveis, como VidigalSanta MartaBabilôniaCantagalo e Cabritos, todas na Zona Sul, estrangeiros ou brasileiros do ‘asfalto’ estão se mudando para as favelas e comunidades têm experienciado um aumento nos preços das habitações.

Embora as áreas que enfrentam ameaças de remoção possam estar mais asseguradas se os moradores tiverem os títulos das terras, em relação à gentrificação, as favelas com título de posse são as que correm maior risco. Isso acontece porque, com a titulação, as favelas entram efetivamente na formalidade, com os valores do mercado (o mercado informal de propriedades no Rio é bastante dinâmico, e acaba criando efetivamente um mercado paralelo acessível em comparação ao mercado formal e completamente sem regulações que domina a cidade). Com os preços crescentes das propriedades, moradores com menos renda, mesmo aqueles com título de posse, são empurrados para as periferias da cidade, uma vez que não podem mais bancar o alto custo de vida gerado ao seu redor. Apesar da gentrificação e as remoções terem se acalmado com a atual crise econômica, é provável que continuem a exercer pressão nas favelas a longo prazo.

Em uma cidade na qual falta qualidade adequada na infraestrutura da habitação pública, manter as favelas acessíveis a medida em que elas se desenvolvem é crucial para o sucesso da cidade como um todo. Os valores do mercado imobiliário, por definição, não atendem às demandas por acessibilidade das classes sócio-econômicas mais baixas (normalmente 20-30%) da população de uma cidade, então, transferir as habitações da favela para o mercado formal não irá levar em conta as necessidades desse grupo–apenas irá deslocá-lo, causando a formação de novas favelas. A segregação socioeconômica leva a conflitos crescentes, como testemunhamos diariamente no Rio. E tensão e infelicidade reduzem a qualidade de vida.

Então, como proteger o desejo de moradores de baixa renda da favela de permanecerem em seu território e, ao mesmo tempo, dar a eles acesso aos benefícios de ter uma propriedade e a habilidade de acumular riquezas e ter acesso ao crédito? Conceder títulos de terras individuais tem sido por muito tempo o método presumido para ter acesso a esses benefícios, seguindo a popularização dessa estratégia proposta pelo economista peruano Hernando de Soto nos anos de 1990.

Contudo, muito se aprendeu desde então e esse ‘consenso’ está, hoje, sujeito a debates e exceções. Apesar da titulação e documentação serem de incrível ajuda, a suposição de que títulos individuais sejam a solução pode ser questionada, uma vez que, com eles, vem um foco unilateral direcionado aos benefícios individuais de cada morador, o que pode não se alinhar com a manutenção das qualidades e benefícios que bem com a vida ’em comunidade’, o que pode afetar negativamente outros indivíduos, ou mesmo aos possuidores dos títulos de terras, se as consequências para a comunidade que impactam estes indivíduos não forem contempladas. A titulação também leva ao aumento dos preços locais e com frequência força os moradores–até mesmo aqueles com título de posse–a deixarem o local.

Ciente da importância dos baixos custos associados à vida nas favelas para seus moradores e de outros benefícios das favelas, uma legislação federal brasileira foi instituída proativamente para garantir a persistência desses benefícios através da política federal de Área de Especial Interesse Social (AEIS). Infelizmente, como muitas das políticas bem-intencionadas no Brasil, sua implementação foi amplamente ineficiente no Rio. Implementada localmente na forma de Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS), o programa deveria colocar as terras das favelas em observância à lei, preservando a acessibilidade e o estilo das construções nessas comunidades. Apesar desse processo ter colocado cerca de 171 lotes de terra em conformidade–com aproximadamente 120.000 pessoas desde janeiro de 2014–em casos de favelas localizadas em uma área altamente cobiçada, a titulação individual não protege estas comunidades de serem corrompidas pela especulação imobiliária. Além disso, se os direitos de propriedade não forem reforçados adequadamente, há um risco de que se tirem vantagens dos moradores enquanto eles se ajustam a serem detentores dos títulos.

Outra opção de política disponível é o Termo Territorial Coletivo*–Community Land Trust (CLT na sigla em inglês). Uma breve história dessa opção de política pode ser encontrada aqui, mas o texto abaixo foca nas medidas logísticas específicas que podem tornar CLTs uma realidade. Nos Estados Unidos, CLTs têm se mostrado a mais robusta solução de política habitacional social em ambos os extremos do mercado–tanto durante recessões econômicas quando há um aumento nas execuções de hipotecas (remoções) e no auge do mercado especulativo quando o risco maior é a gentrificação.

gentrification-banner-santa-marta

As comunidades adquirem a terra ou designam-la via Termo Territorial Coletivo

O primeiro passo ao se criar uma CLT é adquirir a terra. Na maior parte dos locais que introduziram CLTs, esse é o passo mais difícil, devido aos altos custos de capital para se comprar um terreno privado. Em favelas, contudo, esse passo é, na verdade, mais fácil, uma vez que a terra já está ocupada, de posse do estado, e, pelo menos em teoria, protegida constitucionalmente para moradores da favela–com base na necessidade de uso–através do usucapião após cinco anos. As Zonas Especiais de Interesse Social são destinadas a ajudar a facilitar a conformidade à terra, e o Rio tem ao menos alguma experiência para designar favelas de modo que garantam que suas qualidades sejam mantidas, incluindo a acessibilidade. Então, pode haver esperança de que essas condições levem em consideração a política de CLT para se manter a acessibilidade das moradias em favelas e o direito dos moradores de se manterem em suas casas. Isso teria início com a transferência dos terrenos de posse estatal localizados nas favelas para um Termo Territorial Coletivo administrado pela própria comunidade.

Moradores em CLTs recebem concessão da terra do Fundo, mas são donos das construções

Ter o terreno em um Fundo significa que a comunidade (não os indivíduos) tem a posse da terra como um todo. Contudo, a fim de permitir que os moradores acumulem riqueza, o CLT reconhece que os moradores são donos das construções e melhorias que realizarem em seus terrenos. Esse arranjo não apenas possibilita que a comunidade como um todo se beneficie do aumento nos valores da terra, mas também permite aos proprietários das casas se beneficiarem individualmente de seus investimentos e melhorias realizadas em seus lares. Novamente, esse arranjo compartilha de algumas similaridades com a atual situação da maioria das favelas: moradores não possuem, tecnicamente, o terreno em que vivem (até mesmo os “títulos” dados hoje são, na verdade, concessões, normalmente por 99 anos, como aquelas dadas para a Vila Autódromo nos anos 90 que, infelizmente, todos podemos confirmar sua precariedade) e a forma primária de investimento é na moradia individual. Sob o CLT, moradores podem estar ainda mais protegidos de remoções do que através de títulos individuais, pois a posse do terreno seria da comunidade e não do estado ou de indivíduos, podendo, assim, ser protegida pela comunidade. E por meio de um modelo de CLT, moradores também ficariam a salvo da especulação de mercado, pois a terra não é de posse de indivíduos e, dessa forma, seu valor não afeta o preço das casas.

Adesão ao CLT e liderança

O sistema de liderança em um CLT é diferenciado e importante para seu sucesso. Moradores da comunidade com CLT elegem um conselho de líderes para o encargo. Essa banca voluntária pode variar em tamanho, mas é encarregada de administrar as atividades do dia a dia do Fundo. Os encarregados do CLT são normalmente divididos em três partes, de forma que um terço dos líderes seja formado por moradores da comunidade, um terço formado por pessoas da vizinhança que cerca o CLT, e um terço formado por especialistas técnicos e autoridades municipais que fornecem opiniões especializadas particulares (no âmbito legal, arquitetural, da engenharia, político etc.) e falam pelo interesse público geral. Essa atribuição não é fixa para cada CLT e uma política especial pode ser desenvolvida especificamente para favelas com base em suas necessidades. Uma política de CLT no Rio pode por exemplo requerer a adição de defensores de moradia ao Fundo, uma exigência que o Rio já usa em sua política de habitação oficial.

