São 3 horas da tarde de um sábado encoberto e, conforme mais pessoas adentram o Instituto Raízes em Movimento no Complexo do Alemão, o que no início parecia ser apenas uma sala espaçosa torna-se mais aconchegante a cada segundo. Saudações são trocadas; perguntas sobre o bem-estar da filha ou do tio de alguém se misturam com convites para eventos culturais e debates em toda a cidade. Uma energia excitante e fervilhante está no ar.
O grupo reuniu um grande cruzamento de grupos de direitos humanos baseados nas favelas do Rio–das Mães de Manguinhos até a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, da Campanha pela Liberdade de Rafael Braga até o Coletivo Papo Reto–todos lutando para trazer visibilidade aos abusos do Estado e à violência racial nas suas comunidades. Apesar de não ser um tema leve, o que os traz aqui hoje é um tópico mais esperançoso: eles estão se reunindo para organizar o Terceiro Julho Negro no Rio de Janeiro.
Anos Recentes
Nos últimos dois anos, Julho Negro reuniu ativistas e movimentos de vários países com o objetivo de denunciar a violência do Estado contra as comunidades negras e trocar estratégias na luta contra o racismo e a militarização.
Em 2016, uma delegação de ativistas do movimento Black Lives Matter – BLM (Vidas Negras Importam) esteve no Rio durante quatro dias, entendendo as lutas dos ativistas brasileiros e trocando ideias sobre organizar a luta para valorizar as vidas negras. Os eventos incluíram palestras sobre a brutalidade policial e a guerra contra as drogas—dois problemas que têm um grande impacto sobre as favelas e as comunidades negras nos EUA e no Brasil–e a sua relação com o racismo e a violência do Estado. Os ativistas também ressaltaram a resistência–e a necessidade de apoio–das mulheres negras, que são as que carregam o movimento, e o trauma emocional causado pela violência do Estado nas comunidades negras.
A semana fortaleceu os laços entre os ativistas negros nos dois continentes, estabelecendo elos que continuam servindo a ambas as comunidades. Nas palavras de Daunasia Yancey, do BLM de Boston, “é importante que apoiemos uns aos outros porque sabemos que esta violência está conectada. A violência contra os negros é global e nossa resistência é global”.
No ano seguinte, os organizadores ampliaram o seu escopo de conversas e ligaram as lutas no Haiti e na Palestina com as no Brasil. Soraya Misleh, uma refugiada palestina de segunda geração no Brasil, e autora do Al Nakba – um estudo sobre a catástrofe palestina, falou sobre as semelhanças do estado de apartheid em Israel e a militarização do cotidiano dos palestinos com a realidade daqueles que moram nas favelas e lidam com a violência policial e a presença militar todos os dias.
Clarence Therry, um imigrante haitiano no Brasil e líder da União Social dos Imigrantes Haitianos (USIH), falou sobre como podemos nos inspirar na revolução do Haiti, uma revolta de escravos que derrubou o poder colonial, para reimaginar o Brasil.
Outro grande tema foi o encarceramento em massa e a criminalização dos moradores das favelas, especialmente a juventude negra. Os participantes das trocas enquadraram estes fenômenos como continuações dos mesmos sistemas de domínio, especialmente o racismo e o privilégio branco, que constantemente colocam os jovens negros na mira de uma arma. Em 2016, 62% da população prisional era negra (comparada com pouco mais de 50% da população do país); entre 2005 e 2015, o número de homicídios de pessoas negras aumentou 18,2%, enquanto os homicídios de não negros diminuíram 12,2%. Uma das intenções dos eventos era construir as redes de solidariedade que ajudarão as comunidades a combater políticas que perpetuam estas realidades.
Os Planos Deste Ano
Este ano, os organizadores estão se preparando para um Julho Negro que promete ser mais abrangente do que antes. Embora os planos e a programação ainda não estejam finalizados, os eventos irão variar em estilo desde palestras e discussões em mesa redonda, até apresentação e debates sobre filmes, audiências públicas e comemorações culturais. O tema, semelhante ao dos anos passados, será racismo e militarização, e a violência do Estado que afeta desproporcionalmente os jovens negros nas favelas.
Os eventos serão distribuídos por toda a cidade, com cada local relacionado, muitas vezes intimamente, ao assunto abordado. Religião e militarização é um dos temas, e será discutido no Terreiro Omijuaro, um lugar de veneração e reunião do Candomblé; a militarização na cidade e nas áreas rurais, será uma conversa que ocorrerá em uma ocupação do MST em Nova Iguaçu; e a criminalização dos defensores dos movimentos sociais e dos direitos humanos, no Museu da Maré no Complexo da Maré, lar da vereadora e defensora dos direitos humanos Marielle Franco que foi executada em março. Um dos eventos centrais será um painel de debates no Complexo do Alemão sobre o sistema penal brasileiro e o sistema socioeducacional para menores, e sobre o genocídio travado contra os moradores pobres e negros das favelas no Brasil.
A semana reunirá movimentos de dez diferentes países de três continentes–de Honduras, Argentina, Colômbia, Índia, e África do Sul, entre outros. Também será organizado em conjunto com o Comitê Nacional Palestino BDS, e marcará presença na comemoração do 25° aniversário do Massacre da Candelária, quando oito jovens sem-teto foram mortos e muitos outros foram feridos por um grupo de homens que incluíam policiais.
Fransérgio Goulart, um dos organizadores do Julho Negro e membro do Fórum Social de Manguinhos, compartilha a lente aterrorizante através da qual ele começou a perceber esta tendência: “Hoje, a gente precisa pensar que o mundo vai construindo uma polícia global cujo propósito é controlar ou genocidar a população”. A tendência em direção à militarização acompanhada por violência racial é global, desde os Estados Unidos à Colômbia e desde a Palestina ao Brasil. Para os organizadores do Julho Negro, é por isso que a luta contra ela também deve ser travada no palco global, e eventos como este, que reúnem os movimentos que lutam contra muitas das mesmas forças, não são apenas importantes, mas necessários.
Julho Negro ocorrerá entre 23 e 27 de julho deste ano, em locais por toda a cidade. Os organizadores estão fazendo uma campanha de financiamento coletivo para cobrir os custos de viagem e acomodação dos ativistas convidados de todo o mundo. Clique aqui para doar. Para mais detalhes e atualizações sobre o evento, siga Julho Negro no Facebook.