Em 1996, Merced Guimarães e seu marido Petrucio fizeram uma descoberta assustadora no seu novo lar durante um grande projeto de reforma: os trabalhadores, ao escavar o solo sob a sua casa no bairro da Gamboa na Região Portuária do Rio de Janeiro, desenterraram ossos humanos. Após chamar as autoridades, o que levou a uma investigação do local, foi descoberto que esta cena de crime era na realidade o local de uma sepultura coletiva, o local do até então falado, porém não-descoberto Cemitério dos Pretos Novos. Foi aqui que dezenas de milhares de africanos capturados foram enterrados entre 1791 e 1831. Com os corpos enfraquecidos durante a viagem de travessia do Atlântico, eles morreram logo que chegaram à costa do Brasil e eram descartados em valas comuns, sendo os seus restos periodicamente esmagados e queimados juntamente com o lixo.
Esta exumação inesperada de um passado horrível marcou o início da obra da vida de Merced. Após uma pesquisa arqueológica inicial, a prefeitura estava preparada para cobrir o cemitério novamente. Merced poderia bem ter prosseguido com os seus planos de reforma e tudo seria esquecido novamente. Ao invés disso, ela resolveu que era o seu dever dedicar esse espaço à memória das dezenas de milhares de vidas enterradas ali e à história da escravidão na Região Portuária do Rio. Após uma luta de quase dez anos, ela conseguiu inaugurar o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN) no dia 13 de maio de 2005. O Instituto serve como museu, memorial e centro de pesquisas, explorando a história do cemitério e da Região Portuária e comemora o patrimônio negro do Rio. É uma organização sem fins lucrativos e depende em grande parte do apoio de pequenos doadores individuais. É a única parada no Circuito da Herança Africana onde informações históricas detalhadas são trocadas e há pessoas regularmente disponíveis para responder às perguntas e aprofundar a compreensão da trágica e dramática história do maior porto de escravos do mundo.
Este mês o Instituto tem feito a campanha #IPNResiste, um desafio à Prefeitura para retomar o fornecimento de recursos básicos que permitam ao IPN manter as suas portas abertas ao público e continuar com a sua pesquisa e programação educacional. Em 2013, o IPN começou a receber algum apoio financeiro da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP) e da Concessionária Porto Novo durante a implementação do plano de desenvolvimento do porto da cidade, o Porto Maravilha. No entanto, o orçamento foi cortado em meados de 2016 e não há promessa de que a Prefeitura irá retomar o seu apoio. Como Merced escreve em sua carta anunciando a campanha: “Não podemos fechar este Instituto de Pesquisa e Memória que há 12 anos busca implementar ações de preservação, pesquisa e dinamização da herança cultural africana e afro-brasileira, numa perspectiva diaspórica, visando à valorização da dignidade humana, a universalidade aos conhecimentos, a igualdade racial e religiosa e a construção no presente das memórias soterradas no passado”. No momento o IPN está lutando até para comprar produtos básicos de limpeza e pagar suas contas de manutenção. Se a prefeitura não responder até o fim do mês, o IPN não terá outra escolha e terá que fechar as portas.
Merced e os apoiadores do Instituto são inflexíveis ao declarar que o problema não é falta de recursos públicos, especialmente porque o requerimento mínimo para mantê-lo aberto é de apenas R$6.000,00 mensais. Certamente, o país foi duramente atingido pela recente recessão econômica, e a Prefeitura do Rio ainda está sendo afetada pela crise fiscal pós-Olímpica. No entanto, os custos dos projetos da Zona Portuária como o Museu do Amanhã (R$250 milhões), o Museu de Arte do Rio (R$185 milhões), o projeto Veículo Leve Sobre Trilhos – VLT (R$1,2 bilhões), o novo aquário (R$100 milhões), e o Boulevard Olímpico, demonstram que onde há vontade política e interesse empresarial, bastante dinheiro e muitos recursos serão usados. O Professor Carlos Eugênio apoia o IPN há muito tempo. No seu depoimento a seguir, um dos muitos para a campanha #IPNResiste, ele proclama, “isso é uma obrigação do Estado. O Estado tem os recursos e pode arcar. O IPN não custa praticamente nada ao onerário público. É escandaloso falar que não tem recursos”.
