“Favela não é problema. Favela é cidade. Favela é solução”. Essas foram as declarações de abertura da Vereadora Marielle Franco, em um episódio do programa Cidade Partida do Canal Brasil que foi ao ar apenas dois dias após seu brutal assassinato em 14 de março. A série apresenta debates sobre tópicos polêmicos entre especialistas que representam posições divergentes. Marielle estava no programa ao lado de Sérgio Besserman, economista, ambientalista e presidente do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (IPJB), para abordar a questão “Remover favelas é uma medida necessária?”
Marielle, que cresceu no Complexo da Maré e dedicou sua carreira a defender os direitos dos moradores de favelas–incluindo seus direitos à moradia e de proteção às ameaças de remoções–definiu sua posição a partir do fato de que as remoções afetam exclusivamente os moradores de baixa renda das favelas, e isto representa uma tentativa tendenciosa de “reordenamento da cidade” por autoridades públicas e pelos ricos. “É a manutenção do poder”, disse ela. Em contraste, Besserman, que está ativamente tentando remover moradores da comunidade do Horto, na fronteira do Jardim Botânico, defendeu a remoção. Em favelas localizadas em “área de risco” ou representando ameaças aos “ativos da cidade”, principalmente em áreas definidas como naturais e preservadas, a prática é necessária, argumentou ele.
O debate se resumiu em uma discussão sobre a sustentabilidade das favelas. Besserman implicitamente defendeu o discurso centenário de que favelas são um tipo de “ameaça” para a cidade, reformulando essa visão por meio de um tipo de ambientalismo de classe alta que é cego para questões de injustiça social. A proteção ambiental necessariamente terá vítimas de favelas, argumentou ele no Cidade Partida, enquanto minimizou o dano ambiental perpetuado pelos ricos. No entanto, o RioOnWatch coletou amplas evidências de favelas e quilombos trabalhando para preservar o meio ambiente e promover a sustentabilidade. Vamos dar uma olhada mais de perto em como Besserman estruturou seu argumento (e como Marielle respondeu) para entender como o ambientalismo se arma contra os moradores de favelas—e porque não deveria ser assim.
“Reassentamento com dignidade”
As palavras têm poder para moldar o que é considerado aceitável e o que não é. Besserman entende isso claramente. Ele abriu o episódio do Cidade Partida explicando que ele acha que “remoção”, é uma “palavra nojenta”. Marielle concordou, brincando que as pessoas “removem maquiagem, lixo”–não outros seres humanos. Besserman explicou que prefere o termo “reassentamento com dignidade”, uma frase à qual ele recorreu em outras entrevistas, e que lembra a nova preferência do Prefeito Crivella pela palavra “reassentamento” à “remoção”. Besserman deu poucos detalhes sobre como exatamente isso se daria, mas presumivelmente envolveria compensação e realocação para uma residência similar em outra área da cidade. De acordo com Besserman, dos dois milhões de ocupantes de ocupações irregulares no Rio, apenas “20 ou 30.000” deveriam ser realocados porque representam uma ameaça aos “ativos” naturais da cidade ou vivem em uma “área de risco”, uma designação amorfa que tem sido usada para justificar remoções de favelas em nome de “proteger” comunidades construídas em inclinações ou que enfrentam um risco de desastres naturais. “Para esse 0.1%, reassentamento com dignidade”, disse Besserman, “para os outros, segurança de posse”.
Como o eufemismo e a minimização dos custos das remoções de Besserman se encaixam na realidade? Suas palavras soam vazias considerando seus próprios esforços para expulsar os moradores do Horto, na Zona Sul, de suas casas nos arredores do Jardim Botânico–que seus ancestrais trabalharam para construir. Besserman em um vídeo gravado pela Agência Pública, diz que a presença da comunidade do Horto é “incompatível” com o funcionamento da instituição que administra e que a comunidade sempre foi uma “ocupação” na terra do Jardim Botânico. Assim como o Globo erroneamente caracterizou os moradores como “invasores”, sua retórica ignora que as famílias originárias do Horto foram convidadas pelo próprio Jardim Botânico a viverem na terra enquanto construíam e mantinham o parque ao lado. Aos moradores do Horto não foram oferecidas compensações para a potencial perda de suas casas e meios de subsistência. Em vez disso, a tropa de choque expulsou violentamente uma família e demoliu sua casa–muito longe de ser um “reassentamento com dignidade”. No Rio, as ordens de despejo são mais frequentemente aplicadas por fuzis e tratores do que por assistentes sociais benevolentes. Besserman é cúmplice dessas violações de direitos no Horto. Dito por ele, “Reassentamento com dignidade” é um ideal vazio.
No Cidade Partida, Marielle questionou como os moradores de favelas podem ser tratados com “dignidade” se o seu reassentamento pode significar laços comunitários e familiares esfacelados, tempos de deslocamento mais longos para seus locais de trabalho ou a perda absoluta de seus empregos. Esses riscos são significativos mesmo nos casos em que o governo oferece aos moradores reassentados moradias alternativas, já que, tanto na época das remoções sob a ditadura militar quanto na história mais recente, as moradias alternativas tendem a estar localizadas longe das casas originais dos moradores, muitas vezes em áreas periféricas na distante Zona Oeste do Rio. Quando perguntado, Besserman reconheceu que “nunca houve um reassentamento para melhorar a vida das pessoas”, colocando em questão a possibilidade de um “reassentamento digno”. Nesse segmento, ele fez referência à comunidade da Vila Autódromo, alegando que a maioria de seus moradores queriam ser reassentados, uma afirmação contestada por Marielle no Cidade Partida e contrária ao ativismo–internacionalmente reconhecido–dos moradores da Vila Autódromo em favor da proteção de suas casas. A insistência de Besserman sobre a possibilidade de um “reassentamento com dignidade” contradiz não apenas suas próprias ações, mas toda uma história de desapropriação de favelas.
