Esta é a primeira matéria de uma série de três sobre conexões entre as favelas cariocas e os caniços maputenses que enfocam história, regularização e cultura.
Mais do que o português como língua oficial, Moçambique compartilha inúmeras semelhanças com o Brasil. As mais evidentes, especialmente no contexto urbano da capital Maputo, são a paixão pelas novelas da Globo e da Record e a permeabilidade das igrejas evangélicas (inclusive, as mesmas Igreja Universal, da qual o prefeito do Rio de Janeiro é bispo, e Assembleia de Deus do Brasil). Mas os paralelos também se estendem para o desafio de regulamentação territorial e o potencial criativo de suas comunidades.
Maputo, quando ainda era conhecida como Lourenço Marques na época da colonização portuguesa (que só acabou em 1975 com a declaração de independência), era dividida entre a ‘cidade cimento’ e ‘cidade caniço’. A cidade cimento refletia o material utilizado nessa parte da cidade e fazia alusão à permanência da cidade construída para os colonos. Por sua vez, o caniço, planta semelhante à cana, fazia referência a um dos materiais utilizados nas casas do entorno da cidade em si, reforçando a efemeridade de uma cidade construída para ser removida a qualquer momento, de forma a permitir a expansão da cidade de cimento. As comunidades urbanas periféricas já nasciam, portanto, em meio à incerteza da permanência e ao medo da remoção.
A circulação entre as duas partes da cidade era limitada: do caniço para o cimento só poderiam passar negros “assimilados”, aqueles considerados suficientemente civilizados e bem comportados para tal. Nos padrões europeus, isso significava que só eram permitidos aqueles que falavam português, que eram cristãos, de boa índole e que comiam e se vestiam como portugueses. Aos negros considerados “indígenas”, de menor instrução, só era permitido o acesso diante da apresentação de documentação carimbada pelo patrão. Os brancos do cimento frequentavam os caniços atrás de negócios e, muitas vezes, de prostíbulos. Também fluíam para os caniços migrantes advindos do campo ou de outras cidades do país, muitas vezes de origens étnicas e linguísticas diferentes. Assim, os caniços se constituíram, de maneira similar às favelas, como o espaço do encontro, da diversidade, da miscigenação, refletido nas suas intensas manifestações culturais.
Embora já não exista essa distinção de material utilizado e a cidade tenha se expandido para além dos limites da cidade caniço, essa dicotomia até hoje está presente no imaginário da população e nos nomes de bairros como Polana Cimento, um bairro de elite onde se encontra a maior parte da comunidade expatriada e escritórios do governo, e Polana Caniço, um bairro de classe média baixa, mas que vem sofrendo forte valorização devido a novos empreendimentos imobiliários.
Essa cidade dividida lembra outra, do outro lado do oceano: a cidade partida do Rio de Janeiro do asfalto e da favela. Embora não institucionalizadas na forma de exames que medissem as qualidades morais dos indivíduos, barreiras estruturais agiam e continuam agindo e constrangendo o acesso de moradores de favela ao resto da cidade, permitido em geral apenas no horário do expediente. A presença do morador de favela fora do espaço da favela é dificultada pelo preço do transporte, pelos olhares enviesados e pela ação dos seguranças de shoppings, por exemplo.
Estima-se que 80% da população maputense viva nos chamados assentamentos informais, contra 23% da população carioca. Em números absolutos, isso significa quase 1 milhão de pessoas em Maputo, e cerca de 1,5 milhão no Rio de Janeiro. Os desafios enfrentados pelas comunidades em Maputo advêm da falta de investimento público nessas densas áreas e incluem a falta de vias de acesso e de serviços básicos, como coleta de lixo e sistema de esgoto, falta de um sistema de drenagem gerando frequentes inundações, e fornecimento de água e energia fragilizado.
Esta é a primeira matéria de uma série de três sobre conexões entre as favelas cariocas e os caniços maputenses que enfocam história, regularização e cultura.