A chave para o sucesso do CLT é sua missão. Cada CLT estabelece uma missão que inclui proteger os bens de sua comunidade. Tradicionalmente, acessibilidade e a garantia de moradias a preços acessíveis é o principal objetivo de um CLT, o que significa que novos membros são contemplados com base em suas necessidades. Para garantir isso, é o CLT que determina quem adentra como parte da comunidade. Isso é feito através da exigência de que moradores que queiram vender sua propriedade o façam para o CLT. O CLT tem acesso ao capital e compra a propriedade a um preço combinado, baseado em tabelas previamente estabelecidas. A habitação é oferecida para aqueles que estão em uma lista de espera e que passaram pelos critérios (novamente, todos estabelecidos pela comunidade). Mas um CLT localizado na favela pode adotar outros fatores adicionais–para além da necessidade–para determinar quem pode fazer parte. Por exemplo, aqueles com laços na comunidade, nascidos e criados ali, podem ter prioridade. Ou aqueles que desenvolvem importantes trabalhos culturais na comunidade ou que têm outras conexões com o local, ou, por exemplo, uma favela com grande vocação para o funk pode priorizar a cultura do funk; outra com grande vocação para a sustentabilidade pode priorizar aqueles engajados com o desenvolvimento de práticas sustentáveis. E assim por diante.

prazeres-and-the-port

Componentes-chave a serem incorporados aos CLTs

Fundos de Posse Coletiva têm sido implementados ao redor do mundo com estruturas que podem variar de diversas maneiras. Contudo, há algumas características que devem ser incluídas para que um modelo seja realmente considerado como um modelo de Termo Territorial Coletivo. Essas características incluem:

  • Propriedade e controle da comunidade: A terra e outros aspectos devem ser administrados, comprados e vendidos de uma forma que beneficie a comunidade como um todo. Deve haver um alto nível de confiança entre os membros (moradores da comunidade) e o CLT para que ele seja bem sucedido.
  • Uma estrutura aberta e democrática: Pessoas que vivem e trabalham ao redor da área designada como um CLT devem ter a possibilidade de participar. A liderança do CLT deve também se esforçar ativamente para envolver todas as partes interessadas em discussões comunitárias importantes.
  • Acessibilidade permanente: CLTs, por definição, são meios de preservar uma estrutura comunitária de longo prazo. A acessibilidade (de preços) deve ser preservada por ser um componente crucial do CLT.
  • Status não lucrativo: Quaisquer lucros vindos da administração de bens em um CLT devem ser reinvestidos no CLT para a melhora da comunidade (diferente dos investimentos individuais dos membros-moradores em suas casas, que pertencem aos moradores).
  • Administração a longo prazo: O CLT continua independentemente das casas individuais que o compõem serem vendidas ou alugadas.

Limitações ao CLT em favelas:

O CLT apresenta diversas características benéficas para proteger a autonomia e o custo acessível das favelas. No entanto, há considerações importantes que devem ser mantidas em mente se essa opção for considerada como uma política no Rio. Assumir a posse integral (o que, novamente, é raro nas favelas do Rio, onde concessões são a opção preferida de “titulação”), ao criar um CLT, significa abrir mão de parte da autonomia de se possuir um pedaço de terra. Isso significa que algumas das transações que poderiam normalmente ser feitas com terrenos privados não estarão disponíveis às pessoas em um CLT. É importante que a adesão ao CLT seja voluntária e que moradores não sejam forçados a fazer parte do arranjo.

Além disso, CLTs são bem diferentes dos métodos tradicionais de titulação da terra, os quais são atualmente mais comuns em favelas. Com a tendência crescente de titulações, há uma maior possibilidade de que uma comunidade já tenha alguns moradores que tenham recebido a concessão por seus terrenos. Para moradores que tenham títulos individuais, é importante que eles sejam compensados por seu terreno se ele for incorporado a um CLT.


Série Completa: Leis Habitacionais no Brasil

Parte 1: O Que as Leis Brasileiras Dizem Sobre o Direito à Habitação?
Parte 2: A Favela como Fundo de Posse Coletiva: Uma Solução para Evitar a Remoção e a Gentrificação?
Parte 3: Modelos de Fundo de Posse Coletiva e Cooperativas Habitacionais do Mundo Todo

*A partir de junho de 2018, adotamos a nomenclatura ‘Termo Territorial Coletivo’ (TTC) para traduzir o conceito, em inglês, de  ‘Community Land Trust’. Anteriormente, o conceito foi traduzido livremente como ‘Fundo de Posse Coletiva’. A nova nomenclatura melhor descreve o instrumento internacional que atualmente está sendo adequado às especificidades brasileiras, especialmente sob o aspecto jurídico.