No sábado, dia 23 de junho, aconteceu em São Gonçalo o 11° Fórum Rio, encontro organizado pela Casa Fluminense para reunir uma rede de movimentos e ativistas dos 21 municípios da metrópole e discutir propostas de políticas públicas. O Fórum marcou o lançamento do Rio Por Inteiro, movimento suprapartidário para aumentar a participação do cidadão no processo eleitoral, incentivar a transparência e promover o controle social das gestões, como parte de um “esforço de apresentar uma pauta positiva para a cidade”, como coloca Henrique Silveira, coordenador executivo da Casa Fluminense.
“O movimento surge em um contexto de desprestígio político, esvaziamento das instituições e distanciamento de uma participação social da política institucional”, explica Maria Luiza Freire, coordenadora de projetos da Fundação Cidadania Inteligente, organização que capitaneia o movimento junto à Casa Fluminense. Um de seus instrumentos é uma plataforma online na qual candidatos podem se comprometer com as propostas cadastradas por organizações e apoiadas por cidadãos, de forma que o usuário possa dar “match” com o candidato que se comprometer com as propostas priorizadas por ele, em alusão ao aplicativo de relacionamento Tinder.
“Além de ser um espaço para o diálogo entre organizações, cidadãos e candidatos e ajudar a qualificar o voto, a plataforma também traz conteúdos que ajudam a abrir o jogo quanto ao funcionamento do processo eleitoral, em um contexto em que o monitoramento e a participação são dificultadas pela mudança constante das regras eleitorais–o Brasil nunca teve mais do que duas eleições seguindo a mesma regra eleitoral”, explica Maria Luiza. Um exemplo de mudança para essas eleições é a redução do tempo de campanha de 90 para 45 dias.
A solução digital reflete a crescente influência das tecnologias e redes sociais no processo político, especialmente no contexto do Brasil, um dos três países em que as pessoas passam mais tempo conectadas–uma média de nove horas por dia. “Temos que entender a importância da tecnologia [para essa eleições], mas sem cair no fetiche da tecnologia”, alerta Henrique. É por isso que a iniciativa Rio Por Inteiro também conta com ações de mobilização nos territórios, como será o caso de um Aulão sobre o assunto do Pré-Vestibular Santa Cruz Universitário, no dia 10 de julho, e da Pedalada São Gonçalo por Inteiro, organizada pela União Gonçalense de Ciclistas e a Rede Funk Social no dia 3 de agosto.
Na plataforma já constam as propostas da Agenda Rio 2030, também lançada no Fórum. Desde sua fundação a Casa Fluminense lança uma agenda de propostas em todo ano eleitoral para qualificar o debate da sociedade civil e demandar comprometimento dos candidatos. A última versão da Agenda, intitulada Rio 2017, contrapunha-se ao slogan olímpico “Rio 2016”, mirando um Rio de Janeiro pós-megaeventos. Em sua versão atual, resultado de um acúmulo de experiências da Casa e em articulação com mais de 50 organizações parceiras, a Agenda expande o horizonte para além da próxima gestão estadual e reforça o alinhamento com a agenda internacional de desenvolvimento sustentável proposta pelas Nações Unidas (chamada de Agenda 2030), contribuindo para a sua concretização no território.
O resultado são 40 propostas calcadas em demandas reais, organizadas em 8 grandes eixos–que incluem emprego e renda, mobilidade urbana, segurança pública e direito à vida, saneamento e acesso à saúde, educação e cultura. As propostas se orientam pelo lema do movimento Rio por Inteiro: mais oportunidades e menos desigualdades. “O Marcos Vinícius aparece na agenda de propostas. Hoje vão buscar entender a consequência da desigualdade, que se materializa na morte do Marcos. A gente vai nas causas–na taxa de escolaridade [nesses territórios], na política de segurança”, explica Vitor Mihessen, coordenador de informação da Casa Fluminense, em alusão ao assassinato do adolescente de 14 anos pela Polícia Civil durante uma operação na Maré três dias antes do Fórum.
Em resposta a operações com consequências trágicas como essa, frequentes na Maré, a Redes da Maré propôs ao Ministério Público uma ação civil pública junto ao Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública para exigir do governo do estado um plano de segurança específico para o território. “A gente tá cansado de atuar no campo da emergência, a gente quer ações de médio e longo prazo. A mobilização precisa ser permanente. A gente produz muito conhecimento, só não organiza. Mas a gente precisa hackear o sistema. É relatório que eles [do Ministério Público] querem? Então a gente faz relatório e apresenta os dados. A gente cansou de só fazer passeata. Queremos garantir coisas que estão previstas na lei–presença de ambulância durante as operações, câmera e GPS nas viaturas, operações que não ocorram de noite”, diz Lidiane Malanquini, coordenadora do eixo de segurança pública da Redes.
“Homicídio é só a ponta, tem uma série de outras violações. Quantas pessoas não perderam os empregos de tanto chegarem atrasados por causa de operações? A gente agora emite atestado para os moradores, timbrado e assinado, para explicar pro empregador que teve operação. Enquanto não geramos soluções permanentes temos que tentar reduzir danos. Como eles não apresentaram o plano de redução de danos no prazo previsto, fizemos o nosso próprio. Se o Estado não faz, a população da Maré faz”, completa ela.