Estudos calculam que entre 20.000 e 30.000 corpos foram sepultados no Cemitério dos Pretos Novos. É o maior cemitério conhecido de africanos capturados e escravizados nas Américas. Além disso, o cemitério é apenas um dos inúmeros marcos históricos na Região Portuária do Rio que revelam o papel da área como o maior porto de escravos do mundo. Dos cinco milhões de africanos capturados e trazidos forçados até as costas do Brasil, 2 milhões chegaram no Rio de Janeiro, quase quatro vezes o número total que chegou aos Estados Unidos. Sadakne Baroudi é uma historiadora norte-americana baseada no Rio de Janeiro. A sua extensa pesquisa sobre a história da escravidão no Rio de Janeiro e em todo o Brasil está publicada no seu site Afro-Rio Walking Tour. Ela apoia o IPN há muito tempo e os seus tours da Zona Portuária trazem visitantes ao Instituto todo ano: “este [financiamento] é uma obrigação do governo. Os custos operacionais do IPN são a menor das obrigações que temos para o que aconteceu nesta cidade. Foi o maior porto de escravos… Auschwitz tem uma página de captação solidária?“
Por isso, o que a campanha #IPNResiste revela é uma história e um contexto maior em jogo que se estende muito além de uma questão de falta de recursos governamentais. Embora o projeto do porto envolveu o desenvolvimento de um Circuito da Herança Africana e pretende ser a revitalização do berço do samba e da tradição afro-brasileira, a realidade é que resultou em despejos e remoções de comunidades negras antigas, bem como a ocupação policial da vizinha Providência, a primeira favela do Brasil nascida dentro de dez anos da abolição, completando 120 este ano. A primeira linha de VLT é aquela mais destinada a turistas, ligando o Boulevard Olímpico ao Centro da cidade, e foi completada a tempo para os Jogos. Ao contrário, as linhas que passam pelas áreas mais pobres da Gamboa que servirão os moradores ainda estão longe de ser completadas, meses após o encerramento dos Jogos. Locais de construção abandonados têm prejudicado o comércio local, o que provou ser uma das várias pressões econômicas que empurram os moradores negros para fora da “Pequena África“ do Rio. As linhas de VLT agora passam pela rua estreita onde o IPN é situado, e estão a apenas alguns metros do invólucro de vidro no chão do museu que revela os ossos do cemitério. Como no passado, a ironia hoje é que as obras do Rio dependem tanto da mão de obra negra como do deslocamento e erradicação dos negros. “Onde os negros conseguem trabalhar e morar no Rio de Janeiro?” Sadakne pergunta.
As circunstâncias que requerem uma campanha como #IPNResiste levantam várias perguntas: quem são os beneficiários destinados da chamada renovação urbana? A renovação urbana depende da mão de obra e remoção de quem? A renovação urbana é inerentemente anti-negra? “O governo sempre vem de fora com algum tipo de ‘presente’. Isto é realmente um grande problema quanto à alocação do dinheiro público nas comunidades. Não acho que as pessoas da Providência diriam ‘oh, nos dê um teleférico‘. Acho que iriam querer água, esgoto, coleta de lixo: as comunidades nunca são verdadeiramente envolvidas na priorização destes orçamentos, na decisão sobre como estes recursos serão gastos, ou como os projetos são feitos”, diz Sadakne.
Estas são as forças contra as quais o IPN está lutando, e a situação parece ser cada vez mais precária sob a nova administração municipal de Marcelo Crivella, um bispo evangélico. A violência e as operações policiais nas comunidades das favelas estão aumentando. Enquanto isso, há contínuos projetos corporativos de emprendimentos em grande escala no bairro da Gamboa. A TIM comprou uma propriedade em frente ao IPN. Um pouco abaixo há planos para a construção de condomínios e shoppings. “Não quero ser pessimista, mas não tenho muita esperança nesta [nova] administração”, lamenta Merced. Até agora, neste ano, uma reunião com autoridades do governo foi cancelada uma hora antes do horário agendado, e em uma segunda reunião nenhum membro do governo apareceu.
Ao todo, 10 milhões de africanos vivos chegaram às Américas por conta do comércio transatlântico de escravos. Continua sendo um dos capítulos mais horrendos da história humana. E, no entanto, o mundo continua em grande parte desprovido de museus e memoriais dedicados à sua memória. Os países caribenhos têm feito inúmeras tentativas requerendo reparações da Europa, sem êxito até agora. Dito isto, no mundo não faltam modelos bem-sucedidos de como lidar com um passado indizível: a maioria dos estudantes alemães visita ao menos dois campos de concentração antes de formar-se no ensino médio. Os memoriais dentro e fora da Europa obrigam os visitantes a revisitar as atrocidades do Holocausto. Porquê então há uma resistência tão violenta à recordação da escravidão? “Um dos mitos mais comuns sobre a escravidão, raça e racismo é que foi o racismo que causou a escravidão. E isso não é verdade. O racismo é construído, é inventado após o comércio transatlântico de escravos já estar institucionalizado… Quando olhamos para trás na história e peguntamos o que fazemos com isso agora–devemos lidar diretamente, de frente e corajosamente com o problema e a questão do racismo”, afirma Sadakne.
O vídeo a seguir, preparado para o Pavilhão Brasileiro da Bienal de Arquitetura de 2016, apresenta uma visão geral do Circuito da Herança Africana do Rio e a sua importância (o IPN é apresentado aos 4:15):
O Brasil é lar de uma das maiores populações negras do mundo, ficando atrás apenas da Nigéria. No entanto, o reconhecimento nacional das contribuições negras à cultura e história brasileira frequentemente limita-se à feijoada, capoeira, samba e Carnaval. Como Sadakne aponta, “que tal a democracia como uma contribuição negra? Que tal o voto como uma contribuição negra? O nome de Rebouças está em todo o lugar na cidade do Rio de Janeiro. Quantas pessoas sabem que ele era negro?”
Apesar do caminho difícil à frente para o IPN e para a Zona Portuária do Rio, os desenvolvimentos recentes ao descobrir e preservar o seu passado brutal como o Cais do Valongo não têm precedentes. Se não fosse pela organização e resistência da comunidade local, estes espaços já teriam desaparecido do horizonte. #IPNResiste é mais um capítulo nesta jornada difícil porém indispensável. Por favor, dê seu apoio da maneira que puder e publique os seus depoimentos em #IPNResiste para ajudar na divulgação.
Para saber mais, assista a essa série, em quatro partes, que é exibida aos visitantes no IPN no Rio [AVISO: Imagens Fortes]: