Enquanto a Providência, a favela mais antiga do Rio, celebra 120 anos desde a sua fundação, a cidade tem passado por um momento mais amplo de acertos de contas históricas, e vem considerando como utilizar melhor o passado para construir identidades e enfrentar o futuro. Desta maneira, o estabelecimento do Museu das Remoções na Vila Autódromo e a luta do Instituto de Pesquisa e Memória dos Pretos Novos na Zona Portuária mostram que os engajamentos coletivos com a história frequentemente ocorrem através de museus, como espaços públicos dedicados ao passado. Em especial, os museus podem servir como espaços para grupos marginalizados–como moradores de favelas e afro-brasileiros–reivindicar e compartilhar as suas histórias, uma habilidade crucial, pois essas comunidades ainda enfrentam violência e obstáculos sociais hoje em dia.
A prefeitura sob o novo prefeito Marcelo Crivella relatou a sua intenção de desempenhar um papel em relação à memória da história do Rio no início deste ano, quando anunciou um plano para criar o Museu da Escravidão e da Liberdade, ou MEL, na Zona Portuária do Rio. O museu, já programado para abrir em 2020, pretende memorizar o passado do Rio como o maior porto de escravos na história mundial e também detalhar os elementos da experiência afro-brasileira após a emancipação, inclusive o samba e outras expressões culturais. Em resposta a este plano, no entanto, muitos membros da comunidade histórica do Rio, e representantes de inúmeros museus comunitários e projetos históricos já existentes na cidade, expressaram dúvidas quanto à eficácia e às intenções da proposta.
O plano atual é abrigar o museu em um armazém do século XIX construído por André Rebouças–que foi engenheiro e um dos afro-brasileiros mais proeminentes na história do Rio–ao lado do Cais Valongo na Zona Portuária. O cais, que foi o polo do mercado de escravos no Rio e o local de inúmeras transações de seres humanos, foi designado Patrimônio Mundial da UNESCO em julho, mas permanece pouco visitado, e sem segurança permanente.
Enquanto muitos comentadores concordam que a localização proposta para o MEL ao lado do Valongo é uma escolha lógica, o armazém em questão já está ocupado pela Ação da Cidadania, ONG que trabalha para combater a desigualdade e que foi fundada em 1993 por Betinho de Souza. Roberto “Kiko” Afonso, o atual diretor executivo da ONG, pormenorizou uma frustrante “falta de respeito” ao tratar com a prefeitura, revelando que a Ação da Cidadania sequer fora informada diretamente sobre o plano para o MEL, apesar da ONG ter investido mais de R$15 milhões no prédio desde que foi resgatado da deterioração há vinte e cinco anos. Em um comentário no Facebook em 30 de junho, a Secretária Municipal da Cultura, Nilcemar Nogueira, declarou que a ONG continuaria a funcionar “no mesmo lugar”. Afonso, no entanto, falou sobre inúmeras “falsas narrativas” da prefeitura e salientou: “Temos 6.500 metros quadrados no momento. Todos os nossos programas futuros foram projetados para caber no nosso espaço”.
Outra crítica ao museu é de ordem financeira–os projetos ostentosos da era das Olimpíadas como o Museu do Amanhã ultrapassaram em muito o orçamento e continuam a receber suporte público, enquanto as instituições comunitárias como o Instituto Pretos Novos (IPN), o maior cemitério de escravos das Américas, ao lado na Gamboa, tiveram as verbas cortadas, e como resultado o IPN tem lutado durante meses para manter as suas portas abertas ao público.
Ao chegar no meio da crise financeira do Rio–que tem sido usada como justificativa para enxugar as verbas do IPN e de outros locais–o anúncio de um novo imenso projeto de construção na Zona Portuária é incompreensível para muitos. Afonso lamentou: “Porque inventar um novo museu agora? É somente para benefício político e pessoal. Qual é a lógica disso?”
A historiadora norte-americana, Sadakne Baroudi–moradora do Rio há muito tempo e organizadora do Afro-Rio Walking Tour–falou sobre este ponto: “Se nos Estados Unidos temos um problema com o complexo industrial militar, no Brasil temos o ‘complexo industrial da construção'” que permite a corrupção em grande escala. “Se temos dois milhões para um novo museu, então todos os porcos podem vir ao cocho”. Sadakne e outros, na realidade, até duvidam que o museu planejado verá a luz do dia.
Mais amplamente, no entanto, Sadakne argumentou que os “projetos de gentrificação” como os que estão ocorrendo em todo o Porto do Rio “são projetos de branqueamento. São projetos anti-negros… Então, é uma maneira de cercar e controlar a história do negro africano” pela prefeitura em grande parte branca. De fato, dois temas dominantes, entre os críticos do projeto do museu, são a sua falta de transparência e uma aparente falta de participação dos negros. Sob muitos aspectos, o plano para o MEL é lamentavelmente inadequado para abordar uma parte especialmente dolorosa da história brasileira, tudo isso enquanto os moradores da histórica Zona Portuária enfrentam crescente pressão de gentrificação e as instituições já existentes recebem pouco ou nenhum apoio.
O plano para o MEL parece especialmente desafinado quando colocado em um contexto de toda a cidade. Atualmente o Rio é um foco do pensamento sobre a assim chamada “nova museologia” ou “museologia social”, que enfatiza experiências íntimas e interativas nos museus onde os visitantes entram em contato com perspectivas de primeira mão e narrativas subalternas. Esta variedade de museu–exemplificada em muitos locais da cidade–tende a prestar-se melhor para a história dos grupos marginalizados, a medida que lutam com as realidades históricas que continuam afetando quase todos os aspectos das suas vidas hoje em dia. O MEL, no entanto, parece encaixar-se em um tipo de museu mais tradicional, onde a narrativa publicada é mais dominada pelas elites. “O Brasil é um país racista e um museu do Crivella também seria racista”, argumentou Heloisa Helena Costa Aberto, uma praticante de Candomblé que foi removida da sua casa na Vila Autódromo antes das Olimpíadas. “Crivella não valoriza a cultura dos negros”, ela explicou. “Ele cortou verbas do carnaval, proibiu o samba na Pedra do Sal, é contra a Feira das Yabás. Todas são festividades dos negros. Quando o Cais do Valongo foi declarado Patrimônio Mundial da UNESCO, ele não fez nenhuma declaração e nem comemorou. Ele fala com orgulho sobre a sua estadia na África [como missionário], que é a sua maneira de estabelecer um relacionamento positivo com os negros, mas ao mesmo tempo ele quer evangelizá-los“.
Uma afro-brasileira proeminente envolvida no MEL é a encarregada do projeto, Nilcemar Nogueira, atual Secretária Municipal de Cultura de Crivella. Neta de um dos fundadores da famosa escola de samba Mangueira, Nilcemar foi diretora de Carnaval da Mangueira e fundou o Museu do Samba em 2015. Tornou-se Secretária da Cultura no início deste ano e no mês passado promoveu uma audiência e um painel enérgico sobre o MEL que contou com membros da comunidade afro-brasileira da Zona Portuária, representantes do Quilombo Pedra do Sal e do Instituto Pretos Novos. Apesar de Nilcemar ter se apresentado como “militante” na audiência e prometido que o MEL faria parte do novo movimento da museologia, os críticos temem que ela seja apenas uma figura bem-intencionada colocada pelos seus superiores prontos para sobrepô-la, como aconteceu com o Circuito da Herança Africana no Rio no governo do prefeito anterior Eduardo Paes. Como Rolf de Souza, professor da UFF e membro do movimento negro do Rio, colocou, “esta é uma nova estratégia. Colocar uma negra lá para dividir a comunidade, um lutando contra o outro. Para perdermos o nosso foco comum e lutar contra ela. Dividir para governar“.
