A carta abaixo, recentemente divulgada entre mídias internacionais e órgãos de direitos humanos, foi escrita por Heloisa Helena Costa Berto, ex-moradora da Vila Autódromo, em consequência ao aumento perturbador dos ataques violentos aos seguidores de religiões afro-brasileiras e a seus locais religiosos em todo o Brasil. O número de casos relatados de intolerância religiosa no Estado do Rio de Janeiro cresceu quase 40% este ano em relação ao mesmo período do ano passado. Os números do ano passado, no entanto, já tiveram um aumento de 119% em relação aos reportados em 2015. Esses dados abrangem os casos em que os seguidores de Candomblé e Umbanda foram espancados, torturados e até mortos e casos em que indivíduos foram forçados a destruir os seus próprios artefatos sagrados e centros religiosos. No contexto de uma força crescente de líderes evangélicos conservadores na política em todo o Brasil, as autoridades até agora não tomaram medidas efetivas para proteger os direitos dos cidadãos à religião ou, de fato, proteger suas vidas e casas contra ataques.
Rio de Janeiro, 30 de setembro de 2017
Meu nome é Heloisa Helena Costa Berto, sou conhecida espiritualmente como Iyalorixá Luizinha de Nanã, Sacerdotisa de Candomblé, religião de matriz afro-brasileira. Fui moradora da Vila Autódromo, lugar onde se deu a maior parte dos últimos Jogos Olímpicos. Lutei durante três anos para preservar o templo de Candomblé, que se localizava no lugar das obras. O templo sagrado funcionava há 20 anos e por causa das obras para as Olimpíadas a prefeitura me expulsou da localidade. O templo sagrado foi demolido por ordem judicial, em menos de 24 horas foi ao chão. Na demolição, a prefeitura cercou o local com 50 guardas armados e mais 20 funcionários que sem nenhum respeito, ofenderam minha religião, meus orixás, usando palavras impróprias, humilhações e desrespeitando meu sagrado. Meu sofrimento foi muito grande.
Sempre lutei como religiosa pelo ser humano e pela natureza. Com a luta pela preservação de meu sagrado passei a ampliar esta batalha, em uma maior perspectiva pela causa do racismo, do racismo religioso e pela luta de todas nós, mulheres negras. A luta é árdua, pois idealizo ver a paz e integração entre os diversos seres com suas diferenças. Sonho e luto por isto. Pela batalha que desenvolvo me tornei defensora de direitos humanos, fui agraciada pela Comenda Pedro Ernesto dada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro e pelo prêmio Dandara concedido pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Assim também como fundei a ONG Abayomi, que luta contra a desigualdade racial.
O problema do racismo que existe no país é antigo, mas há muito tempo ele não se apresentava com tanta intensidade e evidencia como nos dias atuais! O mal que tem o poder de adoecer uma sociedade inteira. Que destrói como uma epidemia, se alastrando como fogo. A ONU concedeu a década aos povos negros, e são justamente os povos negros, sua cultura, sua religião, sua arte, que está sendo destruída no Brasil.
Venho por meio desta pedir aos órgãos internacionais ou a própria ONU a interferência, nos casos de violência, destruição, morte, espancamento, torturas, que nós negros, seguidores de religiões de matriz afro-brasileira estamos sofrendo. Existem casos por todo o país, sendo que o estado do Rio de Janeiro lidera este índice nefasto. São vários municípios que estão sendo atacados. Homens armados com metralhadoras e fuzis invadem casas religiosas, obrigam os líderes religiosos a quebrarem toda casa e os artefatos sagrados, espancam, torturam com ameaças de cortarem as mãos das vítimas que não obedecerem. Estas ações são gravadas pelos torturadores que colocam as filmagens em redes sociais. Este fato leva ao pânico geral. São fotos, vídeos que comprovam as ações que denuncio.
O que comprova ser um ato de racismo e terrorismo é o fato das ações serem dirigidas apenas as religiões de matriz afro-brasileira. O próprio torturador quando está executando os atos se refere as pessoas com ofensas dirigidas a nossa religiosidade, são expressões como: bruxas, feiticeiras, macumbeiros. Os agressores justificam-se atribuindo seus atos ao amor a Cristo. Demostram e disseminam o ódio pela nossa religião e tudo que se refere a tradição negra. Um processo que vem aumentando na mesma proporção do aumento de adeptos de igrejas neopentecostais. Este processo de violência e tentativa de genocídio de uma religião, já é atualmente fonte de estudo de algumas universidades, com teses de mestrado e doutorado.
Peço que organismos internacionais influenciem as autoridades brasileiras a tomarem providências eficientes e eficazes. Infelizmente somos uma população que socialmente é descartada pela minoria poderosa. Não podemos continuar sendo exterminados, vítimas de um genocídio produto do racismo. Enquanto não somos ouvidos, vivemos em sofrimento isolados com pretensos festejos de uma década destinada a nós negros. Não sei se sobreviverei a esta década, não sei se meus irmãos de fé sobreviverão a esta década de terrorismo religioso no Brasil. Só sei que apesar do sofrimento, da angústia pela espera de ser quem sabe a próxima vítima, da dor e tristeza por tantos que já se foram, continuo a lutar e peço a ajuda de quem como eu deseja paz entre as religiões.
Heloísa Helena Costa Berto