Esta é a primeira matéria de uma série de duas partes, de uma entrevista produzida pela mídia comunitária Fala Manguinhos! sobre as eleições. Leia a segunda parte aqui.
A cada dois anos as favelas se tornam palcos de disputas e atenção para políticos fluminenses de âmbito municipal ou estadual. Embora entre uma eleição e outra nossas favelas permaneçam precisando de atenção nos velhos e conhecidos dilemas sociais (como saúde, educação, moradia, saneamento básico, enchentes, tiroteios, etc.), esses problemas só se tornam importantes na boca de políticos quando eles precisam usar essas carências para construir seus discursos de salvadores da pátria, criadores dos melhores planos e promessas, dizendo que irão garantir tudo o que a favela sempre pediu e nunca foi atendida.
Estamos em um ano eleitoral e o cheiro dos perfumes importados de candidatos já empestam os becos e ruas de nossas favelas. Precisamos conversar seriamente sobre o valor real do nosso voto, e porque não devemos trocar ele por uma cesta básica ou uma consulta particular. Embora tenhamos necessidades urgentes, precisamos entender que problemas pontuais (doença, falta de um prato de comida, falta de emprego) só existem porque fazem parte de um problema muito maior, a negação dos nossos direitos constitucionais. O que devemos fazer com nosso voto é garantir que aqueles que passarão a integrar as bancadas parlamentares lutem por esses direitos humanos, para não ficarmos reféns dessas promessas de migalhas a cada dois anos. Votar é apenas o primeiro passo no processo de participação e transformação democrática. Se no primeiro passo você cair em um buraco, não poderá exigir que o resto da caminhada seja assegurado.
Para entendermos com mais profundidade a história político-eleitoral do Brasil, eu, Edilano Cavalcante, coordenador do Fala Manguinhos!, conversei com o bacharel em história pela UFRJ e doutor em história das ciências e saúde pela Fiocruz, além de morador de Manguinhos há mais de 14 anos, André Luiz Lima. André tem uma atuação permanente em vários movimentos populares, com destaque para seu ativismo junto ao Conselho Comunitário de Manguinhos, enquanto Coordenador do GT de Trabalho e Renda, e ao Conselho Gestor Intersetorial do Teias Escola Manguinhos. André também esteve presente em debates importantes no Fórum Nacional e no projeto Pacto do Rio, sempre defendendo que os moradores de favelas fossem ouvidos na hora de se conceber e planejar alguma política ou projeto destinado a tais territórios. Hoje atua na Cooperação Social da Fiocruz, construindo novos modelos de governança democrática territorial.
Nessa primeira parte da entrevista, exploramos temas mais amplos da política democrática, para na segunda parte entrarmos na sua manifestação territorial específica em favelas. Confira:
Edilano Cavalcante: De onde vem a palavra política? Na prática, o significado funciona para todos no Brasil?
André Lima: Bem, primeiramente esse termo tem uma relação histórica com os antigos gregos, especialmente no relacionamento entre os membros de uma cidade. Daí, temos a ‘pólis’, e seus cidadãos ‘políticos’. Escritos atribuídos a Aristóteles dão conta de que este importante pensador grego entendia que todo homem seria um animal político. Importante dizer, como historiador, que esse conceito se molda no tempo e espaço. Entretanto, se considerarmos a política enquanto uma dimensão de poder na qual os homens e mulheres interagem para resolução de assuntos comuns, podemos afirmar que em qualquer contexto de agrupamento e relacionamento humano teremos a dimensão política envolvida, ainda que não se nomeie desta forma.
Destaco ainda que política é a esfera de disputa de poder. Assim, seja numa posição de mando ou na de submissão, a política está sempre envolvida. A política permeia relações não apenas em governos, mas em questões religiosas, assuntos de vizinhança e empresas, entre outras dimensões da experiência humana. Portanto, mesmo que algumas pessoas digam que não são políticas, essa afirmativa acaba por ser um posicionamento político! Na dimensão de governo, a política é a responsável pelo sucesso ou fracasso do acesso a educação e saúde, e condiciona o acesso das pessoas a emprego e renda, bem como estrutura as possibilidades do acesso à casa própria, por exemplo.
