O Termo Territorial Coletivo (TTC) Aplicado às Favelas Poderia Resolver a Crise Mundial de Moradia? Parte 3

Uma inovação no uso da terra que tem tido sucesso nos EUA e em outros lugares pode ajudar a proteger comunidades assentadas informalmente de remoção e gentrificação, e dar a elas controle sobre o desenvolvimento.

Esta é a terceira matéria de uma série de quatro–que estamos publicando entre 13 e 16 de agosto–que compõe o artigo intitulado ‘Será que um Termo Territorial Coletivo (TTC) Aplicado a Favelas Poderia Resolver a Crise Mundial de Moradia Acessível?’ escrito por Theresa Williamson, diretora executiva da Comunidades Catalisadoras*. Uma versão do artigo foi publicada pelo Lincoln Institute of Land Policy (Instituto Lincoln de Política de Terras) e na sua Revista Land Lines. Leia o artigo original em inglês no site do Lincoln Institute aqui e na Land Lines aqui. Para ler todas as matérias da série clique aqui.

Esta série está sendo publicada em preparação para a vinda da delegação de Porto Rico, entre 23 e 27 de agosto, que conseguiu realizar o TTC em oito favelas de San Juan, com ótimos resultados. Caso tenha interesse em participar das oficinas e conhecer o modelo de perto, faça sua inscrição na data apropriada aqui. As oficinas serão realizadas pela ComCat em parceria com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Pastoral de Favelas, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio, e o Laboratório de Estudos das Transformações do Direito Urbanístico Brasileiro.


Os Termos Territoriais Coletivos Aplicados a Favelas Oferecem uma Oportunidade?

Ao longo da última década, explorei o potencial de implementar um modelo de Termo Territorial Coletivo (TTC), a designação do que seria um modelo de “Community Land Trust” adequado às especificidades brasileiras, nas favelas do Rio de Janeiro. Testemunhando os impactos do “boom” do mercado no início dos anos 2010 nas favelas da Zona Sul, onde relativamente poucos moradores se beneficiaram enquanto muitos enfrentaram dificuldades, nossa organização apoiou diversos grupos no Vidigal por meio de oficinas de conscientização sobre gentrificação e uma série de debates que estes grupos conduziram sobre especulação imobiliária na comunidade. O primeiro debate em 2014 estava repleto de moradores que compartilharam suas histórias e preocupações. Alguns foram forçados a sair pelo aumento de preço das contas ou picos nos preços de aluguel; em outros casos, os vendedores subestimaram o valor de suas casas ao vender e acabaram se mudando para imóveis em circunstâncias significativamente piores; e então havia os jovens adultos que, pela primeira vez em gerações, não podiam comprar uma casa na comunidade tradicional de suas famílias.

Um dos quatro debates públicos ao ar livre sobre a gentrificação e os riscos que isso representa no Vidigal, realizado pela Associação de Moradores e uma coalizão de outros grupos do bairro em 2014.

Começamos a informar mobilizadores de favela sobre estratégias de gestão de terras, incluindo o Termo Territorial Coletivo. Nos Estados Unidos, entre numerosas abordagens para resolver a questão da moradia a preço acessível, o TTC foi encontrado como a ferramenta mais eficaz na garantia da permanência de moradores nas suas casas, em ambos os períodos de declínio econômico, e de crescimento especulativo.

A lógica básica da governança de um TTC não é tão diferente daquela das favelas hoje, embora formalizada. Hoje, os moradores possuem e vendem suas casas a preços acessíveis por meio de um mercado imobiliário paralelo ativo. Enquanto isso, eles não são donos da terra em que vivem, que, de certa forma, é de propriedade coletiva, uma vez que tende a ser propriedade pública. Por fim, as associações de moradores e outras instituições da vizinhança promovem e lutam por melhorias de infraestrutura na comunidade, chegando a manter registros de vendas de residências.

A principal diferença entre os dois é que as favelas são mantidas precárias através de uma governança tênue sobre elas pelas autoridades, enquanto os TTCs são sancionados para administrar terras, representar a comunidade e agir para melhorar seu território. Além disso, os TTCs têm um mandato reconhecido inequivocamente por moradores e governos.

Casa mais simples em meio a zona de gentrificação do Vidigal.

Mas o modelo praticado tradicionalmente nos EUA e na Europa não correspondia exatamente à realidade das favelas. Os TTCs estão associados às suas variedades americanas e europeias, onde funcionam como empreiteiras—sem fins lucrativos e acessíveis, mas, mesmo assim, empreiteiras. As favelas, por outro lado, não exigem o desenvolvimento imobiliário, mas sim uma formalização das moradias e do estoque comunitário. Isso levanta a questão: as favelas podem ser readaptadas como TTCs?

A resposta é um contundente sim. A partir de 2001, os assentamentos informais de Canal San Martín, em San Juan, Porto Rico, combateram a gentrificação de suas comunidades 9 através da instituição de um modelo do TTC. Hoje, o Canal é um exemplo amplamente estudado da eficácia dos TTCs no fornecimento de propriedades formais e tituladas sem o risco de remoção ou gentrificação, construídos sobre os atributos sociais existentes na comunidade.10 [Leia o caso Canal Martín Peña aqui.]

Outros Exemplos de TTC

Além do Canal Martín Peña, as experiências de TTCs em todo o mundo podem oferecer lições. Já existem vários exemplos de sucesso como a Champlain Housing Trust (CHT) localizada em Champlain, no estado de Vermont, nos EUA; o CLT de Londres que construiu casas TTC no espaço abandonado do hospital St. Clements em Mile End no Leste de Londres; e o Termo Territorial Coletivo de Bondeni, no Quênia, entre outros.

