A partir da próxima segunda-feira, 26 de fevereiro, estaremos publicando uma série de matérias: a tradução em português, por completo, do capítulo referente à Vila Autódromo mencionado nesta resenha.
A coletânea editada por Andrew Zimbalist intitulada Rio 2016: Olympic Myths, Hard Realities (Rio 2016: Mitos Olímpicos, Duras Realidades) é uma brilhante análise sobre os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro e seu impacto na cidade. Como já é de conhecimento dos leitores deste site, os Jogos Olímpicos Rio 2016 foram caóticos, caracterizados por uma polícia violenta, remoções de favelas, degradação ambiental e uma série de outros abusos dos direitos humanos, além da corrupção e consequências econômicas que foram divulgadas na imprensa mundial.
Colocando o Rio 2016 no contexto dos últimos Jogos Olímpicos, o primeiro de dois capítulos do cientista político Jules Boykoff, nos lembra de que a história não é apenas sobre o Rio: “Embora seja fácil apontar o dedo para a Cidade Maravilhosa–culpar o Rio–a realidade é muito mais complexa. Os problemas que podem parecer do Rio são, na verdade, problemas Olímpicos”. Isso pode ser observado pelo modo que as cidades-sede das Olimpíadas sofrem regularmente com gentrificação, militarização e limpeza social das populações marginalizadas.
O primeiro dos capítulos da jornalista Juliana Barbassa documenta o amplo cenário político e econômico brasileiro que levou aos Jogos Olímpicos, destacando as condições econômicas globais que estavam no centro da recessão econômica. Ele foca principalmente no “complexo industrial da construção” e no poder das construtoras no Brasil, que estão no cerne do atual escândalo de corrupção política investigado pela Lava Jato. Para todos aqueles (incluindo a autora) que às vezes acham difícil acompanhar todos os detalhes deste escândalo, o capítulo escrito por Juliana é um excelente ponto de partida, já que apresenta uma vasta gama de detalhes sem tornar a leitura complicada.
A luta da Vila Autódromo contra a remoção é o foco do capítulo escrito pela urbanista e diretora executiva da Comunidades Catalisadoras*, Theresa Williamson. Repleto de descrições detalhadas, é um relato comovente e íntimo sobre a pequena favela que desafiou as Olimpíadas e venceu, principalmente se levar em consideração a determinação da Prefeitura e o poder das empreiteiras afim de removê-la, numa história semelhante à de Davi e Golias. Ela relata a variedade de protestos criativos usados pelos moradores e seus aliados, desde iniciativas de planejamento urbano participativo até o Museu das Remoções, assim como festivais culturais frequentes.
Segundo Theresa, a Vila Autódromo nos ensina várias lições sobre como os moradores de favelas podem resistir às remoções, desde o embate legal apoiado pelos defensores públicos até os vários eventos realizados na favela para promover a união. A variedade das táticas de resistência fez com que moradores chamassem a atenção da mídia internacional, tornando suas histórias mundialmente públicas, o que pressionou a Prefeitura a deter as remoções. A liderança forte e diversa na comunidade continua apoiando à luta pelo direito à moradia de várias maneiras, desde o Museu das Remoções até o compartilhamento de experiências em eventos internacionais e a participação em protestos contra a atual onda de ameaças de remoções.
Renata Latuf de Oliveira Sanchez e Stephen Essex analisam o legado do Rio 2016 do ponto de vista da arquitetura e do planejamento urbano. Eles destacam que gastos extravagantes com ‘starchitecture’ (projetos assinados por arquitetos célebres), comum nos Jogos Olímpicos recentes, foram misericordiosamente limitados ao Museu do Amanhã, no Rio. Enquanto os planos iniciais para o Parque Olímpico e outras áreas urbanas incluíam áreas de uso misto em grande parte do espaço público, os planos eram frequentemente alterados, passando a refletir os desejos de lucro das empreiteiras. Os autores concluem que os projetos de planejamento urbano do Rio 2016 são “caracterizados pela distância entre eles e os moradores da cidade”.
O jornalista Jamil Chade traçou uma visão revigorante sobre o trabalho do jornalismo nos Jogos Olímpicos e na manipulação sistemática da mídia empreendida pelo Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos do Rio. Ainda que a enxurrada de histórias negativas sobre a poluição na Baía de Guanabara possa ter soado como publicidade negativa, os gurus midiáticos do Rio 2016 foram encorajados a divulgar o problema para distrair os jornalistas da corrupção generalizada na organização dos Jogos. Felizmente, parece que a polícia não foi tão facilmente enganada, com o chefe do comitê organizador, Carlos Nuzman, preso em outubro de 2017, o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, na prisão e o ex-prefeito, Eduardo Paes, sob intensa investigação por sua participação.