O MEL recebeu um certo apoio e contribuições de pelo menos um museu da comunidade de museus do Rio. O Museu do Negro–localizado dentro da Igreja Nossa Senhora do Rosário, uma igreja católica tradicionalmente negra no Centro do Rio–participou entusiasticamente no grupo de trabalho formado para aconselhar sobre o MEL. Para Ricardo Passos, um dos diretores do museu, o sucesso do MEL ao contar a história da escravatura negra “antes, durante e depois” depende da participação das instituições já dedicadas a contar aquela história na cidade. Ele está otimista por achar que uma instituição como o MEL poderá reunir mais locais como estes no Rio do que os que estão atualmente em comunicação. O Museu do Negro, por exemplo, não faz parte do Circuito da Herança Africana que inclui, entre outros, o Cemitério dos Pretos Novos e o Cais do Valongo. Ricardo imagina elevar a história dos negros brasileiros do nível “regional” para o “global” através da criação do MEL e o vê ancorando uma troca de ideias e artefatos entre as instituições menores.
Certamente não há uma oposição geral à ideia de um museu como o MEL no Rio. Vários observadores ressaltaram que é necessário mais discussão pública sobre a história da escravidão na cidade, mas aconselharam que qualquer museu ou local similar não deveria focar somente ou até principalmente na escravidão, como parece ser o caso do MEL. “Não deveria ser um museu da escravidão, mas da diáspora”, afirmou Rolf. Um museu da “escravidão e liberdade” seria “um nome mais brando,” de acordo com Heloisa Helena, atrás do qual os burocratas brancos poderiam se esconder para vender uma narrativa branqueada. Como Rolf ressaltou: “Devemos ficar bem atentos para que o museu não seja erguido nos termos da ideologia supremacista branca. Eles querem mostrar a assim chamada ‘escravidão branda’–a ideia de que afinal não era tão ruim e violenta, e no fim todos ficamos amigos. Que os portugueses eram pessoas boas porque no final misturaram-se com os escravos–este tipo de ideia“.
Um museu da diáspora deveria ter no seu âmbito toda a experiência dos negros no Brasil, inclusive a rica cultura–e a luta–ainda vivas tanto na Zona Portuária quanto nas favelas hoje em dia. Como Sadakne salientou, “quando olhamos para a Zona Portuária, o que temos é um museu africano brasileiro ao vivo. Quero dizer, este é um bairro habitado por negros africanos durante centenas de anos. A Pequena África remonta a 1640”. Transformar esta experiência vivida, fresca e real em um museu territorial representa muitos desafios próprios, mas–ao contrário de simplesmente acrescentar uma narrativa comemorativa de samba e os feitos de afro-brasileiros individuais como Rebouças ao final da história da escravatura–seria um empenho que parece prometer uma experiência com muito mais impacto para os visitantes do que a proposta do MEL.
Todavia, não faltam planos para este tipo de memorial na cidade. O desenvolvimento do Circuito da Herança Africana em 2011 produziu um plano completo para um memorial ainda não realizado que “contextualizava a escravidão de um modo em longo prazo”, de acordo com Sara Zewde, a planejadora urbana etíope-americana que o projetou, ligando vários espaços públicos dentro da Pequena África. Ao invés de somente imagens de “chicotes e correntes”, o plano completo para o circuito incorpora elementos da cultura material da Pequena África–elementos como água, tijolos vermelhos, e figueiras trazendo o folclore e as crenças africanas para um cenário brasileiro–e integra o circuito no cotidiano dos moradores criando locais para encontros e recreação. Sara disse que idealizou um museu como uma “âncora” ou “epicentro” para o circuito, sugerindo que um museu no local proposto para o MEL poderia prover uma das maiores necessidades do Rio se realizado de maneira a responder às críticas já feitas e estar ligado a uma completa memorialização territorial da área.
Sara ressaltou que a prefeitura não precisaria procurar muito longe para encontrar ideias já criadas tendo em mente a perspectiva da comunidade negra: o Circuito representa um plano existente. E como a profusão de vozes sobre o museu deixa claro, o Rio possui tanto a demanda por um museu africano como as pessoas e a energia necessárias para fazer dele uma instituição na vanguarda das comemorações da diáspora africana em todo o mundo.