Remoções verdes
Quer a versão de remoção de Besserman seja ou não possível ou provável, dada a história do Rio, seu argumento se baseia em suposições problemáticas sobre favela e proteção ambiental. Quando um dos anfitriões do Cidade Partida perguntou a Besserman qual o papel do “bem público” no seu apoio à prática da remoção, sua resposta ignorou a possibilidade de haver uma favela sustentável que coexiste e protege seu meio ambiente. Quando as favelas se sobrepõem às Unidades de Conservação designadas, “a destruição da área ambiental vai gerar muito mais pobreza e perda de renda do que o reassentamento com dignidade”, afirmou Besserman.
Um exemplo que ele deu foi o “esquema criminoso de ocupação irregular” ao redor do Parque Estadual da Pedra Branca, uma das maiores florestas urbanas do mundo. Em uma entrevista em 2006, Besserman reclamou das “pressões muito violentas” no parque e depois argumentou que era fundamental conter a pressão da “população informal da Pedra Branca”, referindo-se às favelas e quilombos na área. O RioOnWatch perfilou repetidamente uma dessas comunidades, o Quilombo do Camorim, construído por escravos libertos e fugitivos e mantido por seus descendentes. A Associação Cultural Camorim (ACUCA) realiza regularmente eventos de reflorestamento e limpeza de parques e trabalha para preservar a herança africana e indígena da terra. É irônico, então, que Besserman classifique as comunidades no parque como uma intrínseca ameaça. As verdadeiras “pressões violentas” vêm de incorporadoras imobiliárias, como a Cyrela. Cyrela derrubou árvores dentro da zona de proteção em torno da Pedra Branca para construir o Barra Media Village 3, que hospedou jornalistas durante as Olimpíadas de 2016, sendo estas terras sagradas para os moradores do Quilombo do Camorim, pois segundo eles ali era um cemitério de africanos escravizados. Isso segue uma tendência de invasão no parque por condomínios de luxo, tal como no bairro Jardim Botânico, na Zona Sul. Apesar disso, são as favelas que recebem notificação de despejo, enquanto incorporadoras recebem passe livre.
No Cidade Partida, Besserman deu a entender que apenas os pobres e vulneráveis deveriam enfrentar a remoção. “Para os ricos, você não tem reassentamento com dignidade”, disse ele. “Para os ricos, você simplesmente tem que dizer, ‘você cometeu uma ilegalidade, sua multa é tanto.’” Besserman refere-se exclusivamente às favelas como ameaças ambientais, dando aos moradores de condomínios um passe relativo. Essa justificativa “verde” para remoções de favelas forja um tipo de ambientalismo extremamente classista contra as favelas.
Ao ouvir as justificativas de Besserman para remoção com base na proteção de terras naturais, Marielle lhe perguntou diretamente sobre o caso do Joá e da Barra da Tijuca, áreas costeiras da Zona Oeste que sofreram desmatamento e poluição com o rápido desenvolvimento de condomínios fechados de luxo nos anos 1980. Estas áreas agora abrigam bairros ricos organizados em torno de shoppings e rodovias–e não são um retrato de sustentabilidade. Muitos condomínios nestas áreas despejaram esgoto bruto no oceano ou nas lagoas locais antes que a prefeitura finalmente começasse a reprimir a prática (embora a prefeitura não mantenha consistentemente essa vigilância). Em resposta, Besserman argumentou que áreas como a Barra da Tijuca “deveriam ter áreas mais preservadas”, mas como as Unidades de Conservação não existiam quando a maior parte desse desenvolvimento ocorreu, nada poderia ter sido feito. No entanto, o mesmo pode ser dito para a maioria das favelas do Rio e certamente todos os seus quilombos, que existem há décadas (especialmente o Horto e Camorim, que existem há séculos). Sua relutância em condenar os crimes ambientais dos ricos, ao defender a remoção dos pobres e vulneráveis, revela um preconceito contra os pobres.
Favela é cidade
O tipo de ambientalismo que Besserman expôs no Cidade Partida não contém nenhum elemento de justiça ambiental, uma concepção e movimento para a distribuição justa de benefícios ou responsabilidades ambientais, bem como a aplicação equitativa das regulamentações ambientais. Dá um passe relativamente livre para os danos ambientais perpetuados pelos ricos e poderosos, ao mesmo tempo em que inflige a remoção como punição–que destroça vidas–nas comunidades mais pobres. Suas designações de “área de risco” e “ativos da cidade” foram e continuam a ser aplicadas quase exclusivamente às terras ocupadas por moradores de comunidades de baixa renda. São rótulos vagos, facilmente sequestrados por interesses imobiliários ou por autoridades públicas, trazendo tratores para retirar casas e famílias das favelas.
Um ambientalismo mais justo e produtivo poderia atender às palavras da falecida Marielle Franco. Temos que “entender que a favela é cidade”, disse Marielle no final do programa. O investimento nas favelas resulta em um desenvolvimento verdadeiramente sustentável, no qual as favelas não são tratadas como ameaças à cidade. O fato é que elas são incrivelmente resilientes, um conceito irmão da sustentabilidade. Mesmo em face da estigmatização dominante, as favelas demonstram altos níveis de coesão social, enquanto algumas estão na vanguarda do urbanismo sustentável (por exemplo, nas áreas de horta comunitária, acesso a pedestres, ecoturismo e gestão de resíduos). Em vez de usar o ambientalismo para justificar a destruição dessas comunidades, os ambientalistas devem usar esses pontos fortes para orientar o desenvolvimento da cidade como um todo.