Em 24 de fevereiro de 2016, a Prefeitura do Rio demoliu a casa de Heloisa Helena Costa Berto, uma das últimas a ser destruída na Vila Autódromo, ao lado do Parque Olímpico. Depois de mais de um ano, o RioOnWatch procurou Heloisa Helena para saber a respeito de sua vida após a remoção, suas reflexões sobre a Cidade Olímpica e sua luta atual para aumentar a consciência negra diante da discriminação religiosa e racial generalizada no Brasil.
A viagem de ônibus de Heloisa Helena Costa Berto de sua nova casa em Guaratiba para o Centro do Rio geralmente leva de três a três horas e meia. Da sua casa anterior na Vila Autódromo, às vezes a viagem de ônibus para o Centro levava duas horas, mas a casa estava abrigada no meio das regiões em rápido desenvolvimento de Jacarepaguá e Barra da Tijuca. Vivendo lá, ela não se sentia nas margens da cidade como acontece ao viver em Guaratiba. Para Heloisa Helena, a remoção da Vila Autódromo deve ser contextualizada dentro da longa história do Rio de empurrar os pobres para a periferia para criar uma cidade da elite.
“Quando [o Prefeito Eduardo Paes] falava que iria higienizar a Barra da Tijuca, tirando a Vila Autódromo… era como se fossemos sujos. Não, não, não, não. Éramos pessoas normais que moravam em casas normais. As casas eram feitas de tijolos todos normais. Minha casa era normal. Era uma casa pobre, de acordo com minha situação. Mas era uma casa normal… Essa tendência da higienização da cidade, é uma coisa antiga… Isso começou desde a época de Pereira Passos, que foi um prefeito aqui no Rio de Janeiro, há muitos anos, que começou a retirar e desfazer as favelas. E ele ia formando a cidade, e tirando as pessoas, colocando as pessoas à margem da cidade. Fazendo a marginalização da povo. Por exemplo, eu agora, eu estou à margem… porque eu não tenho condições mais de morar aqui… Em geral, isso acontece com quem? Com pessoas que são mais pobres. Pessoas que são mais pobres, são negras. Eles não queriam ver negros ali, eles não queriam ver pobres ali.”
Heloisa Helena sofreu muito com um processo prolongado de negociação da sua casa na Vila Autódromo, que não era apenas sua casa, mas também um local sagrado, um terreiro para sua prática de Candomblé. O Candomblé é uma religião afro-brasileira, que há muito tempo sofre discriminação em todo o Brasil. Enquanto o prefeito Eduardo Paes dizia à imprensa que qualquer um que quisesse ficar na comunidade poderia fazê-lo, os funcionários da prefeitura intimidaram e pressionaram Heloisa Helena, insistindo que os moradores teriam que sair. Sobre a forma como esta lacuna entre as declarações públicas e privadas fazia ela se sentir, ela disse:
“É uma sensação de impotência, porque você sente que na realidade é um jogo político muito grande… Em relação ao negociador, ele tinha um prazer de diminuir a pessoa. É o trabalho dele: diminuir a pessoa, deixar a pessoa se sentindo menos. Para quê? Para que pudesse diminuir o valor do imóvel da pessoa e não pagar quase nada. Do mesmo modo, era a forma com que eles faziam as demolições, era tudo de uma forma planejada. Porque eles destruíam as paredes da casa, deixavam os entulhos para deixar… aparência de pós-guerra. Para as pessoas que estavam lá se sentirem mal a ponto de querer ir embora daquele lugar. Só que eles não contavam que teria tantas pessoas, que teria um grupo de pessoas resistentes, mesmo com tudo isso acontecendo.”
Foi graças à resistência de seus vizinhos que as famílias que foram embora da comunidade receberam indenizações mais elevadas do que as que foram oferecidas originalmente. Poucas famílias foram reassentadas nas vinte novas casas no local original da comunidade, até mesmo outras que queriam permanecer–como Heloisa Helena–que foram excluídos desse acordo final. Heloisa Helena enfatizou que esta resistência ia muito mais além dos meses pré-Olímpicos que receberam a cobertura de mídia global mais intensa:
“Aquela luta, ela não foi ganha agora. Aquelas vinte casas que estão lá, não foram ganhas agora. Essa é uma luta que vem de vinte anos. Foram todos os ex-presidentes da comunidade que lutaram muito até chegar aquela ponto. Foi a Dona Jane que saiu de lá. Foi meu padastro que foi presidente da associação de moradores, que lutou. A Teresinha, que também não estava mais lá, e acabou indo para o ONU, para também falar sobre a Vila Autódromo. Isso foi vinte anos atrás. E a Dona Inalva, que nem foi mencionada como uma vencedora. Todas essas pessoas foram vencedoras. Que são os guerreiros que não são mencionados.”
Ela reconhece que sua própria resistência começou relativamente tarde no processo. Ela começou a escrever sobre sua experiência através de cartas que ela publicou como matérias no RioOnWatch em 2015.
