Presidente Michel Temer aprovou na última terça-feira, dia 11 de julho, a lei 13.465/2017, baseada na MP 759, que trata principalmente da regularização fundiária em terras federais. A sanção presidencial ocorreu após sua segunda aprovação na Câmara, determinada por liminar do Supremo Tribunal Federal, que considerou muito substanciais as mudanças feitas no texto da Medida Provisória durante a sua tramitação, fruto de oito emendas (de mais de 400 propostas).
A sociedade civil tem se organizado para debater o direito à moradia e os efeitos que as propostas de mudança na legislação urbana, incluindo a lei 13.465/2017, terão sobre ela. Dentre esses debates, foram realizados o Seminário Direito à Moradia e as Mudanças na Legislação Urbana, nos dias 23 e 30 de julho na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, e o debate O Direito de Laje e a MP 759/2016, no dia 26 de julho na Comissão de Moradia da OAB-RJ, conjugando juristas, moradores de áreas vulneráveis e outros membros da sociedade civil.
“Não se pode tratar igualmente os desiguais. Um mesmo mecanismo não pode regularizar um prédio na Barra da Tijuca e na favela”, colocou Jaqueline Montenegro, presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio, durante o evento na OAB, fazendo alusão a uma legislação que versa sobre a regularização tanto para áreas de interesse social (a chamada Reurb-S), como para moradias de classe média e grandes empreendimentos (a Reurb-E).
Na prática, o mecanismo aplicado em cada caso depende da autodeclaração do solicitante acerca da categoria em qual se enquadra, e da subsequente aprovação do município dentro de 180 dias–findos os quais prevalecerá a modalidade escolhida pelo requerente. Essa determinação arrisca que a prevalência da opção do solicitante passe a ser a regra e não a exceção, devido à sobrecarga do município, e poderá abrir espaços para corrupção. Assim, grandes empreendimentos poderão ser beneficiados pela isenção de taxas estendida aos imóveis regulados pela Reurb-S, por exemplo. Jaqueline ainda denunciou a inadequação de uma lei escrita por pessoas que nunca pisaram em favelas para regulamentar a vida em favelas, e defendeu leis pontuais em vez de uma lei geral e ambiciosa como esta.
Claudia Franco, professora de Direito Civil e especialista em direito real de laje, disse no mesmo evento que o papel do direito é igualar as condições que o mercado torna desigual e, portanto, é preciso superar a definição de moradia como mercadoria para alcançar a justiça social. “A favela é a constatação arquitetônica de que nós não respeitamos os direitos sociais”, colocou ela. Ela acredita que há descontinuidade entre o direito de laje previsto na lei e o direito de laje da vida real, que é baseado na posse concreta do imóvel, não na propriedade legal dele. Claudia acha, ainda, que a simplificação da regularização vai facilitar o processo para a classe média, mas não vai beneficiar tanto os moradores da favela, pois a burocracia e os custos envolvidos em um processo de registro são proibitivos para eles.
Esses custos com o processo (documentação cartorial e, no caso do Reurb-E, assistência técnica obrigatória) simbolizarão um aumento de arrecadação que poderia ser revertido para fins sociais, como um Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social, como lembraram na Defensoria Arícia Fernandes, professora da especialização de Direito à Cidade na UERJ, e Luiz Claudio Vieira, diretor de regularização fundiária do Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ). Mas isso dificilmente será realizado, pois, segundo ele, a regularização foi capturada por uma perspectiva mercadológica, representando uma ruptura normativa e narrativa de regularização como realização da função social da terra. Nesse sentido, ele acha que deve ser mantida a política de concessão de uso de terras públicas, pois prevê que a terra pode ser retomada se estiver sendo usada para fins outros que moradia, enquanto o mecanismo privilegiado na lei 13.465/2017 de doação de terras públicas permite que o novo possuidor disponha da terra, o que inclui a sua venda, não impedindo assim a especulação ou a gentrificação. Há quem conteste esse posicionamento, alegando que em certas comunidades, a concessão de uso não resguarda a comunidade totalmente de remoção e que é preferível ter a posse sobre a terra.