Já a Dudley Street Neighborhood Initiative, em Boston, nos ensina que as contribuições dessas instituições vão muito além do gerenciamento da terra. Elas podem ser mecanismos econômicos coordenados pelas prioridades coletivas da comunidade. Isso poderia ser muito estimulante para as favelas que desenvolveram sua própria atividade comercial (ou gostariam de fazê-lo), mas tiveram que fazê-lo informalmente e agora podem, através do TTC, desenvolvê-lo formalmente, mas de uma maneira que reduz as despesas associadas à formalização via canais tradicionais.

Banner do site da Dudley Street Neighborhood Initiative’s (DSNI)

 Termo Territorial Coletivo e Favelas: DNA Similar

Assim, a partir do estudo de casos no Norte e no Sul global, pode-se resumir os componentes centrais do modelo TTC (como se aplica em contextos formais e informais) como: Favelas já são, em essência, TTCs informais. Nas favelas do Rio:
  • Adesão espontânea. Os participantes do TTC devem optar por fazer parte do TTC, aceitando a meta do TTC de manter a comunidade permanentemente acessível.
  • Os moradores optam por residir lá geralmente forçados inicialmente pelas circunstâncias, mas eventualmente porque desenvolvem um senso de pertencimento e investem em suas moradias e comunidade.
  • Propriedade coletiva da terra. O TTC é proprietário do terreno em que opera e é composto por membros da comunidade residente.
  • A terra é de propriedade pública e, conforme a Constituição Federal, deve servir uma “função social”.
  • Casas de propriedade individual. Os moradores têm propriedade da casa em que moram, podem investir nela e vendê-la. O valor da casa se mantém mais acessível do que em outros lugares pela não-inclusão do valor da terra no preço de venda (já que a terra pertence ao TTC). Em alguns casos, a casa deve ser vendida ou oferecida primeiro ao TTC, que a revende para aqueles que atendam aos critérios de elegibilidade (baixa renda); ou o preço permitido para revenda é contemplado no estatuto durante a criação do TTC.
  • A maioria dos moradores vivem em casa própria (sempre taxa menor de 35% que são inquilinos), com mercados imobiliários informais paralelos muito robustos, com algumas favelas tendo até agências.
  • Controle comunitário. A Diretoria do TTC é eleita apenas pelos moradores do TTC e tem o poder de conduzir um amplo desenvolvimento comunitário, além de administrar a terra. Normalmente, a Diretoria é composta por uma estrutura tripartite que garante a natureza permanente de sua missão. Ela é frequentemente composta por ⅓ pessoas donas de suas casas nas terras do TTC, ⅓ assessores técnicos, e ⅓ pessoas que residem no bairro.
  • Toda comunidade tem uma associação de moradores, que deveria ser eleita pelos moradores e é legalmente responsável por representar a comunidade em reuniões com autoridades públicas, muitas vezes também realizando melhorias locais. Embora sua eficácia varie drasticamente entre as favelas, associações também são os principais órgãos responsáveis ​​por documentar as vendas de imóveis e disputas de terra.
  • Acessível para a perpetuidade. O objetivo primordial do TTC é garantir moradias permanentemente acessíveis.
  • A acessibilidade econômica foi mantida historicamente, em virtude da propriedade pública da terra, e infelizmente também pela negligência histórica das favelas e da marginalização e criminalização de seus moradores.

 

Esta é a terceira matéria de uma série de quatro. Para ler todas as matérias da série clique aqui.

Volte amanhã para a quarta parte. Caso tenha interesse em participar das oficinas entre 23-27 de agosto e conhecer o modelo TTC de perto, faça sua inscrição na data apropriada aqui.

Notas

[9] Um caso anterior no Quênia, o Termo Territorial Coletivo de Bondeni, estabelecido na década de 1980, também pode oferecer alguma orientação, embora tenha sido baseado em cidades menores e as informações sobre esse caso sejam mais limitadas.

[10] Grande parte do modelo de San Juan pode servir de inspiração para futuros TTCs no Brasil, incluindo as histórias de por que as pessoas escolheram o TTC ao invés de títulos individuais; como organizaram a comunidade para decidir por si qual o melhor modelo; e como eles desenvolveram legislação e agora estão desenvolvendo a comunidade de forma acessível. Outra grande lição de San Juan é que uma vez que os lares são parte de um TTC, eles continuam desenvolvendo os ativos coletivos da comunidade (em vez de perdê-los devido ao crescimento do pensamento individualizado associado a títulos individuais plenos), tanto internamente como externamente. Quando o furacão Maria atingiu Porto Rico, o Caño estava conectado globalmente e, dentro de meses, apoiadores incluindo outros TTCs em todo o mundo haviam levantado centenas de milhares de dólares para apoiar sua reconstrução, mostrando que o desenvolvimento coletivo permite que as comunidades acessem mais recursos em tempos inevitáveis ​​de necessidade.


Série Completa: O Termo Territorial Coletivo (TTC) Aplicado às Favelas Poderia Resolver a Crise Mundial de Moradia?

Parte 1: Direito à Terra no Brasil: Reconhecimento e Ameaças ao Papel das Favelas na Cidade / Moradia é Uma Necessidade Básica
Parte 2: Repensando as Favelas do Rio (Condições, Direitos de Ocupação 1988–2010, Regularização Fundiária de 2010 a Hoje)
Parte 3: Os Termos Territoriais Coletivos Aplicados a Favelas Oferecem uma Oportunidade?
Parte 4: A Regularização das Favelas do Rio Através do TTC / O Que Esperar Para o Rio?

*Comunidades Catalisadoras (ComCat) é a organização que publica o RioOnWatch.