EC: A redemocratização do Brasil é recente, no entanto o formato de escolha de representante por meio do voto é mais antigo no país. Quais foram as mudanças que ocorreram nesse sistema ao longo dos anos? Essas mudanças garantem a efetiva participação popular ou ainda é preciso ainda algumas adaptações para incluir todos?
André: Vivemos numa democracia liberal republicana, ou seja, a população pode eleger seus representantes para cargos eletivos tanto no Legislativo (vereadores, deputados e senadores) como no Executivo (prefeito, governador e presidente) por meio do voto. Todo cidadão brasileiro tem o direito de se filiar a um partido e disputar um cargo eletivo. De fato, nem sempre foi assim. Inicialmente, no processo eleitoral, não existiam partidos políticos, e o voto era facultado apenas para homens brancos, dotados de posses. Pobres, analfabetos, negros e mulheres estavam fora das decisões. Aqui entra uma informação importante: a inclusão dos direitos políticos, ou seja, de votar e ser votado, para a população brasileira como um todo não deve ser visto como uma dádiva, um presente dos governantes, mas sim como o resultado de luta política.
Agora, por outro lado, o voto em si mesmo não significa que estejamos numa democracia. Recentemente vivemos na história brasileira uma ditadura. Existia a possibilidade de eleições [para outros cargos que não o de presidente], mas vimos o cerceamento do debate aprofundado acerca dos problemas nacionais, a cassação de partidos políticos e a perseguição de opositores pelos governantes. Para o pleno exercício democrático, o eleitor tem de possuir a liberdade de filiar-se a algum partido ou grupo político e de expressar suas opiniões sem ameaça a sua vida. É preciso ainda que existam mecanismos fiscalizadores, de modo que as eleições não sejam fraudadas, como eram sistematicamente na República Velha. Que existam leis que protejam os cidadãos e que a punição por descumpri-las seja para todos.
Acredito que existam pelo menos cinco grandes entraves ao desenvolvimento de nossa democracia: a baixa escolaridade de nosso povo, a desigualdade social, o financiamento de campanhas eleitorais por meio de Caixa 2, a concentração das informações pelos meios de comunicação e os superpoderes do Judiciário.
A baixa qualidade de educação escolar ofertada ao nosso povo seria, no meu entender, a primeira dessas questões. Desde a Constituição de 1988 a educação deveria se organizar para formar cidadãos e isso não vem acontecendo. Ao contrário, a educação vem sendo sucateada em todos os níveis de governo, salvo algumas intervenções mais pontuais. E quem é responsável por isso? Os políticos que nós elegemos. Assim, o desinteresse em não melhorar a educação é para que a engrenagem que mantém certos setores da sociedade servidos pelos políticos que estão aí permaneça.
A desigualdade social caminha junto com o fenômeno da baixa escolarização. Grupos populacionais vivendo na miséria não possuem muitas opções políticas, pois sempre estarão preocupados com sobreviver ao hoje. Algo do tipo “vendendo o almoço para comprar a janta”. Assim, cestas básicas, doação de dentaduras e óculos, ligaduras de trompas, entre outros favores, são usuais na balança política cotidiana desse contingente. Do outro lado da moeda, assistimos a riqueza concentrada nas mãos de poucos, que buscam influenciar a engrenagem política de modo que seu modo de vida não tenha fim.
Uma outra questão importante que ainda precisa ser equacionada é o financiamento de campanhas eleitorais. Ainda que grandes empresas já não mais possam realizar doações, fica claro para a população que o Caixa 2 de campanha existirá por um bom tempo. Isso é visível quando o político chega na favela e financia churrasco, torneio de futebol, camisa de time, consulta médica grátis, doação de cestas básicas e outros. Isso tem um custo e não passa pelo sistema contábil formal, ou seja, advém de Caixa 2, que sempre se vincula à corrupção!