É o caso dos moradores do Horto, como destacou Emília de Souza, moradora e uma das lideranças da resistência local, durante o debate na OAB. Para eles, a posse traz segurança contra a ameaça de remoção a qual os moradores são incessantemente submetidos. Emília relatou a existência de um projeto antigo de regularização na comunidade, feito de forma participativa sob a liderança da Secretaria de Patrimônio da União, mas que foi embargado pelo Tribunal de Contas da União em 2011. Para ela, as dificuldades da comunidade para obter a regularização passam pelo preconceito e pela apropriação de um discurso ambientalista para justificar um suposto “mau uso do bem público”, que autoriza ações de reintegração de posse em terras públicas com processos de regularização em andamento.
Simone Rodrigues, advogada, moradora da Vila Laboriaux e integrante do Rocinha Sem Fronteiras, também defendeu a regularização, e colocou que os esforços nesse sentido frequentemente esbarram na incompreensão da função social da terra por parte do judiciário e na falta de vontade política por parte do executivo. Um exemplo de entrave está na interrupção da concessão das terras por parte da prefeitura, o que levou à interrupção do processo de regularização em curso na comunidade por meio do programa Papel Passado do Ministério das Cidades. Para ela, a regularização é a única segurança que se tem contra a remoção, como a que ocorreu durante o período pré-Olímpico e levou dois moradores idosos ao infarto.
A preocupação de que só a regularização não resolve os desafios das favelas, e de que é preciso garantir direitos e a provisão de infraestrutura e serviços, foi recorrentemente colocada. “Muito se fala sobre moradia como se só isso importasse”, disse Elizabeth Bezerra, moradora de Novo Palmares, Jacarepaguá, na Defensoria. “Recentemente, o Ministro da Saúde alegou que o povo inventa doença. Para nós, não basta estar entre quatro paredes de tijolos, precisamos de saúde mental”, completou ela. Arícia também defendeu ir além da questão cartorial quando disse que a regularização passa pela nomeação das ruas, pela adequação ambiental, pela urbanização prévia, pela aproximação do equipamento coletivo e de mecanismos de participação aos moradores, de forma que a favela seja tratada como parte da cidade, que de fato é.
O Núcleo de Terras e Habitação (NUTH), que organizou o seminário na Defensoria, tem sido um ator importante no debate e na frente de proteção do direito à moradia na esfera jurídica, trabalhando fundamentalmente em torno de políticas de combate à segregação socioespacial e criando espaços de resistência e de proposição de ideias neste sentido. Representantes do NUTH fazem comumente a distinção entre o direito à moradia garantido pela constituição e o direito à propriedade da terra, considerando que a lei 13.465/2017 traz medidas contraditórias ao primeiro ao privilegiar o último. Regina Bienenstein, do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos da UFF, colocou-se contrária a essa distinção: “A terra é o nó da questão urbana e habitacional. As cidades são excludentes porque a terra está na mão de poucos”.
O NUTH considera, ainda, que a setor imobiliário têm a intenção de expulsar para as fronteiras da cidade grupos vulneráveis, exagerando o processo já em curso de especulação imobiliária e periferização. A lei 13.465/2017 tem potencial de contribuir para esse processo, ao inserir terras de famílias de menor renda no mercado formal, o que permitirá o uso da terra como reserva de valor, de maneira especulativa, em vez de seu uso pelo seu valor produtivo e social. “A cidade hoje não é mais um ponto de encontro e relações sociais, a cidade virou um negócio. A cidade exclui pessoas do meio nobre e as insere na periferia com a ilusão de melhoria de vida, apenas para gerar riquezas das quais elas não fazem parte. Mas a cidade é nosso espaço de luta. Para combater a gentrificação precisamos sair da periferia e ir às ruas lutar”, colocou Jefferson Salazar, conselheiro da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), durante o mesmo evento.
Arícia, por sua vez, afirmou que cabe lutarmos para que a legislação municipal mitigue os efeitos da lei 13.465/2017, já que ela depende de outras legislações para ser operacionalizada. Além disso, ela defende que a regulação referente às Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS) deve prever a possibilidade de remembramento das terras após o processo de regularização fundiária, para impedir a ocorrência de gentrificação pela aquisição dos terrenos contínuos por parte do capital privado para a construção de grandes empreendimentos. Na lei 13.465/2017, apesar das ZEIS serem mencionadas, é feito de forma não-vinculante; isto é, o processo de regularização na nova lei não é condicionado ao estabelecimento do interesse social da terra a ser regularizada.