“Tive uma necessidade de botar pra fora, o que estava acontecendo… Foi uma forma de expor o que estava acontecendo, não só comigo, mas com todo mundo… No momento em que eu escrevi, as coisas estavam em uma situação tão difícil, tão dolorosa, que a única maneira–eu sinto, umas das últimas formas–para me defender, era justamente tornar o assunto público. Então era uma forma de defesa. Então, por isso resolvi me expor.”
Além de ser uma forma de defesa, compartilhar sua experiência também resultou em um enorme escape emocional para Helena Heloisa, que sofria de doenças físicas e depressão enquanto negociava com a prefeitura.
“Eu senti uma liberdade, porque é muito ruim você reter os sentimentos. E quando você expõe aquilo que você sente, você coloca para fora, você sente liberdade… Fui muito ferida, muito ferida. Eu fui ferida naquilo de mais profundo que eu tinha, que era amor a minha religião. Fui humilhada quando chamaram minha religião de lixo. Eu fui muito ferida… Eu quero respeito. Eu não quero ser tolerada. Eu quero respeito.”
Ela também começou a contar sua história em eventos públicos. Desde apresentações no Senado e na ONU em Brasília até seminários acadêmicos e reuniões de estudantes negros em todo o país, denunciou as violações dos direitos de moradia da comunidade e falou sobre o particular “racismo religioso” que experimentou quando seu local de Candomblé foi destruído, mas a igreja católica do bairro foi deixada intacta. A luta de Heloisa Helena contra o racismo religioso é agora seu foco principal, a força motriz de vários projetos em que ela está trabalhando atualmente. Uma delas é uma colaboração com um representante do estado para obter o termo “racismo religioso” explicitamente reconhecido pela lei, em vez de apenas “preconceito”. Ela explicou:
“Colocando a expressão ‘racismo religioso’… qualquer pessoa que pratique o racismo religioso será penalizada com as mesmas penas do racismo que é um crime inafiançável. Faço entrevistas para saber sobre as pessoas que estão sendo ameaçadas, que estão sofrendo racismo, para que possam se comunicar comigo e eu possa colocar tudo isso em um documento.”
Ela está acompanhando uma ampla gama de casos de discriminação racialmente motivados em todo o Brasil. Em um caso, um homem foi preso depois que ele estava tocando atabaque, e seu vizinho reclamou. O vizinho o chamou de “bruxo macaco”. Heloisa Helena está particularmente preocupada com o número de casos recentes em que centros espiritas tradicionais foram invadidos e incendiados, especialmente no estado de Goiás.
“São muitos casos. Eu queria documentar tudo isso. Fazer esse documento para então virar lei.”
Além de seu trabalho de pesquisa, Heloisa Helena está trabalhando com o Deputado Estadual Flavio Serafini para resgatar e preservar uma coleção de materiais religiosos tradicionais que foram apreendidos pela polícia há mais de um século:
“Há mais de cem anos foi uma época muito ruim para quem era espírita. Porque a polícia chegava, entrava e pegava todo os nossos materiais. Eles guardaram tudo isso na delegacia. Todo esse material foi pego de muitos centros de umbanda e de candomblé. Está tudo no Museu da Polícia Militar… A denominação que eles dão, é ‘materiais demoníacos’, alguma coisa assim. Eles colocam o título assim. Então isso daí já traz um preconceito enorme em relação a religião. E nós estamos agora entrando com um projeto pra libertar todo esse material e colocar num museu. O local a gente ainda não sabe, porque está tudo em planejamento… a gente tem que ver qual será o local correto para que esse material seja conservado corretamente.”
Para aumentar a consciência sobre esses exemplos de discriminação racial e religiosa generalizada e sobre projetos que visam abordá-lo, Heloisa Helena está iniciando um blog que reúne reflexões, fotografias e entrevistas de sua pesquisa. Ela também planeja usar o blog para contribuir com o que vê como um crescente movimento de consciência negra no Brasil. Refletindo sobre a abolição da escravidão em 1888, ela disse:
“Na realidade, colocou um monte de negros no meio da rua, sem nenhuma estrutura e nenhuma política pública para que eles conseguissem se sustentar. Como ainda hoje, continuamos na mesma situação. Eu acho que há pouquíssimo, só há poucos anos, é que nós estamos conseguindo fazer com que a nossa voz seja ouvida. Com a globalização, com a conscientização, com a valorização cultural até mesmo do modo de falar, da religião, do cabelo e da liberdade. Eu uso roupas coloridas, de acordo com a minha cultura e a minha ancestralidade.”
Ainda assim, ela aponta exemplos de amigos que “se recusam a dizer que são negros“. Ela argumenta que a lei que exige que as escolas ensinem a história e a cultura negra não é seguida e, como resultado, “a criança negra tem vergonha de ser negra”.
“Você tem que conscientizar as pessoas que a sua cor é negra, e que é bonita. Você tem que tirar tristeza daquela cor. Você tem que botar aquela cor como símbolo de luta e de vitória. Ensinando que teve pessoas que lutaram e vencerem, e houveram pessoas guerreiras daquela cor. É essa conscientização–é por isso que hoje batalho.”