Também cabe referenciar que o voto, dentro do contexto democrático, é subsidiado por informações. Ou seja, o eleitor decide a partir do que ele acompanha pela TV, rádios, internet e jornais impressos. E nesse caso, no Brasil, precisamos ampliar o leque de opções na comunicação radiofônica e televisiva. As grandes emissoras, reféns das verbas de propagandas, de grandes bancos e grupos empresariais, não contrariaram seus financiadores. E a internet, ainda que seja um importante mecanismo, tem a fragilidade das fake news que se propagam deturpando dados e eventos. Sobre esse aspecto, ainda tem as análises de metadados, cuja governança é um problema de ordem mundial.
No caso do Judiciário, ele é extremamente conservador, retrógrado, repleto de privilégios e sem nenhum controle social de sua atuação. Cadeia no Brasil é para pobres! E temos ainda uma seletividade penal e desembargadores que querem legislar. Melhor seria se se candidatassem a deputado ou senador.
Precisamos defender a democracia, uma democracia que ainda nem chegou de fato a todos os brasileiros, mas que certamente será sempre superior a qualquer ditadura.
EC: Porque é tão difícil a participação popular nas escolhas feitas para o rumo do país? Porque os favelados, camponeses, quilombolas e toda classe de proletariado que formam a base da pirâmide têm tanta dificuldade de entrar nesses espaços de participação e disputas?
André: Começamos nossa conversa falando que a política está nas diversas esferas de relacionamento humano, e que se aloca no que poderíamos chamar de relações de poder. Assim, as diferenciações sociais são utilizadas pelos grupos no poder para a manutenção das desigualdades sociais, que no Brasil atinge níveis absurdos. Desse modo, grupos sociais são estigmatizados nas relações diárias e impedidos de forma física ou simbólica de acessar certos direitos na esfera política. Os citados por você, quilombolas e favelados, são um bom exemplo. Por isso, o próprio direito à participação tem que ser conquistado cotidianamente.
Aliás, falamos aqui da participação no que tange ao processo de escolha de nossos representantes nos poderes Executivo e Legislativo, mas temos ainda, desde 1988, outras formas institucionais de participação, tais como os conselhos de política pública e os referendos. Se considerarmos que a participação é um fenômeno social, por meio da qual os indivíduos se organizam para conceber, influenciar, fiscalizar ou encerrar algum projeto, programa, lei ou iniciativa governamental, o seu exercício não pode ser restrito aos meios formais. Passeatas, abaixo-assinados, atos públicos são também formas de participar. Óbvio que para certos grupos sociais os obstáculos colocados são por demais severos!
Sendo assim, corroboro a ideia do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos de que precisamos ‘reinventar a democracia’, mantendo as eleições regulares, mas fortalecendo outros mecanismos de participação, como os conselhos e consultas públicas. Acho que em breve a internet será uma bela forma do cidadão se manifestar e participar de forma mais ativa, ainda que hoje já tenhamos alguns exemplos importantes.
Retomando ao cerne da sua indagação, para a participação existir é preciso que exista a garantia mínima de sobrevivência, de acesso a informação e liberdade para se posicionar. No Brasil, de um modo geral os trabalhadores estão correndo atrás da sua sobrevivência, o que, quando somado ao sentimento coletivo de descrença da política e às várias formas de desinformação, formam um cenário pouco propício a esse exercício. Quanto ao acesso à informação, esse também se relaciona com a formação escolar: muitos não conseguem entender certos termos e conceitos que estão envolvidos na esfera pública. Isso limita a capacidade de ação. E por último, especialmente nas favelas e periferias, o controle territorial por grupos armados incide diretamente na capacidade de livre expressão.
Leia a segunda parte da entrevista aqui.
Matéria escrita por Edilano Cavalcante e produzida por parceria entre RioOnWatch e Fala Manguinhos!. Edilano é coordenador da agência de comunicação comunitária Fala Manguinhos!. Como prática de comunicação comunitária produzida por e para Manguinhos, o Fala Manguinhos! tem em sua origem a defesa dos direitos humanos e ambientais, promoção de cidadania e saúde com a participação direta dos moradores e moradoras nas decisões que envolvem a Agência de Comunicação Comunitária de Manguinhos, a partir dos encontros do grupo de comunicação do Conselho Comunitário. Siga o Fala Manguinhos pelo Facebook aqui.