No dia 2 de dezembro, o projeto Maré Sem Fronteiras realizou um evento comunitário com oficinas de conserto de bicicletas, impressão de serigrafia em camisetas, exposição de fotos e vídeos, e uma peça de teatro. O evento foi organizado para mostrar as diversas atividades do Maré Sem Fronteiras, e aconteceu na Lona Cultural Herbert Vianna, no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio.
O Maré Sem Fronteiras é um projeto fundado em parceria com a ONG comunitária internacionalmente reconhecida Redes de Desenvolvimento da Maré (Redes) com o objetivo de romper fronteiras simbólicas e geográficas dentro da favela da Maré, estimulando a autonomia e a criatividade de adolescentes e crianças, e preservando a memória da comunidade. O projeto oferece oficinas para crianças de 7 a 16 anos de idade em produção audiovisual, redação e teatro, e estimula a mobilidade e mais acesso dentro da comunidade, através de passeios ciclísticos comunitários quinzenais para os jovens. A esperança é ligar as várias comunidades da Maré através de um meio de transporte acessível, sustentável e ambientalmente amigável. O território da Maré é plano, por isso presta-se facilmente ao ciclismo. De fato, em contraste com as primeiras favelas do Rio que surgiram nos morros, os primeiros habitantes da Maré construíram suas casas sobre palafitas acima da maré do mar. A Maré e áreas vizinhas foram por fim aterradas, permitindo que o complexo se desenvolvesse e se tornasse praticamente uma cidade, composta por 16 favelas diferentes e uma população total de mais de 140.000 moradores.
O evento do dia 2 de dezembro foi mais um testemunho da vibrante e rica sociedade civil no Complexo da Maré, reunindo uma rede de projetos de longa data e atores da comunidade. Redes da Maré é uma organização comunitária de direitos humanos que atua como uma rede para a sustentabilidade e iniciativas de desenvolvimento conduzidas pelos moradores. Seu antecessor, o CEASM (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré), começou em 1997, como um coletivo de moradores da comunidade, em resposta à falta de acesso à educação universitária na comunidade. Esses líderes comunitários reuniram-se para organizar um curso de pré-vestibular comunitário. Desde então, a Maré viu um aumento significativo de jovens estudantes buscando o ensino superior. Redes foi fundada formalmente em 2007, com foco em ajudar a comunidade na implementação das iniciativas de base.
A exposição fotográfica apresentou trabalhos do projeto Mão na Lata que, em parceria com Maré Sem Fronteiras, proporciona oficinas de fotografia para os jovens. Mão na Lata foi fundado em 2003 e nasceu de uma parceria entre a fotógrafa Tatiana Alberg e Redes da Maré. O projeto oferece cursos de fotografia e literatura para jovens entre 11 e 17 anos de idade, incluindo oficinas sobre como fazer câmeras fotográficas com latas recicladas e revelar fotografias.
Fagner França, 25 anos de idade, mora no Baixa do Sapateiro, no Complexo da Maré. Quando adolescente, participou das oficinas de fotografia do Mão na Lata. Hoje é fotógrafo profissional e da aula em oficinas para os jovens da comunidade. Como um dos participantes do projeto, Fagner reflete sobre o impacto e significado da fotografia na favela:
“Minha fotografia é uma fotografia de resistência, é uma fotografia direcionada às pessoas da comunidade onde vivo, é uma fotografia que empodera as pessoas que vivem aqui, uma fotografia que mostra a vida cotidiana e é portanto diferente do que é mostrado na mídia… Há muito tempo, nos primeiros tempos da fotografia, as pessoas tinham medo de ser fotografadas pois diziam que a sua alma seria roubada. Mas, ainda mais do que a alma, quando você está sendo fotografado, você está se doando. Quando uma pessoa sorri para ser fotografada, essa pessoa está permitindo, está abrindo o coração, o rosto, para que possamos reproduzir uma imagem, e isso é um ato de solidariedade. Fotografar é como levar a pessoa mas também conservá-la e é uma grande responsabilidade. Sinto que a minha fotografia empodera, pois mostra a beleza das pessoas.”
A exposição na noite de sexta-feira também apresentou azulejos feitos por crianças da Maré, resultado de uma parceria entre a Redes e o projeto social Azulejeira, um coletivo de artistas e artesãos especializados que oferecem oficinas educacionais e combinam produção artística com ação social, cultural e urbana. Os azulejos criados pelos jovens da comunidade refletiram o slogan: “Maré é?”. O evento da sexta-feira também exibiu filmes criados pelos jovens nas oficinas de audiovisual do Maré Sem Fronteiras. Esses filmes documentam as atividades dos jovens e servem para preservar a memória da comunidade.
O evento de sexta-feira culminou com uma peça teatral, resultado das oficinas de teatro para jovens realizadas pelo Maré Sem Fronteiras. O grupo de teatro estreou o trabalho de sua própria autoria “Agora Sei o Chão Que Piso”. A peça discute o tema da animalidade humana, e é dividida em quatro segmentos independentes, que abordam a questão a partir de pontos de vista separados: trabalho, família, sexualidade e sonhos.
Essas oficinas de teatro para jovens começaram há sete anos, resultado de uma parceria entre Redes da Maré e o grupo de teatro da Maré, Cia Marginal. Maré Sem Fronteiras tornou-se parceira mais recentemente, em 2013. Sob a direção do morador e ator Wallace Lino, as oficinas de teatro reuniram jovens da comunidade, e dessas oficinas surgiu um grupo de teatro chamado ATiro. Tendo em vista que a maioria dos jovens participantes das oficinas tinha origem nordestina (como é o caso da maioria dos moradores da Maré), o primeiro trabalho criado pelo grupo foi uma peça sobre a história oral do Nordeste e a memória cultural da Maré. Os atores coletaram histórias dos pais e avós sobre a migração de suas famílias para o Rio, e daí criaram uma peça intitulada “Vai”. Em 2014, o grupo recebeu o “Prêmio Ações Locais”, um subsídio do governo municipal que financia iniciativas culturais locais. Isso permitiu ao grupo apresentar a peça em todo o Complexo da Maré. Pouco tempo após essa série de apresentações, Wallace Lino recebeu um e-mail de um dos seus alunos propondo um texto para uma nova peça: “Achei o texto fantástico, e quando perguntei ao aluno o que o levou a escrever essa história, ele disse que era a sua própria história. Nessa época, eu estava lendo um trabalho de Eduardo Galeano, ‘O Teatro do Bem e do Mal’. Foi quando perguntei ao grupo o que achava de trabalhar com a animalidade nas relações humanas como ponto de partida para pesquisa. Os alunos adoraram a ideia e começaram a escrever sobre suas experiências com animalidade”, explica Wallace Lino. Da coleção de textos dos atores participantes, surgiram quatro mini obras dramatúrgicas para formar o seu trabalho mais recente “Agora Sei O Chão Que Eu Piso”.
Com o bairro de Nova Holanda se recuperando da recente operação da Polícia Militar, eventos como o de sexta-feira nos lembram da resiliência e riqueza da criatividade, engenhosidade e produção cultural que compõem a estrutura das comunidades das favelas da Maré.