Escrito com letra de criança, um papel pendurado na parede de uma das salas da ONG Luta Pela Paz, na Maré, chama a atenção: “Eu penso que ela cumpriu a parte dela e morreu”. Esse foi um dos muitos papéis pendurados por crianças no quadro de lembretes da sala.
A morte referida no papel era de Marielle Franco, vereadora brutalmente assassinada junto ao seu motorista Anderson Gomes, em 14 de março deste ano. Mulher, negra com pós graduação, defendeu pautas pouco vistas na Câmara dos Vereadores, como o direito das mulheres (na presidência da Comissão de Defesa da Mulher na Câmara Municipal do RJ), do povo preto, da favela, LGBT e de todas que vivem qualquer forma de opressão. Foi a quinta mulher mais votada e eleita com mais de 46.000 votos.
No dia seguinte ao assassinato de Marielle Franco, estava marcado um café coletivo na ONG Luta Pela Paz. O encontro, sempre animado, deu lugar a um discurso emocionado do educador social Gilson Jorge, 35 anos. Naquele momento, ele percebeu que seus alunos não sabiam quem ela era, e isso deveria mudar.
Nesta matéria contaremos a trajetória de Gilson como educador na Luta pela Paz, e sobre a sua iniciativa de dar aulas sobre Marielle Franco.
Sobre a Luta pela Paz
Gilson rege oito turmas de jovens, na Luta Pela Paz, e cada uma tem até 30 alunos. Seu desafio é trabalhar com o desenvolvimento pessoal, convivência e dedicação e ao mesmo tempo incentivar a prática de cidadania através das artes marciais.
“A Luta pela Paz é uma organização internacional sem fins lucrativos que tem como missão realizar o potencial de jovens trabalhando com eles pela prevenção de violência nas comunidades em que vivem.” A organização, fundada em 2000 no Complexo da Maré, desenvolveu uma metodologia chamada Cinco Pilares, sendo eles: boxe e arte marcial, educação, empregabilidade, suporte social e liderança juvenil. Está presente hoje em mais de 25 países.
Os alunos, de 7 a 29 anos, se dividem entre as lutas e aulas, de manhã, de tarde ou à noite. O pacote de atividades é completo, todos os que fazem esporte precisam fazer também aulas de educação social. “É muito bom estar em contato com jovens durante os cinco dias na semana. Eu aprendo muito à medida que eles crescem”, conta Gilson, que atua há três anos como educador.
Educação, uma tradição de família
A educação sempre esteve no DNA de Gilson. Ele quase se formou em ciências sociais, e desde do ensino médio até as aulas do pré-vestibular comunitário no Morro do Timbau, professores inspiradores não faltaram. Junto à educação, a mobilização foi sua grande aliada ao participar de projetos no Redes da Maré, e desde então, ele escolheu o caminho da educação.
Gilson nem sempre foi educador social na Luta pela Paz. Ele entrou na organização como mentor em projeto especial para trabalhar a sociabilidade e outras questões, com egressos do tráficos de drogas. Mais que isso, foi um importante apoiador de jovens de 18 anos interessados na melhora de vida. O trabalho social de sua irmã, que coordena a Casa das Mulheres na Maré e de suas duas primas educadoras, também foi uma grande influência para continuar nesse caminho.
Fernanda Mesquita, pedagoga e coordenadora de desenvolvimento pessoal na Luta Pela Paz fala da relevância de Gilson como educador social: “Precisávamos de uma pessoa como ele para trabalhar com os jovens adolescentes. Um morador da Maré, que tem experiência, habilidades e que fala a mesma língua deles. Ele é criativo e puxa suas aulas sempre para a filosofia e dá certo”.
Fernanda orienta o trabalho de Gilson, que é bastante autônomo. Quando Marielle sofreu o atentado, eles se juntaram e pensaram na proposta inicial: sentir as reações dos alunos depois do acontecimento, e trabalharem sobre a morte de Marielle a partir destas reações. Neste processo de observação a pauta do racismo e da representatividade veio à tona.
Do luto à luta
Gilson passou a pesquisar, preparar e explorar temas que envolviam a luta de Marielle Franco. Ele questionava: Ela recebeu poucos votos aqui da Maré, mas por quê? Qual o espaço financeiro e comunicacional que ela tinha para apresentar suas propostas e ter apoio dos seus iguais, favelados? Explorou a lista dos projetos de lei: Assédio Não é Passageiro, Casas de Parto, Espaço Infantil Noturno e Pra Fazer Valer o Aborto Legal no Rio, entre outros. Com esse material, preparou a primeira aula sobre uma mulher, negra e cria da Maré.
Nas aulas, que ocorreram nas semanas após o atentado, foi questionada a representatividade que os moradores de favelas têm dentro da Câmara dos Vereadores. Independente de posturas ideológicas, todos concordaram com a falta que Marielle faz. As aulas também foram usadas para desmistificar as notícias falsas que surgiram sobre ela. Segundo Gilson, foi “um atentado a democracia. Por isso, politizar a vida da gente é muito importante. Então, trago temas relevantes como esse, para desenvolver competências, dentro da sala de aula do Luta pela Paz”.
Mas a iniciativa foi além. A partir das aulas sobre Marielle Franco, na ocasião de sua morte, as pautas do racismo e da representatividade passaram a fazer parte das aulas de Gilson e não pararam mais.
Suas aulas não são sobre a morte de Marielle e sim, sobre o legado que ela deixou.
A jornalista comunitária Thaís Cavalcante nasceu e foi criada na Nova Holanda, uma das favelas da Maré. Ao atuar como comunicadora comunitária em sua comunidade, decidiu cursar jornalismo na universidade e acredita no poder da informação para mudar para melhor sua realidade.