Na mesma semana da morte de Marcos, foram também divulgados os dados do Atlas da Violência sobre mortes violentas no Brasil e dois municípios da Baixada encabeçam a lista: Queimados em primeiro lugar, com 134,9 mortes por 100 mil habitantes, e Japeri em sexto, com 95,5. A média da região metropolitana é 43, e a Agenda põe como horizonte para 2030 diminuir para 10 a cada 100 mil habitantes, acima do qual homicídios passam a ser considerados uma epidemia pela Organização Mundial da Saúde. “No horizonte estão os números que a gente quer, pensando que esses números são pessoas, são as nossas próprias vidas que estão ali refletidas. É preciso pensar como essa desigualdade fala muito sobre as vidas, sobre os corpos. E como essa desigualdade pode ser mórbida”, coloca Vitor.
“Não somos violentos, somos violentados, inclusive pela carência de políticas públicas”, diz Carlos Greenbike, ativista e fundador do Pedala Queimados, que promove o transporte ativo na cidade e ações que visam à transformação social e a valorização do território, e do projeto Anda Queimados – Caminhadas na Natureza, que além da integração dos moradores com a natureza também visa atrair turistas para a região. “Como que Queimados vai ser de fato um destino turístico se as pessoas percebem a cidade como perigosa?”, pergunta ele.
“Se houvesse mais cultura, lazer e educação nesse território talvez a Baixada não fosse palco disso”, sugere Fábio León, assessor de comunicação do Fórum Grita Baixada. A Agenda reconhece que a redução das desigualdades passa pelo acesso a esses serviços, como reforçado na fala de Maria Josélia, fundadora do Projeto Aprender na Comunidade do Pica-Pau em São Gonçalo: “Fui alfabetizada aos 27 anos. Um dia eu sofri um acidente e fiquei afastada do trabalho e, no meu tempo livre, comecei a dar reforço escolar para as crianças da favela do Pica-Pau. Qual o futuro que essas crianças vão ter se não terminarem a escola? E como essas crianças vão levantar todo dia de manhã para ir para a escola sem café da manhã?”.
Outro testemunho nesse sentido foi o da produtora cultural Taty Maria: “O problema é que a cultura não é vista como direito, mas como privilégio. Tinha um grupo de meninos do morro da Caixa D’água que ficava todo dia do lado de fora da Arena Dicró pra pegar o Wi-Fi. Um dia convidamos eles para entrar. E eles perguntaram ‘a gente pode entrar assim?’, e apontaram pra roupa que vestiam e pro chinelo”.
A Agenda traz ainda propostas para enfrentar o racismo estrutural e promover a equidade de gênero e o respeito à diversidade sexual, para a criação de mais espaços públicos e verdes onde as pessoas possam se encontrar, para a expansão da coleta seletiva de lixo com a inclusão remunerada de catadores, e para a prevenção de enchentes e expansão da rede de saneamento, com a meta de dobrar o acesso ao tratamento de esgoto. “Em Jardim Gramacho temos um problema sério do chorume do lixão fechado estar invadindo e contaminando o manguezal”, exemplifica Jovelita Miranda, moradora e liderança do movimento SOS Jardim Gramacho, favela em Duque de Caxias onde o lixão está desativado.
Constam também propostas para o desenvolvimento de uma política habitacional de interesse social, que inclua a geração de moradias nas áreas centrais em imóveis subutilizados e a viabilização de habitação popular em áreas adensadas com infraestrutura urbana, e a retomada e universalização da urbanização de favelas e da regularização fundiária, que inclua assistência técnica, jurídica e administrativa e a participação dos moradores em todo o processo, de forma a fazer frente a políticas de remoção.
“A gente não tem como pensar estratégias de mudança que não passem pela escuta de quem mora na região [afetada]. Assim a gente sai daquela coisa do político, que só aparece dentro das favelas em momentos pontuais nas eleições, e a gente pensa, a partir do trabalho que a gente faz, em uma mudança significativa dos próprios agentes locais”, diz Fabbi Silva, moradora de Parque das Missões, em Duque de Caxias, e idealizadora do Sarau Apadrinhe um Sorriso.
“Eu não tenho nada contra política partidária. Pelo contrário. Eu acho que precisa ter mais pessoas nossas ali dentro para a gente poder gerar impacto nas favelas. Mas eu entendo que as políticas sociais que são feitas nas comunidades precisam ser fortalecidas, a gente precisa trabalhar em rede. A gente precisa começar a dialogar, fortalecer o que cada um já faz em seus territórios. E aí entra a [Agenda da] Casa Fluminense e a plataforma. Precisamos sair da esfera da promessa e começar a esfera da ação. O problema do Parque das Missões não é só do Parque, o problema de Jardim Gramacho não é só de Jardim Gramacho. É da sociedade como um todo, do estado”, finaliza Fabbi.