O segundo capítulo de Juliana se concentra na política de segurança pública da ‘pacificação‘. Ela descreve que o começo da política foi bem planejado, uma ideia inteligente para transformar o papel do Estado nas favelas do Rio. Este novo modelo de policiamento era para ser drasticamente diferente da abordagem histórica, enraizada no racismo, brutalidade e desconfiança em relação aos moradores da favela. De fato, ela observa que nos primeiros anos a política foi considerada bem-sucedida–e com razão, as UPPs resultaram em uma queda de 75% na taxa de homicídios praticados por policiais, e 92% dos moradores de favelas com UPP aprovavam o programa.
Então, o que deu errado? Segundo Juliana, a resposta é simples: os Jogos Olímpicos. A pacificação se tornou parte do projeto das Olimpíadas no Rio (se ela já havia sido concebida dessa forma, fica incerto na fala de Juliana), ajudando a cidade a conquistar o direito de sediar os Jogos, apenas um ano após o Santa Marta ter recebido a primeira UPP da cidade. O prazo Olímpico determinou que, ao invés de consolidar as conquistas dos primeiros anos antes da expansão, o programa fosse expandido, crescendo rápido demais, principalmente no Complexo do Alemão. Sem agentes pacificadores plenamente treinados, o exército ocupou o grande complexo de favelas da Zona Norte, e se intensificou a hostilidade entre os moradores e a força da ocupação. Com o impacto da crise econômica os poucos recursos destinados à segurança pública diminuíram ainda mais e o espectro da crise cresceu, gerando um sentimento de desânimo nos moradores de favelas, tornando-os propensos a ter mais medo da polícia do que do tráfico. Juliana argumenta que, embora a atuação do exército tenha garantido a segurança da cidade durante os Jogos, a atual crise de segurança é o legado deixado por atrelar a pacificação ao cronograma de megaeventos, ou seja uma política de segurança ‘para inglês ver‘.
O segundo capítulo de Jules foca no legado ambiental dos Jogos, ou melhor, na falta dele. Desde que o Comitê Olímpico Internacional (COI) incorporou a linguagem da sustentabilidade nos anos 90, foi exigido que as potenciais cidades-sede se comprometessem com legados ambientais a fim de conquistar o direito de sediar os Jogos. O Rio prometeu limpar a Baía de Guanabara, plantar árvores para compensar a emissão de carbono causada pelos Jogos e instalar novas estações de tratamento de água. Conforme os Jogos se aproximavam, cada um dos projetos ambientais foi sendo abandonado. No entanto, apesar deste imenso fracasso, o Rio 2016 teve a ousadia de tornar o meio ambiente o ponto central da cerimônia de abertura, com a promissora floresta de apenas 11.000 árvores plantada por atletas (uma gota no oceano, em comparação às 34 milhões que foram prometidas). E até mesmo esta insignificante floresta ainda não foi iniciada devido à falta de recursos.
No capítulo final, o economista Andrew Zimbalist nos apresenta o custo de sediar os Jogos. Com os diversos elementos apresentados pelos organizadores, a riqueza das informações pode ser mais confusa do que esclarecedora. Andrew explica como os Jogos Olímpicos do Rio custaram, no mínimo, 20 bilhões de dólares, sendo que apenas 9,2% deste valor veio do setor privado. A arrecadação foi de apenas 3 bilhões de dólares e o número de turistas não teve um aumento significativo durante os Jogos. Como é mostrado no restante do livro, há pouca esperança de benefícios a longo prazo por conta dos Jogos. O Rio 2016, conforme previsto pela maioria dos brasileiros antes do início do evento, mais prejudicou o Rio do que o ajudou.
Rio 2016 é uma excelente revisão das consequências devastadoras de sediar os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. A única crítica ao livro é de que ele é muito curto: vários problemas causados pelos megaeventos no Brasil foram deixados de fora ou pouco discutidos. Isto inclui a crise na saúde e as greves nas escolas causadas pelos cortes no orçamento, os graves problemas estruturais de racismo e sexismo no Rio, violações ao direito de protestar, as remoções generalizadas em favelas (discutidas em detalhe apenas no caso isolado da Vila Autódromo), o fechamento de instalações esportivas comunitárias e prioridades descabidas em relação à mobilidade urbana (que, apesar do investimento massivo, conseguiu ficar pior).
Os Jogos Olímpicos tampouco vão deixar de passar por cima das populações das cidades-sede, seja pela destruição de uma floresta sagrada na Coreia do Sul ou pelas remoções de moradores idosos em Tóquio. E sabe-se lá quais abusos aos direitos humanos aguardam (novamente) os moradores de Beijing, já que a cidade irá sediar os Jogos de Inverno em 2022. Os cariocas, livres dos grilhões de sediar megaeventos, podem novamente começar a pensar em formas criativas e inovadoras de melhorar a cidade. Depois de limpar a bagunça deixada pelo COI e seus comparsas locais, claro.
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A partir da próxima segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018, estaremos publicando uma série de matérias: a tradução em português, por completo, do capítulo referente à Vila Autódromo mencionado nesta resenha.
*RioOnWatch é um projeto da ONG Comunidades Catalisadoras.
Adam Talbot é professor de sociologia do esporte na Universidade de Abertay, Dundee. Sua pesquisa se concentra em protestos, direitos humanos e nos Jogos Olímpicos.